30/03/2022

Pior não fica

 


no Público

30/3/2022

por Santana Castilho*

 

“De uma vez por todas o país tem de compreender que o maior défice que temos não é o das finanças. O maior défice que temos é o défice que acumulámos de ignorância, de desconhecimento, de ausência de educação, de ausência de formação e de ausência de preparação”. Quem disse isto, no Palácio da Bolsa, a 3.12.2017, foi António Costa, primeiro-ministro de um país onde muitas crianças só comem uma refeição por dia, fornecida pela escola, onde estudantes abandonam estudos por falta de meios, onde os sem-abrigo persistem nas ruas das grandes cidades, onde as reformas de muitos velhos não chegam para a alimentação e medicamentos, onde muitos têm de emigrar para sobreviver e alguns se suicidam, por fome e vergonha. O mesmo que acaba de preferir a continuidade degradante das políticas de Educação dos seus governos à transformação necessária.

Perante a realidade educacional visível, em baixa, não entendo as expectativas, em alta, que surgiram na imprensa (confederações de associações de pais, associações de directores e ensino privado) quanto ao que se pode esperar do novo ministro da Educação. Como se o futuro expectável não fosse a continuidade do que fez nos últimos seis anos. Com efeito, João Costa é agora ministro de jure. Mas que foi ele, de facto, que governou o ministério nos últimos seis anos. É realista esperar que faça agora o que não fez antes? É realista esperar que altere agora, como seria necessário, a organização pedagógica e curricular que moldou nos últimos seis anos? É realista esperar que neutralize agora, como seria necessário, os lobbies que criou e protegeu nos últimos seis anos?

A análise do discurso de João Costa, assente na retórica provinciana do “aluno do século XXI”, do “trabalho de projecto”, da “flexibilidade pedagógica”, do “trabalho em rede” e dos “nados digitais”, expõe uma mistura de lemas gastos com teorias pedagógicas que foram abandonadas porque falharam, depois de terem lançado a confusão no sistema de ensino.

Quando se junta hoje a melodia das “aprendizagens essenciais” ao estribilho da “flexibilidade pedagógica”, vemos o que a música de João Costa deu: um desconcerto nacional, particularmente para os que já chegam à Escola marcados pela sorte madrasta de terem nascido em meios desfavorecidos. Porque a inovação pedagógica do aprender menos não remove o insucesso. Mascara-o. Porque os experimentalismos assentes no abaixamento da fasquia não puxam pelos que ficam para trás. Afundam-nos. Porque o escrutínio sério das políticas educativas de João Costa, que só um pensamento crítico livre de contaminações ideológicas permite, demonstra-o.

Das celebrações fátuas de João Costa sobressai um excelente diploma sobre educação inclusiva. O que o atrapalha é a realidade: as escolas que temos, os meios que não temos e os alunos que existem com necessidades educativas especiais severas. Ter todos dentro da mesma escola é um excelente princípio, que nenhum civilizado contesta. Mas não o concretizamos fingindo que determinados alunos podem dar respostas que sabemos que nunca poderão dar, pedindo do mesmo passo aos restantes que fiquem parados. É isto que João Costa tem promovido: uma exclusão dupla, mais gravosa ainda para os que nasceram diferentes.

João Costa passou seis anos, laboriosamente, a desregular todo o mecanismo de avaliação do desempenho do sistema de ensino (anulando a comparabilidade dos dados recolhidos ao longo dos tempos), a desconstruir a estrutura curricular e a produzir normativos e formação em torrentes sobre o que deve ser feito no âmbito da autonomia das escolas, promovendo, assim, o mais hipócrita homicídio, à nascença, dessa mesma autonomia. As fotos que o representam vestido de escuteiro e uns números giros de filosofia Ubuntu e avaliação MAIA dão-lhe a credibilidade com que uma parte da comunidade se contenta. Deus abençoe esses sacristas.

Em penúltima instância, a culpa da situação a que chegámos é de uma oposição política castrada. Em última, é de quem percebe o desatino e se resigna. Afinal, é graças a essa resignação e à cumplicidade ululante dos sacristas do momento que continuaremos a ser esmagados e enxovalhados. A Educação está tão desgraçada que dificilmente alguém a poderá desgraçar ainda mais. António Costa inspirou-se em Tiririca: pior não fica.

*Professor do ensino superior

16/03/2022

Medir o quê e medir para quê?

no Público

16/3/2022

por Santana Castilho*

1. De início falávamos dos atrasos nas aprendizagens, provocados pelas enormes irregularidades verificadas nos dois últimos anos- lectivos. Agora falamos dos atrasos no Plano de Recuperação de Aprendizagens, provocados pela escassez de professores, mais grave no Algarve e Lisboa e Vale do Tejo, mas já estendida a todo o país. Porque sem professores não se recuperam aprendizagens e sem presente nem futuro na carreira não se atraem professores.

Tendo este quadro por fundo, o Governo entendeu que as condições de aprovação e conclusão do ensino básico se limitariam às classificações internas e que no ensino secundário continuariam as regras que vigoraram nos dois últimos anos: só será necessário realizar os exames às disciplinas específicas para acesso ao ensino superior. Entender a decisão como apropriada às circunstâncias não impede de a considerar como mais uma achega para a diminuição da exigência do sistema de ensino.

2. De 2 deste mês a 22 Abril, em 80 países participantes, decorre a aplicação dos testes PISA, os quais, como é sabido, medem literacias diversas dos alunos com 15 anos de idade. Portugal está envolvido no processo com 12.000 estudantes, pertencentes a 231 escolas.

A qualidade psicométrica deste programa tem sido criticada, sob ângulos diversos, ao longo dos tempos. Ainda recentemente, António Teodoro (Critical Perspectives On PISA As A Means Of Global Governance) lhe apontou problemas metodológicos, incoerências e limitações, afirmando mesmo ser um erro crasso calibrar políticas pelo PISA. Com efeito, alinhar acções educativas com estratégias assentes na teoria do capital humano, mais do que inadequado, é redutor para o desenvolvimento dos jovens e obriga-nos a formular a pergunta: o que devemos esperar da Educação? Que forme homens completos ou competidores económicos?

A tendência da OCDE para estabelecer uma tessitura entre a missão da escola e o interesse da economia tem promovido a aquisição de competências instrumentais mais do que a aquisição do conhecimento. Só que a Educação é arte de pessoas e o seu objectivo é formar pessoas, que não objectos produtores de lucro. Mais do que mundializar os interesses económicos, deve a Educação mundializar os direitos fundamentais da pessoa humana.

3. Quatro conceituados autores da economia da educação, numa meta-análise de dados de 164 países (Measuring Human Capital Using Global Learning Data, 2021, Nature, Vol. 592) referem que ao aumento generalizado do tempo de escolaridade tem correspondido um crescimento baixo ou mesmo nulo das aprendizagens dos alunos. Reportando-se a dados de 2000 a 2017, dizem os autores que esses dados mostram um fraco progresso no que se aprende, ou seja, os alunos estão na escola, mas aprendem muito pouco. Ora é por aqui que fomos e continuaremos com os governos de António Costa, suprimindo a avaliação séria, manipulando resultados escolares e promovendo narrativas pedagógicas já derrotadas no passado como inovações do terceiro milénio.

O nosso sistema de ensino continuará pressionado com o aumento de temas que devem integrar as aprendizagens. Um a um, é fácil defender com argumentos a pertinência desses temas. Vistos em conjunto, abalroam duas variáveis inultrapassáveis: o número de horas lectivas disponíveis e os limites de assimilação por parte dos alunos.

A organização do ensino apelará cada vez mais para a dimensão controladora e cada vez menos para as dimensões reflexiva, colaborativa, afectiva e relacional. Particularmente com a ênfase dada à chamada digitalização da educação, o ensino institucional tenderá para o rapidamente feito, substituindo o desenvolvimento de pessoas inteiras pelo desenvolvimento de autómatos.

Tudo porque há quem não entenda que se Frank Lloyd Wright tivesse vivido no mato, nunca teria projectado o que projectou, ainda que, concedo, a sua cubata pudesse superar a dos vizinhos.

*Professor do ensino superior

 

02/03/2022

O tempo da fancaria pedagógica


no Público

2 de Março de 2022

por Santana Castilho*

Enquanto as exigências mínimas vão descendo ao nível dos jardins-de-infância, o vazio criado pela ausência de soluções sérias para um sistema de ensino em desagregação é preenchido pela alienação provocada por pedagogias mágicas. Como se em Educação existissem formações ou poções milagrosas que resolvam a falta de vontade de aprender por parte dos alunos ou substituam o trabalho abnegado, longo e aturado dos professores. Trabalho em que poucos reparam e os mandantes não reconhecem. É principalmente por isso que o deslumbramento com os resultados anunciados por fancarias ocas e palavrosas é perigoso.

1. Na novilíngua pedagógica, que quer banir a diferenciação por género na linguagem usada nas escolas, a palavra “mãe” ficará proscrita e substituída por “progenitor”. “Rapazes”, “raparigas”, “filho” ou “filha” serão vocábulos simplesmente varridos e trocados por uma designação neutra: estudantes. Dos formulários de matrículas é sugerido que sejam removidas as designações “feminino” ou “masculino” e do vestuário as características distintivas tipicamente femininas ou masculinas. Finalmente, estas e outras iniciativas na mesma linha “inclusiva” devem ser formalmente acomodadas num código de conduta que, não sendo respeitado, impedirá o acesso às escolas. O argumento central do discurso é que “um número crescente de jovens está a identificar-se como não binário, e a educação precisa responder a isso”.

Tranquilize-se o leitor que o cenário da acção sintetizada é o Reino Unido (The Telegraph de 14.2.22). Mas a quem conheça o detalhe programático da nossa disciplina de Educação para a Cidadania e algumas desastradas interpretações que o mesmo tem permitido, não causará surpresa se a bizarria for importada.

2. Um psicólogo eminente, uma associação de pais e uma editora, apoiados por um friso de personalidades públicas, lançaram um projecto assente na necessidade de tornar as escolas “amigas” das crianças. Ser-me-á legítimo deduzir que promotores e acompanhantes pensantes admitem que existem escolas inimigas das crianças?

3. Foi recentemente notícia um projecto de “formação socio-emocional” para professores, organizado pelo “Programa Gulbenkian Conhecimento”, com o apoio do Ministério da Educação. Trata-se de uma iniciativa piloto, com intenção de ser alargada no futuro a todos os profissionais da educação, que curiosamente se segue a uma outra da mesma índole, mas dirigida aos alunos, conhecida por “Programa Escolas Ubuntu”. Como se a profissão docente não tivesse, desde sempre, a cooperação e o profundo relacionamento humano como princípios fundadores e necessitasse agora de doses formativas de reforço.

4. Nos tempos que correm, nascem estudos constantemente, cujas métricas, mais do que o rigor técnico usado e a fiabilidade das conclusões, logram atrair a atenção da comunicação social. Desta feita, dois investigadores da Universidade do Minho, patrocinados por uma empresa multinacional (Promethean World Ltd.), com interesses comerciais dominantes no mercado das tecnologias digitais, inquiriram 2.580 docentes de um universo de 130.430 existentes, para concluir que o grande problema é a falta de formação dos professores. Sucede que quem conhece o dia-a-dia das escolas portuguesas sabe duas coisas: que não existe genericamente hardware ou software por aproveitar por falta de competência funcional dos professores, tenha ela sido adquirida em acções formais pagas à instituição a que pertencem os investigadores, ou a congéneres, ou resultado de autoformação, de iniciativa própria; que sendo importante a tecnologia digital, mais importante é a “tecnologia” humana.

5. Logo que foi conhecido o aliviar das restrições relacionadas com o combate à pandemia, pais e directores de agrupamentos de escolas, secundados pelo parecer de vários especialistas, manifestaram desagrado face à manutenção da obrigatoriedade de uso de máscara nas salas de aula, recordando a barreira à comunicação que o seu uso provoca entre professores e alunos.

Talvez fosse altura de o Ministério da Educação considerar a adopção de medidas técnicas, de eficácia provada, (ventilação mecânica, sistemas de purificação e monitores de dióxido de carbono) para promover e controlar sistematicamente a qualidade do ar que se respira no interior dos espaços fechados escolares.

*Professor do ensino superior