27/07/2020

Um Trump qualquer apreciaria este ministério

no Público
22 de Julho de 2020

por Santana Castilho*


1. Logo que o ministério da Educação decidiu manter a “normalidade” dos exames nacionais do 11º e 12º anos, num contexto radicalmente anormal, e anunciou as alterações que pretendia introduzir-lhes, afirmei que ficava definitivamente anulada a sua validade, como instrumento de relativização das classificações das escolas e garante do cumprimento universal de um curriculum nacional.

Não convivo mal com pontos de vista diferentes dos meus e estou sempre disponível para ser confrontado com eles, antagónicos que sejam. Mas não posso aceitar que a credibilidade objectiva que deve presidir aos exames nacionais seja reduzida a subjectividades de interesses conjunturais. Exames realizados, dois exemplos, dois entre outros possíveis, a que se junta um extracto do Expresso, mostram a degenerescência e desfaçatez a que chegámos:

- Como bem escreveu Orlando Farinha (Observador de 10/7/2020) e por mais insólito que pareça, um aluno pôde ter 15,5 valores, sem escrever uma única palavra no seu exame de Filosofia. Será possível entendermos a Filosofia dissociada da capacidade argumentativa? É aceitável que um exame de Filosofia possa ser cotado com 15,5 valores (e mesmo mais) sem que o examinado seja solicitado a discorrer sobre um problema, por pouco complexo que seja, analisando-o e teorizando sobre ele? Não sendo a Filosofia servida por metodologias empíricas ou formais, que permitam prever a obtenção de resultados precisos, ocupando-se antes de problemas fundacionais do pensamento humano, poderemos medir o conhecimento que os alunos retiraram da frequência da disciplina por um generoso conjunto de perguntas de escolha múltipla?

- O segundo exemplo do aviltamento que é feito ao ensino sério está na análise eloquente e fundamentada que Elisa Costa Pinto (Público de 11/7/2020) fez sobre o exame de Português do 12º ano, cuja leitura recomendo reiteradamente. É compreensível a vergonha que a autora expressa por ver a metodologia dos “testes à americana” ser aplicada à análise de textos literários e por constatar a indigência das questões formuladas aos alunos sobre alguns dos nossos autores clássicos.

- “Não sou leitora, nunca fui muito de ler livros, mas sempre adorei tê-los”, disse candidamente ao Expresso a professora Isa, que já foi defendida no Parlamento de “críticas cruéis e mesquinhas” pelo primeiro-ministro, a mesma que terá pronunciado 84 Oks na aula de Português, que abriu essa maravilhosa demonstração pública das liberalidades pedagógicas dos professores do século XXI, que cantam rap, dançam zumba, prestam-se a demonstrar as suas criativas metodologias nos programas de Cristina Ferreira e de Manuel Luís Goucha e foram estrelas no “5 Para a Meia Noite” e no “O Preço Certo”.

Um Trump qualquer apreciaria muito este Ministério da Educação, pela regressão mental que promove, transformando aulas em entretenimento e exames em charadas de cruzinhas. Aconselhar injecções de lixívia para curar a covid-19, ou usá-la para branquear os resultados da “flexibilidade curricular” e das ”aprendizagens significativas”, equivalem-se no disparate.


2. Na génese do estado a que a Educação chegou, esteve um consistório de 12 sábios, que apontou o caminho para o século XXI, qual estrela de Belém. Na génese do que poderá ser o Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030 esteve só um, notoriamente sabedor. O problema não é a qualidade do documento, que a tem. O problema é programar-se o futuro de um país pela cabeça de um só cidadão, sem ouvir as instituições políticas, profissionais, académicas e sociais. Como o próprio documento reconhece, diagnósticos há muitos, feitos por vários homens igualmente inteligentes (recordo, por todos, o relatório de Michael Porter). O problema é a escassez de políticos capazes de definir caminhos e de mobilizar a sociedade para agir e os executar, talvez porque, como o documento volta a reconhecer, citando Kant, “o mundo é governado pela paixão, pela irracionalidade e por males periódicos”.

Em todo o caso, que alguns dos milhões esperados de Bruxelas sejam “orientados para o rejuvenescimento, formação e atualização do corpo docente, para o apoio aos estudantes de famílias com maiores dificuldades económicas, bem como para a requalificação e modernização da rede de escolas”, como o plano propõe.

*Professor do ensino superior

08/07/2020

Nanismo político e idadismo digital

no Público
8 de Julho de 2020
por Santana Castilho*


1. Todas as epidemias têm períodos mais ou menos longos de novos surtos intermitentes e nenhum país tem, por enquanto, uma solução para a actual pandemia. Mas o futuro ficará mais difícil nos que são governados por políticos que torturam a realidade com o seu nanismo político. Não há muito tempo, o presidente Marcelo exultava com um pindérico orgulho nacional, que nos comparava com espanhóis e italianos. Não lhe ocorreu, na altura, comparar-nos, por exemplo, com o Vietname, com uma população dez vezes maior que a nossa e uma longa fronteira com a China, que não registava, então, um só morto. Agora, António Costa e Santos Silva não entendem porque vale mais para os ingleses o nosso segundo pior rácio europeu de novos casos de covid-19 por 100 mil habitantes que o que foi escrito no Tratado de Windsor, em 1386.

Desde a cena confrangedora, que reuniu no Palácio de Belém nada menos do que o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República, o primeiro-ministro, o ministro da Economia e a ministra da Saúde, para anunciarem ao país a realização de meia dúzia de jogos de futebol, que não dava pela existência do ministro da Educação, que também lá esteve. Reapareceu, finalmente, em entrevista ao Expresso. Do que disse e do que consta nas orientações oficiais para a organização do próximo ano lectivo, resulta um caderno de encargos irreal para as escolas e para os professores que, em nome de uma autonomia inexistente mas hipocritamente invocada, acabarão responsabilizados por tudo o que possa correr mal. O que antes era imperativo (dois metros de distanciamento por altura da reabertura das aulas, em Maio, e um metro de distanciamento aquando das primeiras orientações para 2020/21) deu lugar ao “sempre que possível” e ao “preferencialmente”, até chegarmos à seguinte insólita afirmação do ministro:

 “Os alunos vão caber todos na mesma sala. Não haverá desdobramento de turmas. A única obrigatoriedade é a máscara a partir do 2º ciclo. O distanciamento não.”

É preciso cara dura para dizer isto, depois de termos sido literalmente massacrados, meses seguidos, com a necessidade de respeitar o distanciamento social, como a medida profiláctica mais eficaz de combate à pandemia.


2. A adesão pouco reflectida a fenómenos da moda acaba sempre alimentando mecanismos de constituição de poderes. Foi assim com as pedagogias salvíficas para o século XXI, começa a ser idêntico com o fluxo de ideias alternativas às aulas presenciais e a obsessão pela escola digital, seja lá o que isso for, que não é, isso sei, o gatilho mágico que resolve os atrasos acumulados dos nossos alunos.

Os professores reorganizaram-se para que, numa situação de excepção, se minorasse o prejuízo dos alunos. Entregaram-se abnegadamente a um desafio que não foi fácil, lhes pediu mais do que o muito que já se lhes pedia, e foi vencido. Apesar disso, têm vindo a ser alvo de várias prosas, que glosam o que apelidam de iliteracia digital dos professores mais velhos, numa onda de idadismo estigmatizante. Entendamo-nos: os professores utilizam, uns mais, outros menos, naturalmente, os meios informáticos, desde que eles se democratizaram. Não precisam, novos ou velhos, de serem peritos em informática para resolver todos os passos processuais de utilização da tecnologia disponível. Não fosse ela desenvolvida para ser utilizada em massa, por isso mesmo ao alcance de utilizadores universais. Outra literacia, não digital, que abunda no seio dos professores portugueses, desiderato difícil de conseguir numa escola de massas e numa sociedade consumista, é a que permite tocar o coração dos alunos, estabelecendo um vínculo afectivo essencial para que a aprendizagem resulte.

3. Nos últimos dias falou-se de rankings, falou-se do que se perdeu no ano em curso e falou-se, sobretudo, de como vai ser o próximo ano. Mas nada se tem prognosticado sobre as classificações que, provavelmente, certificarão um paradoxo: o ano em que menos se aprendeu terminará com resultados gerais bem acima da média. Porque todos os critérios formais cederão passo ao critério de não penalizar, ainda mais, todos os alunos coercivamente privados da escola e, particularmente, aqueles que, sem equipamentos necessários, ficaram impossibilitados de acompanhar as soluções de recurso.

*Professor do ensino superior