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25/02/2011

16/02/2011

Um teatro de sombras

in Público, 16 de Fevereiro de 2011

Um teatro de sombras
Santana Castilho *

Tudo se passa entre a luz e a tela. É lá que se manipulam os bonecos, no teatro de sombras. O espectador, sentado passivamente diante da tela, vê as sombras.

Comecemos pelo primeiro acto, a moção de censura. Por definição, é um instrumento parlamentar de derrube do Governo. Mas com os bonecos manipulados por trás e por baixo, como se faz no teatro de sombras, deu belos efeitos: demitiram-se uns de uma coisa que já não é Bloco; vitimizou-se outro de outra coisa que já não é Governo; e comprometeu-se a terceira coisa, a Oposição, que vai manter um Governo paralisado. Eis a realidade do que vai ser chumbado para além da tela. Intestinamente impedido de votar a favor qualquer censura proposta pelo PSD ou CDS, o número do Bloco fez sentido e valeu o risco da apalhaçada pirueta de Louçã: quando chegar a hora de uma moção de censura séria, o Bloco já se pode abster sem que o acusem de ajudar o Governo; marcou terreno antes do PCP e esclareceu que o apoio a Alegre foi tão-só erro de “casting” e nada de estratégico quanto ao PS. Este acto teve fim moralizante: o Bloco demonstrou que existe para não existir.

O segundo acto do nosso grande teatro de sombras foi à cena no Centro de Congressos da Alfândega, no Porto, sob a epígrafe “Os Colaboracionistas Protestam”. Na tela iluminada o título foi diferente: I Encontro Nacional de Dirigentes de Escolas Públicas. As sombras representaram quatro cenas das trevas das escolas: a recorrente avaliação do desempenho dos docentes, o garrote que aperta a preparação do próximo ano lectivo, a dita ou desdita (consoante a perspectiva dos protagonistas) dos agrupamentos escolares e os novos procedimentos reguladores dos contratos públicos. Dos anúncios feitos ao acto, na imprensa, pelo presidente da novel Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas, retirei frases fortes, que cito: “…a avaliação de docentes está a contribuir para uma grande instabilidade nas escolas…”; “…pretendemos exigir ao Ministério da Educação que se promova uma discussão séria sobre o processo de avaliação de docentes, que não é justo nem exequível…”; “...poupar em tempo de crise é fundamental, mas em nome dessa poupança não se pode destruir a escola pública…”; “…há uma grande angústia sobre a possibilidade de se perderem entre 25 a 30 por cento dos recursos humanos das escolas no próximo ano lectivo…”; “…queremos fazer uma chamada de atenção ao Ministério da Educação e também à opinião pública sobre os riscos que corre a Educação…”. 

Nesta representação glosaram-se os temas propostos e exploraram-se as deixas do senhor presidente. Mas, quando cansado de tantos protestos sem consequências, um boneco saiu de trás da tela e veio à frente propor que se demitissem do elenco das sombras, só três votaram a favor. Os restantes, cerca de 200, ficaram fiéis ao guião do grande teatro das sombras. Não aguentaram a luz. Fim pífio. 

O modelo de avaliação do desempenho dos professores é tecnicamente uma nulidade e politicamente um desastre. Introduziu nas escolas tarefas burocráticas e administrativas que representam, estimo, 40% do tempo activo dos docentes. Só o cumprimento da observação de aulas significa o sacrifício de um grande número de horários completos dos professores eventualmente mais qualificados. A sua lógica substituiu o clima cooperativo, que deve nortear o corpo docente de uma escola, por um espírito de competição malsã. A versão actual supõe (despacho nº 16034/2010 da Ministra da Educação, D.R. nº 206, II Série, de 22 de Outubro) 4 dimensões de actuação dos docentes, desdobradas em 11 domínios operacionais. Estes 11 domínios desagregam-se, por sua vez, em 39 indicadores, referidos a 5 níveis, cada um deles com múltiplos descritores, num total, pasme-se, de 72. Nenhuma inteligência sã suporta a permanência de tamanho monstro. Mas vai para três anos que toda uma comunidade docente é manipulada atrás da tela. E o que é duro de assumir é que tamanha tragédia só permanece em cena porque grande número de actores reescreve sadicamente nas escolas os guiões oficiais, numa psicótica fusão entre abusadores e abusados, entre personagens e actores, entre professores e burocratas.

Passemos ao terceiro acto. O relatório “Taxas de Retenção Durante a Escolaridade Obrigatória na Europa”, recentemente divulgado pela Comissão Europeia, mostra que, em Portugal, cerca de 35 por cento dos alunos reprovaram pelo menos uma vez no ensino básico. Somos os quintos na Europa, no sentido negativo da escala. Logo apareceram os profetas da modernidade a lembrar que a progressão automática é norma na Noruega e que a taxa de retenção na Finlândia nem chega a três por cento. Se saíssem de trás da tela, veriam a realidade.

Na Finlândia, mais de 25 por cento dos alunos do sistema têm apoios complementares e 8,5 por cento são objecto de educação especial. É isso que explica a baixa taxa de retenções. Quanto à Noruega, socorro-me da publicação oficial “Facts About Education in Norway, 2010”. Na página 11 verifica-se que só 56 por cento dos alunos do secundário completaram o respectivo ciclo de estudos no tempo previsto. Houve 26 por cento de abandonos ou chumbos, 12 por cento que necessitaram de mais tempo e 6 por cento que ainda o tentavam concluir no momento da recolha dos dados. 

Quando são confrontados com os factos, julgam que os “pedabobos” mudam de ideias? Não! Mudam os factos através da tela onde projectam as sombras.

* Professor do ensino superior

02/02/2011

Tolhidos

in Público, 2 de Fevereiro de 2011 

Santana Castilho *


A campanha eleitoral para a presidência da República foi pouco esclarecedora e lamentavelmente decepcionante. Não foi nobre o processo pelo qual os mascarados do costume trouxeram a escrutínio passagens menos edificantes dos negócios de Cavaco Silva. Mas foi deprimente a forma como o candidato, presidente presente e presidente futuro, lhes respondeu. Sem decoro, o ministro do malhanço, que não deixou de ser da Defesa, atiçado pelo animal feroz, que continua primeiro-ministro, zurziu sem elegância o candidato que ainda era presidente da República e chefe máximo das forças armadas. O eleito respondeu-lhe, enviesado e rancoroso, num discurso que devia ser de vitória e acabou em perda, particularmente quando apelou para que os jornalistas denunciassem as fontes das notícias que o incomodaram. O mesmo Cavaco que se desagradou com o comportamento lamentável do Diário de Notícias, aquando das escutas de Belém, exortou agora ao mesmíssimo remexer na lama que então manchou a honra e a ética do jornalismo sério. Tão clara e indiscutível como a vitória que as eleições lhe conferiram foi a sua queda do pedestal onde os indefectíveis o colocaram. O flop do cartão maravilha, que sonegou a milhares o direito mais sagrado da democracia, foi branqueado com um suave pedido de desculpas às portuguesas e aos portugueses e dispensa de penitência redentora. Mas, em compensação, os comentários produzidos sobre as eleições presidenciais foram criativos e trouxeram-nos de tudo: todos a ganhar e todos a perder; uma abstenção esmagadora ou cadernos eleitorais enganadores; uma vitória de Cavaco Pirro ou o sucesso do Professor Doutor Nulo Branco. 

A abstenção, os votos nulos e os votos brancos tiveram as maiores expressões de sempre. Se estes dois últimos contassem e se somassem às cinco candidaturas derrotadas, teríamos tido uma segunda volta. Confrontando os resultados das eleições presidenciais de 2006 com os das de 2011, vemos que Cavaco Silva perdeu 530 mil votos e Manuel Alegre 298 mil. Os votos nulos duplicaram de 2006 para 2011. E os brancos mais que triplicaram. Ora estes votos exprimem inequivocamente um protesto cívico, na medida em que são uma explícita declaração de não adesão a nenhum dos candidatos propostos. É significativo que 278 mil portugueses se tenham dado ao incómodo de se deslocarem às urnas para assim votarem. Volta a ser significativo que 189 mil tenham subscrito o discurso bizarro de José Coelho. Qualquer político ou cidadão consciente não pode deixar de reflectir sobre o que tudo isto evidencia de protesto e de desinteresse. E talvez fosse tempo de acolhermos, em sede de legislação eleitoral, o significado do fenómeno, melhorando o modelo da nossa representatividade.

Olhando para a nação no rescaldo das eleições, vejo-a partida: de um lado, os que não acreditam no regime e nos políticos que o representam; do outro os afectados pelo sindroma de D. Sebastião, aparentemente incapazes de viver sem uma sombra tutelar. Rei aos três anos, tutelado pela avó até aos 14, vítima de grave disfunção sexual desde os 11, fundamentalista religioso, pobre de cabeça e de saúde, lunático e inebriado pela corte incapaz, hipócrita e bajuladora, D. Sebastião finou-se sem glória em Alcácer Quibir e arrastou para a morte milhares de seguidores. Mas D. Sebastião, em vez de obstinado, lunático, fundamentalista, irresponsável e impotente, chegou até hoje como um icónico desejado. Os 37 anos de democracia não apagaram a tendência do povo para se curvar a líderes paternalistas. Cavaco Silva é deles um ícone. Mas, acabada a festa, é desejável que se caia no real.

A Providência é uma sabedoria suprema com que Deus dirige tudo. Se ele existe, é dele a Providência, não dos homens. Nenhum homem providencial resolverá os problemas de Portugal, cuja solução reclama a participação de todos. O que pode ser providencial é a missão dos que se sigam no Governo, se tiverem a capacidade de envolver os portugueses na solução dos problemas do país. 

Disse-se que vivemos nos últimos meses constitucionalmente tolhidos por umas eleições que se sabiam ser de continuidade. Mas tolhidos já vivemos há muito: tolhidos pelos interesses particulares que se apossaram do Estado; tolhidos pela crescente dependência financeira do exterior; tolhidos pela incompetência de quem manda; tolhidos pela corrupção crescente e pela justiça ineficiente; tolhidos por uma administração pública que não se reforma e por uma economia que não cresce; tolhidos por decretos maliciosos, por fiscalidade desleal, pela desconfiança generalizada num Estado saqueador. Nenhuma magistratura activa nos libertará do que nos tolhe, sem que se remova a desconfiança que hoje separa a sociedade dos responsáveis políticos. Sem isso, sem a mobilização cívica de novos protagonistas, nenhum velho imaginário pátrio nos salvará. 

É um lugar-comum, mas é falso, dizer que estas eleições nada tiveram com a governação. Tiveram. Quando o pano caiu sobre elas, encerrou-se definitivamente o ciclo da governação do PS. A mobilização cívica de que falo tem agora um protagonista: Pedro Passos Coelho. Sócrates, nas vascas da morte, vai estrebuchar até ao fim. Já anunciou uma nova oportunidade para as bafientas Velhas Fronteiras. Pedro Passos Coelho, sem pressa e bem de chegar ao Governo, deve ser lesto a mobilizar o país e a apresentar um programa. A hora é de iniciativas. 


* Professor do ensino superior. s.castilho@netcabo.pt