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31/10/2010

Um outro olhar sobre os olhares da OCDE


in Público, 15/09/2010


Não desisto de convocar políticos e cidadãos comuns para o debate das ideias e para o exercício de informar com seriedade e verdade. Sem informação e discussão não há vida democrática. 

Há dias foi divulgado o “Education at a Glance 2010”, um olhar já clássico da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico sobre o estado dos sistemas educativos dos países que a compõem. São 472 páginas de uma complexa rede de indicadores quantitativos, tão úteis quanto perigosos. Esclareço: úteis porque ajudam a cotejar resultados de políticas, no quadro da educação comparada; perigosos porque são passados para a opinião pública sem indispensável informação complementar; porque muitos quadros nunca deviam ser divulgados isoladamente, outrossim em conjugação com outros que os clarificam e impedem grosseiras conclusões; porque, por essa via, conferem falsos fundamentos e legitimidade a políticas mais que questionáveis; porque o seu valor está hoje inaceitavelmente inflacionado e dá origem a uma política global de educação para problemas e culturas de estados membros bem diferentes; porque assumem que tudo se pode medir e reduzem as diferentes dimensões da educação ao interesse exclusivo da economia e do mercado.

Deixem-me fundamentar o afirmado com exemplos, a saber:

1. O primeiro-ministro, bem ao seu jeito e em cerimónias de abertura do ano lectivo, classificou de feito notável Portugal ter ultrapassado a média da OCDE no que toca à frequência da educação pré-escolar. É, sem dúvida, uma boa notícia. Só que o Estado e as políticas educativas seguidas pelos dois últimos governos não tiveram qualquer relevância na matéria. Das cerca de 4 centenas de novos jardins-de-infância que contribuíram para o celebrado crescimento, os dedos de uma mão sobram para contar os que pertencem à rede pública. O avanço deve-se à iniciativa de privados e de instituições de solidariedade social. 

2. Logo que o documento foi publicado, a espuma dos números invadiu a imprensa e a blogosfera, tendo sido indicados, como custos por aluno, 5.011 euros para o ensino básico e 6.833 para o secundário. Todavia, se consultarmos o orçamento de Estado para 2008, ano a que se reporta o relatório em análise, encontramos um custo por aluno, no conjunto dos dois níveis de ensino, que não chega sequer aos 4.000 euros. A enorme diferença explica-se quando estudamos como é formado o respectivo indicador. E isto não é explicado. Porque não vende papel e ninguém lê. Porque não interessa à máquina propagandística do Governo. 

Veja-se, a esse título, o que o Gabinete de Comunicação do Ministério da Educação achou relevante e divulgou. Disse que as nossas crianças do ensino básico passam 889 horas por ano na escola, enquanto a média da OCDE é de 777 e a celebrada Finlândia se fica pelas 600? Claro que não disse! Disse que os professores portugueses trabalham, em média, mais 83 horas por ano que os seus colegas da OCDE e têm uma carga horária superior, seja qual for o nível de ensino considerado? Obviamente que não disse! Disse que os professores portugueses ganham menos que os colegas da OCDE, excepto no topo da carreira, mas que, para lá chegarem esperam mais 7 anos que eles? É o dizes! 

3. “Education at a Glance 2010” tem um editorial assinado por Angel Gurria, Secretário-Geral da OCDE. São duas páginas e meia de considerações claras sobre a ideologia da publicação. Não vi na imprensa nem na blogosfera uma só referência a este relevante texto, que abre uma obra de referência sobre as políticas educativas ocidentais sem uma só palavra sobre a dimensão humana da educação. “Business”, puro e duro, explicado com a terminologia dos gurus da mão-de-obra flexível, barata e adaptativa. Traduzo, livremente, um parágrafo igual aos outros, que é paradigma do género: “… A edição de 2010 mostra que os recursos públicos injectados na educação permitem, a termo, gerar retornos fiscais ainda mais importantes. Em média, nos países da OCDE, um homem diplomado pelo ensino superior gera mais 119.000 USD de IRS e contribuições sociais, ao longo da vida activa, que outro que apenas tenha formação secundária. Mesmo depois de deduzidas as despesas públicas necessárias à formação superior deste homem, sobram 86.000 USD, ou seja, aproximadamente 3 vezes o investimento público por estudante do terciário …” Este naco de prosa não surpreenderá os que têm memória, já que pertence ao mesmo autor que em Lisboa, aquando da apresentação do relatório da OCDE sobre Portugal, referente a 2008, afirmou que o que era importante era fazer reformas, independentemente dos seus resultados.

É preocupante que hoje se aceite, quase de forma consensual, a tradução das realidades complexas dos sistemas educativos em simples baterias de indicadores. E que daí resulte uma hegemonia que instituições de cariz económico transnacionais exercem sobre os académicos e os governos nacionais, substituindo a racionalidade e a cultura pela fé na engenharia estatística. Basta que recordemos alguns dos objectivos fundadores da OCDE (promover o crescimento económico sustentável; promover o emprego; garantir a estabilidade financeira dos estados) e os confrontemos com a situação vivida pelos cidadãos no seio dos respectivos estados membros, para sentirmos uma comovente admiração pela fidelidade dos crentes. 
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