20/01/2011

O meu dever é falar, para não ser tomado por cúmplice

in Público, 19/01/2011

Santana Castilho *

“Que patifes, as pessoas honestas” é uma citação atribuída ao escritor francês Émile Zola, que me revisita sempre que vejo os políticos justificarem com o manto diáfano da legalidade comportamentos que a ética e a moral rejeitam. E é ainda Zola que volta quando a incoerência desperta o meu desejo de falar, para não ser tomado por cúmplice. 

Foi duplamente incoerente o apelo ao respeito e à valorização dos professores que Cavaco Silva fez há dias em Paredes de Coura. Incoerente quando confrontado com o passado recente e incoerente face ao que tem acontecido no decurso da própria campanha eleitoral. Em 2008 e 2009, os professores foram continuamente vexados sem que o Presidente da República usasse a decantada magistratura de influência para temperar o destempero. E foi directa e repetidas vezes solicitado a fazê-lo. Por omissão e acção suportou e promoveu políticas que desvalorizaram e desrespeitaram como nunca os professores e promulgou sem titubear legislação injusta e perniciosa para a educação dos jovens portugueses. Alguma ridícula e imprópria de um país civilizado, como aqui denunciei em artigo de 11.9.06. Já em plena campanha, Cavaco Silva disse num dia que jamais o viram ou veriam intrometer-se no que só ao Governo competia para, dias volvidos, aí intervir, com uma contundência surpreendente, a propósito dos cortes impostos ao ensino privado. Mas voltou a esconder-se atrás do silêncio conivente, agora que é a escola pública o alvo de acometidas sem critério e os professores voltam a ser tratados, aos milhares, como simples trastes descartáveis. 

Imaginemos que o modelo surreal para avaliar professores se estendia a outras profissões da esfera pública. Que diria Cavaco Silva? Teríamos, por exemplo, juízes relatores a assistirem a três julgamentos por ano de juízes não relatores, com verificação de todos os passos processuais conducentes à sentença e análise detalhada do acórdão que a suportou. Teríamos médicos relatores a assistirem a três consultas por ano dos médicos de família não relatores; a verificarem todos os diagnósticos, todas as estratégias terapêuticas e todas as prescrições feitas a todos os doentes. Imaginemos que os juízes teriam que estabelecer, ano após ano, objectivos, tipo: número de arguidos a julgar, percentagem a condenar e contingente a inocentar. O mesmo para os médicos: doentes a ver, a declarar não doentes, a tratar directamente ou a enviar para outras especialidades, devidamente seriadas e previstas antes do decurso das observações clínicas. Imaginemos que o retorno ao crime por parte dos criminosos já julgados penalizaria os juízes; que a morte dos pacientes penalizaria os médicos, mesmo que a doença não tivesse cura. Imaginemos, ainda, que o modelo se mantinha o mesmo para os juízes dos tribunais cíveis, criminais, fiscais ou de família e indistinto para os otorrinolaringologistas, neurologistas ou ortopedistas. Imaginemos, agora, que um psiquiatra podia ser o relator e observador para fins classificativos do estomatologista ou do cirurgião cardíaco. Imaginemos, por fim, que os prémios prometidos para os melhores assim encontrados estavam suspensos por falta de meios e as progressões nas respectivas carreiras congeladas. Imaginemos que toda esta loucura kafkiana deixava milhares de doentes por curar (missão dos médicos) e muitos cidadãos por julgar (missão dos juízes). A sociedade revoltava-se e os profissionais não cumpririam. Mas este modelo, aplicado aos professores, está a deixá-los sem tempo para ensinar os alunos (missão dos professores), com a complacência de parte da sociedade e o aplauso de outra parte. E os professores cumprem. E Cavaco Silva sempre calou.

Ultrapassámos os limites do tolerável e do suportável. Ontem, o estudo acompanhado e a área-projecto eram indispensáveis e causa de sucesso. Hoje acabaram. Ontem, exigiram-se às escolas planos de acção. Hoje ordenam que os atirem ao lixo. Ontem Sócrates elogiou os directores. Hoje reduz-lhe o salário e esfrangalha-lhes as equipas e os propósitos com que se candidataram e foram eleitos. Ontem puseram dois professores nas aulas de EVT em nome da segurança e da pedagogia activa. Hoje dizem que tais conceitos são impróprios. Ontem sacralizava-se a escola a tempo inteiro. Hoje assinam o óbito do desporto escolar e exterminam as actividades extracurriculares. Ontem criaram a Parque Escolar para banquetear clientelas e desorçamentar 3 mil milhões de dívidas. Hoje deixaram as escolas sem dinheiro para manter o luxo pacóvio das construções ou sequer pagar as rendas aos novos senhores feudais. Ontem pagaram a formação de milhares de professores. Hoje despedem-nos sem critério, igualmente aos milhares. 

Os portugueses politicamente mais esclarecidos poderão divergir na especialidade, mas certamente acordarão na generalidade: os 36 anos da escola democrática são marcados pela permanente instabilidade e pelo infeliz desconcerto político sobre o que é verdadeiramente importante num sistema de ensino. Durante estes 36 anos vivemos em constante cortejo de reformas e mudanças, ao sabor dos improvisos de dezenas de ministros, quando deveríamos ter sido capazes de estabelecer um pacto mínimo nacional de entendimento acerca do que é estruturante e incontornável para formar cidadãos livres. Sobre tudo isto, o silêncio de Cavaco Silva é preocupante e obviamente cúmplice.

* Professor do ensino superior. s.castilho@netcabo.pt

06/01/2011

O estado comatoso do ensino em fim de ciclo político

in Público, 5 de Janeiro de 2011 :

O estado comatoso do ensino em fim de ciclo político

 Santana Castilho *


Poucas semanas volvidas sobre a divulgação pela OCDE do “PISA 2009” e o consequente discurso encomiástico do Governo, veio a público o “Projecto Testes Intermédios. Relatório 2010”, um instrumento de avaliação do desempenho dos alunos portugueses, da responsabilidade do Gabinete de Avaliação Educacional do Ministério da Educação. Que podemos retirar deste relatório? Que os alunos portugueses raciocinam mal e escrevem pior; claudicam quando solicitados a relacionar conhecimentos a que foram expostos em disciplinas diferentes ou a construir um raciocínio lógico, ainda que simples e utilizando informação explicitada no corpo do próprio teste; quando se exprimem ficam-se por níveis elementares de proficiência, longe do rigor frásico e revelam-se ignorantes gramaticalmente; têm manifestas dificuldades em ultrapassar o nível básico na resolução dos problemas colocados, seja qual for a área disciplinar em análise, com incapacidade de ultrapassar o que não seja elementar, simples e curto. Particularmente no ensino secundário, o relatório identifica a falta de rigor científico e a manifesta dificuldade de construir ideias próprias ou lidar com raciocínios demonstrativos. 

Aparentemente, há uma contradição insanável entre os dois estudos em análise. Mas não há. Eles chegam a conclusões semelhantes, usando metodologias distintas, o que reforça a solidez do diagnóstico sobre a mediocridade do ensino nacional. O que foi diferente foi o tratamento mediático e a manipulação triunfalista que Sócrates fez do “PISA 2009”. A este propósito é elucidativo confrontar a fantasia discursiva do primeiro-ministro com o que se pode ler na página 5 do relatório do GAVE, sobre o desempenho dos alunos portugueses: “… Afinal, nada de novo, nada que não tenha sido diagnosticado, de forma muito sintética, no relatório dos TI de 2009. E, se é certo que não se esperavam alterações substanciais em apenas um ano, período de tempo que em educação, todos sabemos, pouco representa quando se trata de possíveis mudanças nos comportamentos dos interlocutores, considera-se que as intervenções de natureza pedagógica e didáctica que devem ser implementadas, visando a correcção dos problemas detectados, não devem ser mais adiadas …”. 

Mas essas mudanças são impossíveis com Sócrates. O teor da resolução nº 101-A/2010 do Conselho de Ministros (que não distingue cortes possíveis de cortes cegos de resultados imprevisíveis) e a boçalidade com que esventraram as equipas directivas das escolas, acabadas de constituir, são tão-só sinais da desorientação de um Governo que desistiu e já esbraceja no naufrágio. Sócrates e Maria de Lurdes Rodrigues orientaram obsessivamente o ensino para resultados estatísticos obtidos a qualquer preço. Desvalorizaram o conhecimento, impuseram a substituição das didácticas exigentes pela ilusão tecnológica e promoveram paradigmas educacionais de terceiro mundo. Os resultados não podiam ser outros. Como na economia, estamos agora em estado comatoso no ensino e iniciamos o ano em letargia de fim de ciclo, de que só poderemos sair com mudança de Governo e de políticas e regeneração do estado anímico do corpo docente. Com efeito, há um cansaço generalizado entre os professores. As doenças depressivas e psiquiátricas cresceram preocupantemente no seio da classe. A contestação inicial às políticas de Maria de Lurdes Rodrigues apagou-se numa capitulação que a maioria não entendeu nem aceitou. À posterior desmotivação sucedeu a actual acomodação de sobrevivência, traduzida numa obediência rotineira a trabalho inglório. A burocracia sem limites, ditada por uma visão napoleónica da escola, sustentada por uma produção normativa diluviana e recheada de formulários burlescos e sem sentido, envolveu os docentes numa cultura de inutilidade kafkiana, que lhes deixa cada vez menos tempo para ensinarem. Alguns continuam a contestar. Mas a maioria aceita, conformada. As consequências de um ciclo político que teve por desígnio vergar e diminuir os docentes aos olhos da opinião pública serão mais nefastas do que aquilo que se pode observar imediatamente. Dois aspectos me preocupam sobremaneira, a saber: a saída por reforma antecipada, ainda que com graves penalizações financeiras, de um número substancial dos professores mais experientes e o futuro afastamento da profissão dos jovens mais talentosos. Trata-se, no primeiro caso, de uma ruptura grave no equilíbrio tradicional em qualquer quadro de exercício profissional, em que os mais velhos asseguram o enquadramento dos que vão chegando de novo. Sempre assim foi, nos hospitais, nas fábricas, em qualquer organização. Mas, de repente, nas escolas, muitos dos que serviam de referência e ainda tinham muito para dar começaram a partir. Quanto ao segundo aspecto, espera-nos o fenómeno que tocou a outros que cometeram erro idêntico (o Reino Unido é um bom exemplo): a médio trecho passaremos de excesso de professores a falta, particularmente nalgumas disciplinas (a Matemática será a primeira). Sem que valorize exageradamente as associações possíveis, que a econometria prevalecente transforma em correlações definitivas e dogmáticas, é curioso recordar o que os estudos da OCDE evidenciam a este propósito: os países cimeiros dos rankings dos sistemas educativos recrutam os seus professores de entre os mais qualificados graduados universitários e perseguem políticas de valorização e remuneração aliciante dos docentes em início de carreira.


* Professor do Ensino Superior
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Ora nem mais, Professor! - absolutamente na mouche! E eu quero mais é um ministro da Educação que tenha as suas ideias, a sua coragem e a sua lucidez!
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