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31/10/2010

da Parque Escolar e da (falta de) autonomia das escolas

DINHEIRO PÚBLICO

Clara Viana (PÚBLICO de 16/8/09) veio dar-nos conta daquilo que alguns gostariam que passasse de fininho: por convite directo, sem concurso nem publicitação, foram gastos mais de 20 milhões de euros em projectos de arquitectura de remodelação de escolas secundárias. Num útil trabalho jornalístico, Clara Viana e as suas fontes, o presidente da Ordem dos Arquitectos e o director do Departamento de Salvaguarda do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, entre outros, deixaram inquietos os contribuintes conscientes. Quando está em jogo um investimento de 2,5 mil milhões de euros, não é aceitável a falta de transparência e os expedientes dúbios agora denunciados.

Os impostos são a forma universal de transformar o dinheiro privado em dinheiro público. A engenharia burocrática é um dos processos particulares de verter em dinheiro privado o dinheiro público.

Enquanto fórmulas legais de extorsão, estão sujeitas à censura política e ao crivo da apreciação ética e moral. Foi por isso que critiquei, em artigo de 26 de Fevereiro de 2007, a constituição da "Parque Escolar, EPE", "entidade pública empresarial", na origem da matéria em análise.

As chamadas empresas públicas nasceram como cogumelos. Na sua génese estão teorias ligeiras, de cariz neoliberal, segundo as quais só há eficácia no sector privado, ou espertezas que visam tornear as dificuldades de um Estado que não se sabe reformar. Falsas questões.

Porque há empresas privadas tão burocratas como o mau Estado e instituições públicas que funcionam bem e são eficazes. A dicotomia não é, portanto, entre o público e o privado. É entre o bem gerido e o mal gerido. A diferença séria está no que visam instituições diferentes: o sector privado visa o interesse (legítimo) privado; o sector público visa o interesse colectivo; o que significa que existem matérias que devem ficar sob o foro público e outras em que o Estado não se deve meter, senão para regular e fiscalizar. Mas naquelas em que podem (e devem) coexistir os dois modelos, é bom que não sejamos promíscuos.

Uma "entidade pública empresarial" afigura-se-me uma coisa promíscua, híbrida como as fundações modernas, que retiram do saco público, directamente, ou por interposto expediente, o dinheiro que deveria ser próprio. A "Parque Escolar, EPE" nasceu para desempenhar um papel híbrido, adequado à gestão política do Governo que a concebeu. Sendo Estado (porque é integralmente do Estado, foi do Estado que recebeu o património, é ao Estado que reporta e é o Estado que lhe nomeia os corpos gerentes e cobre, com os nossos dinheiros, os resultados de eventual má gestão) não se sujeita às regras das instituições do Estado. Com efeito, pode, entre outras prerrogativas, vender, comprar e contratar por ajuste directo; pode admitir trabalhadores sem sujeição a congelamentos; pode fixar-lhe livremente o salário e os modelos de gestão, em todas as vertentes, disciplinar inclusa. Sendo empresa, tem privilégios que fazem inveja: não paga taxas, não tem que fazer qualquer registo, nem sequer o comercial; tem poderes para expropriar, embargar, cobrar taxas e decretar demolições. O desaforo é tal que, se algum português demandar pessoalmente, em juízo, qualquer titular da "Parque Escolar, EPE", ou simples trabalhador (presto tributo a este rasgo proletário), por factos praticados no exercício das suas funções, os ditos estão isentos do pagamento de custas judiciárias e têm direito a patrocínio judiciário, que pode ser assegurado pelos serviços jurídicos respectivos ou por advogado contratado (e pago por todos nós).

O que fica dito a propósito desta empresa pública não esgota os reparos possíveis e é tão-só paradigma de uma maneira reprovável de gerir e mascarar factos: o Governo diminuiu as verbas consignadas às remunerações certas e permanentes do funcionalismo público, cortou e extinguiu aí, para aumentar exponencialmente as consignadas a aquisições de serviços em outsourcing, num belo processo de transformar rápida e legalmente dinheiro público em dinheiro privado.

Como se a moral não existisse e não devesse preceder sempre a invocação da capa asséptica da lei. Como se a verificação da conformidade com as normas resolvesse a incomodidade cívica que resulta da ausência de ética neste tipo de gestão. Como se a maioria preterida, gente de segunda, devesse ceder, subserviente, o passo à minoria preferida, gente de primeira.

No caso concreto em apreço e noutra vertente de análise, é chocante o desprezo pela autonomia das escolas, sempre apregoada, mas sempre calcada. O mesmo Governo que a invoca em nauseantes discursos de pura propaganda política retirou aos gestores das escolas qualquer direito sobre um dos instrumentos de gestão mais básicos, qual seja o próprio espaço físico em que actuam. De uma penada, o direito de propriedade de sete escolas de referência (Liceu Nacional de D. Dinis, Liceu D. João de Castro, Liceu Pedro Nunes, Liceu de Passos Manuel, Liceu Rodrigues de Freitas, Escola do Príncipe Real e Escola Comercial Oliveira Martins) passou para a "Parque Escolar, EPE". Os utentes de décadas nem mereceram que o seu quadro de utilização futura justificasse qualquer referência, simbólica que fosse. A capacidade dos professores gerirem o interesse das escolas no quadro das intervenções técnicas de arquitectura foi liminarmente ignorada. Mas a capacidade da "Parque Escolar, EPE" verter na sua actividade os desenvolvimentos da Psicologia, das Ciências Sociais e das Políticas Públicas foi acolhida em lei. Significativa distinção.


Santana Castilho s.castilho@netcabo.pt
Professor do ensino superior.

In Público, 19/08/2009

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