28/12/2016

Os lesados do BES e os lesados do ME

no Público
28 de Dezembro de 2016

por Santana Castilho*

Sem direito a perguntas, logo sem a maçada de dizer quem paga, quem assume as garantias e se o milagre agrava ou não as contas públicas, António Costa anunciou, em conferência de imprensa, a solução do decantado problema dos lesados do BES. Perito que é em dar boas novas e virar páginas, quando o vi numa escolinha, pronto para a mensagem de Natal, admiti, por momentos, que ia anunciar a solução para os lesados do ME. Qual quê!

Em 30 de Novembro último, o Ministério da Educação tornou pública a intenção de abrir um concurso para integrar nos quadros os docentes com um mínimo de vinte anos de serviço e cinco ou mais contratos a termo resolutivo, celebrados nos últimos seis anos. São estes e muitos outros, precários de uma vida, os lesados do ME, um ministério que vive há anos fora da lei, explorando miseravelmente quem o serve e concebendo maliciosamente soluções que iludem, sem resolver. É disto que trata a proposta, glosada com as coreografias governamentais e sindicais habituais e o pesadelo de sempre.

São duros os meus qualificativos? Que é, senão déspota, quem exige aos outros um contrato estável ao cabo de três anos de serviço, mas permite vinte para si e, ainda assim, os armadilha com requisitos desprezíveis? Que é, senão desprezível, a subtileza de persistir em considerar que os contratos anuais e sucessivos tenham que ser no mesmo grupo de recrutamento? Que é, senão iníquo, ardiloso e inconstitucional, deixar para trás docentes com maior antiguidade, só porque já foram vítimas de injustiças anteriores? Que é, senão inaceitável, a utilização abusiva de milhares de contratos de serviço de duração temporária, ano após ano, que violam o Direito da União Europeia (Diretiva 1999/70/CE), como, aliás, foi reconhecido pelo respectivo Tribunal de Justiça?

Desde há muito que os concursos de professores geram injustiças e criam castas, por via de sucessivas mudanças de regras, donde a ponderação da iniquidade desapareceu. Tudo indica que assim será, uma vez mais, com alguma coisa a mudar para que tudo continue na mesma, tónica aliás dominante da actual aposta na Educação.

Navegar por entre a teia da legislação aplicável aos concursos de professores é um desesperante exercício de resistência, onde a corrupção constitucional parece não incomodar o poder. Só legisladores mentalmente insanos e socialmente perversos a podem ter concebido, acrescentando sempre uma nova injustiça à anteriormente perpetrada.

A contratação de escola, com total desrespeito pela graduação e tempo de serviço dos candidatos, foi via aberta para despudorados favorecimentos. Basta ler as kafkianas 1347 páginas de subcritérios aplicáveis ao recrutamento de 2014/15, em sede de BCE, para dispensarmos mais argumentos. Apesar disso, alguns têm agora o topete de a defender, talvez por nunca terem lido o artigo 47º da Constituição da República Portuguesa, que assim dispõe:

“Todos os cidadãos têm direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso”.

A arrogância, o ódio aos professores, a ignorância sobre a realidade do sistema educativo e das escolas foram os eixos identificadores daquilo que poderemos designar por bloco central de governo da Educação da última década, marcada por uma estratégia política de degradação de uma classe profissional, com salários definitivamente reduzidos e progressão na carreira ad eternum suspensa, demasiado numerosa e heterogénea para se unir eficazmente. Insidiosamente, a conflitualidade e a sobrevivência impuseram-se como modus vivendi predominante nas escolas. O objectivo de muitos, ante a pressão psicológica e emocional a que estão sujeitos, é manter o salário, quantas vezes a troco da dignidade mínima. Costa sabe-o bem, que nisso é mestre. Por isso juntou o tema à factura dos lesados do BES, Novo Banco, e CGD, e varreu tudo para debaixo do tapete, com a ligeireza com que tirou a vaquinha e o burrinho do cenário de Natal.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

17/12/2016

O topete dos pais apressados do PISA

no Público
17 de Dezembro de 2016

por Santana Castilho*

Guterres tomou posse como Secretário-Geral da ONU. Ronaldo arrebatou outra Bola de Ouro. Cada família portuguesa vai gastar neste Natal 359 euros, diz a Deloitte, e Marcelo vai beijar as 207 crianças que nasceram ontem, prognostico eu. Que importa que no mesmo dia tenham morrido 284 portugueses? Que importa que a Der Spiegel diga que Ronaldo subtraiu 150 milhões ao fisco? Que importa que as contas da Deloitte sejam o resultado de uma média que junta os gastos obscenos de poucas famílias aos gastos miseráveis de dois milhões de pobres? Que importa tudo isso e quem sou eu para contrariar a euforia deste nosso modo bipolar de viver? Mas a festa dos pais apressados dos resultados do PISA, essa, tenho que a contraditar.

Quando toca a hora de colher louros, é enternecedor ver ex-ministros, que se digladiaram e reclamaram autores de teses opostas, aceitarem que as suas políticas, juntas, produziram bons resultados. O paradoxo talvez se resolva se trocarmos as premissas da equação. Se em vez do “graças a Lurdes Rodrigues” ou do “graças a Nuno Crato”, dos prosélitos, tentarmos os bem mais certos “apesar de Lurdes Rodrigues” e “apesar de Nuno Crato”.

Ambos escreveram artigos sobre os resultados do TIMMS e do PISA (DN de 7/12). Antes de se porem em bicos de pés, qual casal modelo, pais apressados do sucesso alheio, eles que humilharam, acusaram, denegriram e prejudicaram os professores como ninguém, tiveram o topete de lhes tecer, agora, rasgados elogios. Que pouco decoro!

Lurdes Rodrigues, passando de fininho pela “festa” da Parque Escolar, pelo deboche das Novas Oportunidades e pelos milhões que os Magalhães deitaram ao lixo, lembrou o Plano de Acção para a Matemática, mas esqueceu que teve contra ela 100 mil professores.

Nuno Crato pôs de lado a tese da década perdida e escreveu que os factores mais importantes que explicam os progressos dos resultados do PISA de 2012 para 2015 foram: “novos e ambiciosos objetivos curriculares - as metas curriculares - e novas avaliações - as provas finais nos 4.º e 6.º anos de escolaridade.” Ora se atendermos ao facto de os exames dos 6º e 4º anos terem sido introduzidos, respectivamente, nos anos lectivos de 2011/12 e 2012/13 e tivermos presentes as características da amostra usada nos testes do PISA 2015, podemos afirmar que nenhum aluno que a integrou foi submetido a qualquer dos exames invocados, pelo que é aberrante atribuir-lhes impacto nos resultados. No que toca às metas (veja-se o calendário estabelecido no DR nº 242, 2ª série, de 14/12/12) e ainda que se admitisse o efeito “tiro e queda”, o que em Educação é grotesco, elas nem chegaram a tocar um quarto dos alunos que prestaram provas em sede do PISA 2015.

Referindo-se às metas, escreve, ainda, que “foram centradas no conhecimento e não em "competências" vagas e impossíveis de avaliar.” E linhas á frente, sobre o PISA (que é construído e desenvolvido para avaliar competências, note-se bem), diz que “os documentos do estudo PISA são muito ricos.” Por fim, cereja no topo do escrito, afirma que o estudo permite “também perceber que as vias vocacionais tiveram um papel decisivo”, quando o que o relatório do PISA diz é que a orientação precoce dos alunos para percursos vocacionais é perniciosa para a aquisição de competências básicas essenciais.

Ligeireza? Desonestidade intelectual? Só ele saberá. Se é que sabe!

A modéstia e a humildade seriam prudentes se estes dois carrascos dos professores, finalmente, se tivessem enxergado e entendido que o acontecimento a celebrar é simples e exprime-se assim: apesar do aumento desmesurado das cargas de trabalho, do congelamento das carreiras, da perda de salário, de um ambiente institucional burocraticamente opressivo e inútil e das repercussões na disciplina escolar da degradação social de muitas famílias, os professores portugueses, com dignidade e responsabilidade profissional ímpares, aguentaram, não abandonaram os seus alunos e fizeram-nos progredir.

Em nome do crescimento, da eficiência e da eficácia, os instrumentos transnacionais de avaliação comparativa têm-se vindo a constituir como autoridades veneráveis e únicas, que paulatinamente unificam práticas e reduzem culturas e contextos díspares a estereótipos modais e à mesma escravatura de resultados, ao alcance de um clique.

Mas se um clique basta para aceder a séries estatísticas, nenhum clique chega para as explicar e interpretar, muito menos para as desconstruir, enquanto instrumentos de poder e controlo social.

Sim, o nosso sistema de ensino passou à frente da Finlândia no Olimpo da OCDE. Que nos afaguem pois o ego, mas não nos ceguem, os resultados do TIMSS e do PISA. Porque os nossos progressos estão colados a muito mais aulas para aprender o mesmo que os outros aprendem em menos aulas (temos 275 horas anuais em Matemática, que comparam com uma média de 157 nos países que foram avaliados pelo TIMSS e com as 100 da Coreia do Sul, terceira classificada). Porque o número de estudantes portugueses que já reprovaram um ano ultrapassa os 30% na amostra que se sujeitou ao PISA, enquanto a média da OCDE se fica pelos 13%. Porque, acima de tudo, estes programas deixam de lado todas as vertentes humanistas, morais, cívicas e artísticas dos sistemas de ensino (Andreas Schleicher, director do PISA, foi claro quando disse que o programa pretendia medir quanto “value for money” resulta dos sistemas de ensino em análise). Porque, em limite, o excesso de fé nestes programas pode estar para a Educação integral das nossas crianças como os martelos do Estado Islâmico estiveram para as relíquias do museu de Mosul.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

02/12/2016

Números duros, políticas moles


Há dias, foi tornado público que, durante o ano lectivo de 2015/2016, se registaram 5051 ocorrências do foro criminal nas escolas portuguesas, isto é, 500 por mês, em média. No ano anterior haviam sido registadas 3930. Sublinho que não se trata de incidentes disciplinares. Foram ocorrências que caem sob a alçada do Código Penal. Cumulativamente, a PSP teve ainda que intervir em mais 2001 situações de outro tipo. Estes números são preocupantes e apelam à reflexão.
Aquando de casos mais graves de violência em meio escolar, verifica-se, por parte das autoridades respectivas, uma propensão para dissimular os acontecimentos. Mas se por um lado sabemos que a tendência para iludir o óbvio foi classificada por Freud como a primeira paixão da humanidade, por outro também sabemos que ignorar a realidade nunca nos salva. Aceitemos, então, que a indisciplina é hoje um dos maiores, senão o maior, problema do sistema de ensino e que há uma evidente crise de autoridade na Escola. Quando a estudamos, são esmagadoras duas situações responsáveis: do ponto de vista interno, a falta de coragem para adoptar políticas adequadas à solução dos problemas, materializada pela manutenção de uma lei inadequada, que introduziu no processo disciplinar o método processual penal, com um cortejo de prazos, audições e garantias pedagogicamente desadequadas, tudo permitindo a proliferação de pequenos marginais; do ponto de vista externo, a crescente demissão dos pais para imporem disciplina aos filhos.
A maioria dos pais de filhos indisciplinados não gostaria de ter filhos indisciplinados. Mas não sabe ou não pode discipliná-los. Os restantes são negligentes, que não se interessam pelos filhos e são, eles próprios, quantas vezes, marginais.
Os alunos indisciplinados criam problemas graves, que perturbam a vida da comunidade. A Escola deve fazer o possível para os ajudar. Mas antes tem a obrigação de proteger os outros e não permitir que os primeiros lhes tornem a vida impossível. A palavra-chave de uma estratégia de actuação é responsabilizar. Não é ignorar, branquear, contemporizar.
Os jovens são seres que vivem de modo particularmente intenso e até tumultuoso as suas emoções. Os adultos têm mecanismos de regulação dessas emoções. Os jovens, em processo de formação, procuram-nos. Se em casa não os encontram, temos que dar instrumentos à Escola para enfrentar o obstáculo.
O empirismo de qualquer vida vivida (a redundância é propositada) dispensa a cultura psicológica mais erudita para sabermos como tem que ser. Numa primeira fase os comportamentos são regulados a partir de fora: são os pais, são os professores, são os adultos que actuam, que moldam. Num segundo momento, de co-regulação, o ser em crescimento vai aprendendo, na interacção com os outros, a dominar-se e respeitar os pares (sem dispensa da atenção cuidada e, sempre que necessário, activa e interventiva, do adulto). Para chegar, por fim, à auto-regulação, estádio maturo e autónomo em que, sozinhos, encontramos o nosso equilíbrio social.
Simples? Não, complexo. Sobretudo quando os políticos não percebem que tratar isto exige uma longa “linha de montagem”, que requer pessoas com tempo e meios para apertar os “parafusos”.
Dispendioso? Talvez não, se se derem conta que dispensa muitos envios para o “controlo de qualidade”. E, mais ainda, se se derem conta que os produtos acabados desta “linha de montagem” são pessoas. Isso, pessoas!
Uma forma de ignorar o problema da indisciplina é não o assumir como coisa da sociedade e da Escola e torná-lo coisa do professor, cuja função é mediar a aprendizagem dos alunos e não gerir conflitos provocados por comportamentos disruptivos. Tenhamos presente que essa função principal é constantemente secundarizada, quando não anulada, pela indisciplina e que grande parte do tempo lectivo é ocupada com a gestão de conflitos, quando devia ser usada com a gestão das aprendizagens.
In “Público” de 30.11.16