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22/12/2021

Pelo fim dos diáconos da distopia pedagógica


no Público

22/12/2021

por Santana Castilho*

 

 A 16 de Janeiro “abre” a campanha eleitoral para as legislativas de 30. Desejo muito que os programas partidários expressem as suas propostas com clareza, porque a situação actual do sistema de ensino é preocupante. Aqueles que generosamente me têm lido ao longo dos tempos terão presentes os problemas que fui equacionando. De entre tantos, é imperioso que os partidos digam agora, pelo menos, o que tencionam fazer para varrer a carga de burocracia controladora que se abateu sobre as escolas e sobre os professores; que medidas propõem para acudir à falta de professores, designadamente para reconhecer a importância social que lhes é devida; se sim ou não tencionam rever o estatuto da carreira docente, particularmente os instrumentos de avaliação do desempenho; se substituirão o modelo de gestão das escolas e de organização de toda a rede escolar; se introduzirão ordem e coerência em todo o edifício curricular; como encaram a autonomia das escolas e a municipalização da educação; que estratégia reservam para obstar à indisciplina que grassa nas escolas; se acham, sim ou não, necessário rever a Lei de Bases do Sistema Educativo; se tencionam universalizar todo o pré-escolar até à entrada no básico; se aceitam reduzir o número de alunos por turma e fixar o máximo de alunos por professor.

A regressão é evidente e só o ministro a não vê. Com milhares de alunos continuadamente sem aulas, estamos a voltar ao ambiente dos primeiros anos da democracia, quando a explosão da procura de educação nos confrontou com a falta de professores qualificados.

O cenário de falta grave de professores começou a ser apresentado por muitos, de há muito. Os do terreno identificaram-no cedo. Os da baixa política descobriram-no agora, de grande que ficou, enquanto ao longo dos últimos seis anos o ignoraram sistematicamente, com inépcia. Com efeito, foi neste quadro que surgiu uma caricata task-force, constituída por membros das direcções-gerais (Direção-Geral de Estabelecimentos de Ensino e Direção-Geral da Administração Escolar), que de há muito existem para, entre outras funções, obstar a que o problema surgisse. Se por hipótese os destinos da Educação continuarem entregues aos mesmos depois de 30 de Janeiro, não me admirarei de ver os fins a terraplanar os meios, prescindindo o sistema das habilitações definidas para leccionar, aumentando o número de alunos por turma, abolindo as reduções devidas à idade e, no limite, abolindo mesmo a componente não lectiva dos horários docentes.

Há seis anos que venho denunciando os sinais da distopia pedagógica que o PS abraçou, particularmente a ideia dissimulada de que são os alunos que devem orientar a sua educação, mediante metodologias de descoberta, e não os professores, segundo o tradicional ensino directo. As normas que presidem hoje à avaliação dos alunos estão vocacionadas para valorizar qualquer coisa que eles aprendam, por irrelevante que seja, depreciando em absoluto o que não aprenderam e deviam ter aprendido. E os diáconos destas doutrinas avaliativas têm propalado bem a mensagem, em autênticos guias espirituais de “boas práticas” docentes.

Naturalmente que o ambiente em que a sociedade portuguesa está mergulhada favorece a atitude prevalecente no Ministério da Educação, qual seja a de negar a realidade, em vez de acolher as propostas que ajudariam à solução dos problemas. Com efeito, anestesiados pelo medo, vamos esquecendo a gravidade de vivermos há quase dois anos em verdadeiro estado de excepção, com direitos e liberdades drasticamente limitados. Primeiro foi um estado de emergência prorrogado durante meses, ao arrepio grosseiro da sua constitucional natureza extraordinária e temporariamente limitada. Agora são simples resoluções do Conselho de Ministros que, cilindrando o normal funcionamento do Estado de direito, anunciam fins (sucessivamente falhados) para justificar o uso de quaisquer meios. Cumulativamente, a pouco mais de um mês das eleições, com a Assembleia da República dissolvida, aprovam-se diplomas que estabelecem estratégias nacionais de actuação futura. Sim, o fomento do medo vem tornando a sociedade num objecto totalmente dependente do poder político e coercivo que António Costa sobre ela exerce.

*Professor do ensino superior

 

08/12/2021

O que poucos decidem que Portugal seja é o que Portugal é

 


no Público

8 de Dezembro de 2021

por Santana Castilho*

O aumento continuado das responsabilidades e exigências que caem sobre os professores, devido à acentuada transferência para eles de funções sociais que pertenciam anteriormente à comunidade social e às famílias, sem as necessárias adaptações organizacionais compensatórias, tornou extremamente penoso o exercício da profissão. Dizer que a profissão docente está em crise passou, assim, a lugar-comum, sendo que as respectivas condições de trabalho (violência, esgotamento físico e psicológico) são as causas que mais contribuem para o acentuar dessa crise. E dentro delas, o peso da burocracia ocupa, talvez, o lugar cimeiro. Quantos cidadãos terão uma noção aproximada da quantidade de planos e relatórios inúteis que os professores são obrigados a produzir, com enorme prejuízo da sua responsabilidade primeira, que é ensinar? Muito longe de ser exaustivo, porque há mesmo muito mais, deixo um pequeno registo exemplificativo: Plano Anual de Actividades (PAA); Plano Plurianual de Actividades (PPA); Projecto Educativo de Agrupamento (PEA); Plano de Acção Estratégica (PAE), no quadro do Programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar (PNPSE); Plano de Ação para o Desenvolvimento Digital da Escola (PADDE); Projecto Curricular de Turma (PCT); Plano de Turma (PT); Plano Educativo Individual (PEI); Plano de Melhoria (PM); Plano de Recuperação de Aprendizagens (PRA); Relatório Técnico-Pedagógico (RTP); Relatório Individual das Provas de Aferição (RIPA); Relatório de Escola das Provas de Aferição (REPA); Relatório Crítico do Director de Turma (RCDT); Relatório Final de Execução de Actividades (RFEA). A última desta torrente pútrida de toleimas foi a moda da filosofia “Ubuntu”, alma mater de mais um plano: o Plano 21|23 Escola+. Cansados com esta amostra? Imaginem os professores, com a totalidade!

A malícia política que semeou obstáculos no trajecto profissional dos professores exprime bem a falta de decoro a que chegámos: cerca de cinco mil docentes, apesar de terem cumprido todas as exigências estatutárias (avaliação positiva, com observação directa de aulas, quando exigida, e formação contínua cumprida) estão impedidos de progredir aos 5.º e 7.º escalões, graças à existência das famigeradas quotas administrativas, que o Governo discricionariamente fixou. Muitos destes, por terem menções classificativas máximas, estariam a salvo do primeiro expediente arbitrário. Então, criou-se um segundo, mais miserável que o primeiro: em cada escola, só um limitado número de professores pode ter nota máxima; assim, concluído o processo, a classificação de muitos é aviltantemente reduzida, para cumprir a vontade de sucessivas pilecas políticas. Do mesmo passo, e na sequência da subtracção de vários anos de serviço efectivamente cumprido, temos hoje outros milhares de professores que já deveriam estar em escalões muito acima daqueles em que se encontram. Naturalmente que daqui resulta uma injusta penalização remuneratória, designadamente com considerável impacto negativo no cálculo das suas pensões de aposentação.

As análises que muitos fazem sobre a situação descrita, alegando que “nem todos podem chegar a generais”, ignoram que, enquanto são gritantemente diferentes as funções de um soldado e de um general, as funções de um professor do 1º escalão são exactamente iguais às funções de outro, do 10º. Fica assim actual, 120 anos depois, o que Eça de Queirós escreveu: “o que um pequeno número de jornalistas, de políticos, de banqueiros, de mundanos decide no Chiado que Portugal seja, é o que Portugal é.”

Faz-se muito e do melhor no sistema nacional de ensino. Infelizmente, sem o apoio de quem o governa. A dedicação, a entrega e o amor aos alunos são o apanágio dominante do espírito de missão da maioria dos professores. Apesar disso, são alvo de ataques sucessivos, como se a culpa do que corre mal lhes pudesse ser imputada.

Os professores estão saturados da natureza arrogante deste Governo, da incompetência do ministro da Educação, de obedecer à anormalidade normal, a ordens e modas imbecis, vindas ora do autoritarismo central, ora do caciquismo local. O sistema colapsará se não se alterarem drasticamente as políticas educativas.

*Professor do ensino superior

24/11/2021

Dar murro em ponta de faca

 

no Público,
24 de Novembro de 2021
 
por Santana Castilho

 

António Costa, em entrevista de 8 de Novembro à RTP, usou uma metáfora sobre a função da maçaneta e da fechadura, recorrendo ao seu conhecido comportamento político ardiloso: referiu não querer abrir feridas, mas esfaqueou repetidas vezes o PCP e o BE; quando rodou a maçaneta para deixar entrar o PSD e foi confrontado com a rejeição anterior, logo esclareceu que esse preconceito exorcista só se aplicou ao governo que vai cair; e, finalmente, permitiu concluir que se o PS não tiver maioria absoluta, um novo bloco central será possível. 

O homem que vê maçanetas onde outros só divisam fechaduras, enclausurou a Educação atrás das grades do retrocesso. A metáfora que melhor define o que fez nesta área é esta: dar murro em ponta de faca. 

As políticas educacionais destes dois governos do PS, personificadas por um ministro escandalosamente incompetente, são um poço de incongruências impostas por caudais normativos nunca vistos, paradoxalmente produzidos em nome da autonomia e da flexibilidade, perante, de um lado, escolas e professores reverenciais a quem manda e, do outro, escolas e professores exasperados, mas incapazes de dizer um não audível e consequente. É aqui que estamos, com a sociedade, distraída e passiva, a descobrir agora o que há muito se sabia e muitos foram denunciando: não há professores suficientes e o pior está para vir. Porque os salários indignos, já de si baixos (em início de carreira pouco acima do ordenado mínimo), perderam quase 30% do poder de compra nos últimos 12 anos. Porque temos professores com horários precários que pagam, literalmente, para trabalhar, suportando despesas (deslocações e rendas de segunda casa, longe da família) na esperança de reunirem condições para entrar nos quadros. Porque, de acordo com o Registo de Alunos Inscritos e Diplomados do Ensino Superior (Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência), o número de jovens que se candidatam a cursos de formação de professores sofreu uma quebra de mais de 70% nos últimos 15 anos. Porque, em resumo e em consequência do anterior, segundo um estudo promovido pelo próprio ME, o ensino público português tem um grave problema: recrutar, nos próximos dez anos, 34.508 novos docentes. 

O caos começou a ser desenhado pela proletarização dos professores, que Maria de Lurdes Rodrigues promoveu, em nome de uma eficácia ignorante, Nuno Crato continuou e António Costa e o seu mandarim Tiago apuraram, juntando-lhe precariedade e desprezo. 

Quando a OCDE referiu que a “Escola a Tempo Inteiro” é assistência social e não é educação, mais não fez que reiterar o que eu e outros fomos dizendo ao longo dos tempos. Quando a OCDE reconhecer que as políticas seguidas sob a epígrafe da “Educação para o Século XXI” não passaram de actos propagandísticos vazios de resultados, já estarão amarelecidos os papéis onde tantos denunciaram atempadamente o logro. 

A estratégia que agora se propõe é o retorno aos anos oitenta, ou seja, permitir que qualquer diplomado, sem a mínima preparação profissional específica, possa ser professor. Quando os eventuais candidatos virem o salário e as condições de trabalho, a exigência ainda descerá mais, como já hoje se verifica nalgumas zonas do país e nas disciplinas mais problemáticas (Geografia, Filosofia, Inglês, Português, Francês, Física e Química e Informática). Por mais que puxasse pela cabeça, este ministro só podia decidir assim: abaixo de zero. 

Se querem começar a resolver a falta de professores, comecem por lhes devolver o prestígio perdido (só 9,1% dos professores em serviço consideram que a sociedade os valoriza). Protejam-nos, com medidas eficazes, da violência a que estão sujeitos. Poupem-nos à burocracia inútil, que os escraviza. Mudem as regras de acesso aos quadros e de progressão na carreira. Paguem salários justos. Incentivem o exercício da docência no interior do país. 

Se não reagirmos com vigor, opondo sensatez ao delírio, em breve, tudo o que durante décadas se construiu, com o esforço de todos, vencendo tantas turbulências de percurso, irá ruir. Porque a cura anunciada (qualquer a dar aulas) é mais perniciosa que a doença (falta de professores qualificados). 

A pergunta que vai pedir a resposta dos portugueses, particularmente dos professores, é esta: quem trouxe a Educação a este estado, pode continuar a governar? 

 

*Professor do ensino superior

10/11/2021

A saúde mental das crianças e dos jovens

no Público

10/11/2021

por Santana Castilho

 

Boa parte da sociedade parece ter hoje dificuldade em manter contacto com a realidade. O medo, quanta vezes irracional, foi transformado em virtude e a obediência a regras tornou-se, socialmente, mais importante que o questionamento racional sobre a legitimidade e a validade científica dessas regras. Poderemos falar de uma certa psicose de massas, provocada pelo fomento do medo que a pandemia da covid-19 originou? Pelo menos, muitos especialistas em saúde mental assim o sugerem. 

Um relatório da Unicef sobre impacto da covid-19 na saúde mental de crianças e jovens, citado por Sara Johnson (The Guardian, 5.10.21) revela que um em cada cinco jovens de 15 a 24 anos, em todo o mundo, sofre de depressão, com receios extremos sobre o futuro e a família. 

Segundo o Royal College of Psychiatrists (https://www.rcpsych.ac.uk/), no Reino Unido, 16% das crianças com idades entre 5 e 16 anos foram diagnosticadas com transtorno mental em 2020. Por outro lado, aumentaram 29%, entre Abril de 2019 e Abril de 2021, os primeiros diagnósticos de psicose, assumindo-se que a pandemia tem graves reflexos na saúde mental da população (Helen Pidd,The Guardian, 20.10.21). 

Mark McDonald, psiquiatra especialista em crianças e adolescentes, afirmou que os americanos estão afectados por “uma psicose delirante”, provocada pelo medo induzido pela pandemia da covid-19. Isto apesar de as mortes verificadas representarem 0,002% na faixa etária dos 10 anos e 0,01% na de 25 anos (S.G. Cheah, Evie Magazine, 22.12.20). 

Nicola Davis (The Guardian, 8.10.21), citando estudos de vários cientistas, escreve que os episódios de ansiedade e depressão em todo o mundo aumentaram dramaticamente em 2020, com uma estimativa de acréscimo de 76 milhões de casos de ansiedade e 53 milhões de casos de transtorno depressivo, sendo que as mulheres e os jovens têm maior probabilidade de ser afetados do que os homens e os idosos. 

Num oportuno trabalho de reportagem (Público, 6.11.21) aborda-se o tema da saúde mental dos nossos alunos e o que lá se lê não nos deixa tranquilos. Numa reflexão sobre os impactos da covid-19 na saúde mental das crianças e dos jovens (DN, 1.11.21), o psicólogo Alfredo Leite afirma que “o suicídio é a principal causa de morte em crianças e jovens adultos em Portugal". 

Os problemas de saúde mental podem ser devastadores para o futuro das nossas crianças e adolescentes e exigem, por isso, intervenções rápidas. Não estão apenas em causa os preocupantes novos casos de depressão e ansiedade (um dos traumas que se vê referido na literatura sobre a matéria foi a ideia transmitida às crianças de que poderiam, por simples proximidade, fazer adoecer os pais ou os avós), mas também o agravamento dos casos dos alunos com necessidades educativas especiais, cujas rotinas de apoio especializado, terapia e socialização foram brutalmente interrompidas e permanecem longe de ser recuperadas. Numa palavra, não é saudável que as crianças cresçam podendo pensar que são perigosas para os cuidadores e que estes podem também ser perigosos para a saúde delas. Na equação de relativização dos prós e contras das medidas de saúde pública, a saúde mental e a imperiosa necessidade de a proteger não foram consideradas, já que os estudos produzidos indicam como primeira causa da depressão das crianças a desconexão que elas sentem em relação aos amigos e à própria família. O crescimento saudável das crianças e a segurança vital de que necessitam não dispensam o contacto físico e a intimidade emocional. As decisões que as possam pôr em risco não podem ser decretadas por políticos, ouvidos apenas epidemiologistas e virologistas. Devem incluir a pronúncia de psicólogos, psiquiatras e pedagogos. 

Ciente embora da desproporção comparativa, as estratégias actuais para direcionar o pânico instalado na sociedade para determinados objectivos fazem lembrar o que a História nos reporta sobre idêntico modo utilizado pelas classes dominantes, em período de crises epidémicas e mudança social, que culminaria com a criação do Tribunal do Santo Ofício. A sociedade do futuro não pode ser uma sociedade desprovida das liberdades civis anteriormente conquistadas, muito menos uma sociedade em que poucos controlem e dominem os outros, impondo-lhes uma visão distorcida de segurança e bem-estar, desprovida de humanidade. 

*Professor do ensino superior

27/10/2021

Uma democracia de mercado


no Público

27/10/2021

por Santana Castilho*

 

1. Decide-se hoje, pelo menos formalmente, o destino do OE. O cenário oferecido aos servos fiscais, a que chamam cidadãos, resume-se assim: governo e oposição, imprestáveis para empreender reformas sérias, digladiam-se numa romaria orçamental, com tácticas casuísticas e o mesmo objectivo estratégico: ter poder para, numa democracia de mercado, repartir benefícios pelos prosélitos mais próximos; um Estado tentacular, aprisionado por esta lógica e por escritórios de advogados, que assiste impávido à degradação da provisão pública dos serviços de saúde, educação e justiça; um presidente que, em nome da estabilidade podre que o obceca, nos sopra liminarmente, a cada passo, a velha máxima de Thatcher: there is no alternative.

São evidentes os sinais do autoritarismo monolítico de António Costa, cada vez mais fixado na afirmação do seu poder e na imposição de ideias de controlo e supervisão da sociedade. Conseguirá ele, no último minuto, fazer aprovar mais um OE? Créditos de flexibilidade de cintura, não lhe faltam. Entre outros, basta que recordemos o sorriso cínico com que deu a volta ao resultado das eleições que perdeu, ante um político que vinha de quatro anos de distribuição de miséria pelo país; a facilidade com que, depois de considerar o Bloco de Esquerda uma “inutilidade total”, o utilizou para ser poder; a volatilidade que usou para passar do eurocepticismo (saudou a eleição de Tsipras como um sinal de mudança na Europa) para o federalismo (quando lhe foi conveniente, alinhou rápido com as propostas de Macron); a ligeireza com que, depois de perorar na oposição contra “os falcões de Berlim”, bajulou, no governo, a senhora Merkel.

Ou estará antes no papel de escorpião, pronto para ferrar de morte o OE, porque não resiste ao chamamento para presidente do Conselho da Europa, em Julho de 2022? É que, como bem lembrou Ana Gomes, tem e recusa a solução: acabar com a caducidade da contratação colectiva.  

2. De passo síncrono com a diminuição da natalidade e o envelhecimento da população, acentuou-se em Portugal o abismo entre o litoral, sobrepovoado, e o interior, desertificado; enveredámos por um desenvolvimento agrícola de monoculturas intensivas, que depauperam solos e reservas de água; continuamos um país desindustrializado, fortemente dependente da importação de bens, a que outros acrescentaram valor; regredimos nos resultados da Educação; assistimos à degradação continuada da Justiça; numa palavra, permitimos, mansos, a imposição de um colete-de-forças ideológico em múltiplas áreas da vida colectiva.

Muitos, respeitáveis, dizem que não há racismo em Portugal. Detenham-se nos comentários que pululam nas redes sociais. Encontrarão, mais do que racismo, ódio. Ódio profundo dirigido ao outro, seja branco, preto ou amarelo, estigmatizando todos pelos comportamentos de alguns. Demasiados oprimidos, aí, odeiam mais o outro que o opressor e mostram-se inaptos, sequer, para identificar quem os faz pobres e oprimidos. Muitos deles, sem se darem conta, porque alienados, viram simples colaboracionistas, quando assumem as mesmíssimas práticas e dialéticas que julgam estar a combater. De alma profundamente dorida, vejo isso, até, nas caixas de comentários dos professores.

À medida que envelheço, os problemas que não podem ser solucionados cientificamente, mas que são fundacionais de uma visão personalista da vida, vão ocupando o meu espaço reflexivo em detrimento daqueles que resolvo com o conhecimento acumulado. Assim, quando olho para a corrente política que procura dominar o ensino, sinto-me em sentido contrário: eles fixados nas competências, que resolvem problemas (do sistema económico); eu preocupado com os modos diferentes de ver o mundo (para que cada um o entenda).

A pressão que o utilitarismo e o consumismo, as medidas e os números exercem sobre os que pensam é tal, que muitos acabam desistindo da Filosofia, da História e da Literatura e aceitam acriticamente o império da Estatística.

Oxalá esta crise pudesse, pelo menos, despertar políticos e pedagogos para a necessidade de produzir pensamento sobre processos de melhorar a qualidade de vida das populações, recuperando o equilíbrio entre as prerrogativas do Estado e as liberdades fundamentais dos cidadãos.

*Professor do ensino superior

 

14/10/2021

Retorno ao livro único e nacionalização das crianças de três anos?


no Público

13 de Outubro de 2021

por Santana Castilho

 

O homem que apoiou a criação de estruturas salazaristas de controlo do pensamento e da informação e iniciativas de supervisão moral da sociedade teve a deselegância de dizer a um deputado que não o autorizava a fazer juízos morais a seu respeito, porque o deputado não o conhecia de lado nenhum. O feudalismo deste raciocínio indigna qualquer cidadão livre e torna necessário lembrar a António Costa que toda a gente o conhece, e demasiadas vezes pelas piores razões.

António Costa reagiu à intervenção de Coelho Lima com a arrogância de quem não tolera que o contestem. Com a irritabilidade à flor da pele, tentou mostrar que, a quem manda, não se fazem perguntas incómodas. Porque não preciso da autorização dele para o considerar empenhado em impor chavões ideológicos sem fundamentação, endereço-lhe as perguntas em título e passo aos argumentos que as sustentam.

1. O Plano de Recuperação e Resiliência prevê gastar 73,5 milhões de euros para produzir recursos educativos digitais para todas as disciplinas do básico e secundário. Sucede que esses recursos já existem, para a maioria delas. É o que se retira da execução do Projeto-Piloto de Desmaterialização de Manuais Escolares (24 instituições, 187 turmas e 3755 alunos), coordenado pela Direção-Geral da Educação, com forte envolvimento dos grupos editoriais que, de há muito, vêm produzindo manuais e outros recursos digitais, de reconhecida qualidade. Com efeito, no quadro da monitorização do programa, designadamente na experiência que o próprio ME promoveu em nove escolas, em 2020/21, com manuais digitais já existentes, não vi reportada qualquer falta de recursos, que não a falta de meios informáticos (computadores e acesso à Net). Acresce que a Região Autónoma da Madeira já vai no terceiro ano de utilização total de manuais digitais (todos os alunos do 5º ano em 2019/20, todos os do 5º e 6º em 2020/21 e todos os do 5º, 6º e 7º anos em 2021/22) e também não identificou qualquer falta de recursos, assim como vários colégios com uso 100% digital. Qual é a ideia? Secar a edição privada e impor uma plataforma única, do Estado?

2. O Governo anunciou a intenção de tornar obrigatória a escolaridade a partir dos três anos. Se a medida colher, estaremos a estender ao pré- escolar o seu desígnio para a escola pública: ser um simples depósito de alunos durante o tempo de trabalho dos pais. Se a medida colher, estaremos a implodir a natureza intrínseca do pré-escolar, porque o sistema cederá, definitivamente, à pressão que já se verifica para antecipar aprendizagens formais, reguladas e tipificadas. Ora o aspecto mais importante da educação pré-escolar não é a preparação das crianças para os programas de ensino que as esperam no básico. É antes um tempo e um espaço para crescerem naturalmente, brincando, adquirirem capacidades neuro-motoras e sociais, envolvendo-se em actividades sensoriais, reguladoras de emoções, tanto mais relevantes quanto cada vez é mais escasso o tempo em que interagem com a respectiva família. Essas capacidades têm um valor intrínseco, por si só e para tudo o que virão a ser as crianças, bem mais importante que qualquer intencionalidade preparatória do ensino formal.

É desejável criar condições para que as cerca de 18 mil crianças, que estão fora do pré-escolar, o possam integrar? Obviamente que sim. Mas sem tornar isso obrigatório e com fundamento pedagógico, que não por razões assistencialistas.

Combate-se a pobreza apoiando as famílias, mas não retirando coercivamente os filhos às famílias. Dito de outro modo: o combate à pobreza e o apoio às famílias e à natalidade são vitais e necessários. Mas o direito das crianças ao desenvolvimento próprio de cada fase do seu crescimento não pode ser subalternizado em nome desse combate e desses apoios. As famílias devem ter a última palavra sobre os cuidados que preferem (ou podem) dar aos filhos. O Estado deve criar os recursos para acolher todos os que não permanecerem no seio da família. E, neste caso, falamos de todos, que não apenas a partir dos três anos. Ou estamos a fingir que ignoramos a insuficiência da rede pública de creches, situação dramática para os pais que trabalham e não podem pagar o acolhimento dos filhos na rede privada?

*Professor do ensino superior