28/09/2022

Não, à ressurgência da BCE!

Não, à ressurgência da BCE!
 
Marcelo Rebelo de Sousa abriu o ano lectivo na escola Pedro Nunes. Não fugindo às generalidades que caracterizam boa parte das intervenções que faz, a propósito não importa de quê, disse, desta feita, que o Governo não tem a cabeça virada para a Educação e que é hora de se fazer um debate sério sobre os seus problemas.
 
Aproveito a deixa e pego num, o novo regime de recrutamento e colocação de professores, no âmbito do qual o ministro da Educação pretende que as escolas passem a escolher 1/3 dos seus docentes, para lembrar que a contratação de escola (a BCE, que deu desastrosos resultados) já existiu e foi abandonada em 2016, por um Governo a que João Costa pertenceu, por ser um processo marcado por favorecimentos clientelistas e menos justo do que o que tem uma lista de graduação nacional por base.
Não nos iludamos, por mais liberal (figura no programa do IL) que seja a proposta: a Constituição diz (nº2 do Art.º 47º) que “todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso”; concursos locais (cerca de 5.836 escolas e 713 agrupamentos) seriam bem mais complexos e dispendiosos do que um concurso nacional, agregador de indicadores minimamente equitativos e justos; as escolas não têm recursos para promover concursos locais sérios, que teriam de ter critérios diferentes, consoante as áreas disciplinares; admitindo que uma escola cheia de carrancudos problemas contratasse um professor com dons superiores para lidar com eles, nada poderia impedir que esse docente, uma vez nos quadros, zarpasse para outra escola, de rosto mais sereno, fazendo da contratação “por perfil” porta giratória para tratar da vida; e já experimentámos a ineficácia gestionária de milhares de ofertas de escolas em simultâneo e a cascata de desistências dos candidatos que, podendo habilitar-se a todas, fazem depois escolhas que obrigam a novas iniciativas de selecção. 
 
Uma autonomia assim desenhada aumentaria as desigualdades entre diferentes zonas do país, com as escolas “mais reputadas” a disputarem os docentes “mais talentosos”, como, aliás, ficou demonstrado em sede de experiências de outros países. Os defensores da medida citam-nos. Bom seria que reflectissem sobre os estudos que expõem os resultados obtidos, que não são bons.
 
Escolher professores por “perfis” (gostava que o ministro explicasse direitinho o que é isso), num universo de milhares de candidatos e escolas, para além de substituir a objectividade possível por uma subjectividade indesejável, introduziria demora e entropias inaceitáveis. Simplesmente, porque o nosso sistema não funciona vaga a vaga. Entendamo-nos: os concursos nacionais, assentes numa fórmula de graduação, já funcionaram em modo estável, colocando os professores a tempo e horas, sem protestos. Esqueceram-se deste facto? 
 
Posto isto, não reconheço que ensinar em contextos sociais difíceis requer características específicas e acrescidas por parte dos professores? Obviamente que reconheço. Simplesmente, o preenchimento directo de lugares de quadro pelas escolas não só não resolveria o problema como seria um dos mais graves atropelos a acrescentar à vasta lista de injustiças cometidas em sede de colocação de professores. Como reagiria um contratado, que espera há 20 anos pela entrada no quadro, se soubesse que um colega, acabado de formar, lhe passava à frente pela porta estreita de um convite do director de uma escola?
 
A desejável adequação do processo de recrutamento às necessidades particulares das escolas (e, já agora, às dos professores, também) é um bom objectivo. Mas não é com uma ilusória intervenção a jusante que lá chegamos. É necessário agir a montante, corrigindo primeiro os atropelos e as injustiças escabrosas que se acumularam em sede de concursos e reformando, depois, profundamente, toda a gestão de recursos humanos do sistema. Tudo coisas de que António Costa foge a sete pés e João Costa não sabe fazer.
 
Em conclusão: uma coisa é o interesse público, que o concurso nacional protege, outra os interesses particulares, que os concursos de escola favorecem; esses concursos reforçariam o poder discricionário e autocrático dos maus directores, cujo número é, infelizmente, elevado.
 
In "Público" de 28.9.22

 

14/09/2022

O mestre clérigo e o aprendiz diligente

O mestre clérigo e o aprendiz diligente
 
Recentemente, o país foi confrontado com o discurso de dois artistas, ambos Costa de sua graça. O primeiro, António, empedernido mestre clérigo na arte de enganar a opinião pública. O segundo, João, diligente aprendiz no ofício de vender aos portugueses gato por lebre e atezaná-los contra os professores.
 
1. Há uma lei que regula o mecanismo de actualização das pensões de reforma. António Costa, qual senhor feudal, suspendeu-a autocraticamente e ludibriou os súbditos, consciente de que a maioria em que se apoia não lhe porá travão ético. Sim, parte do aumento que a lei garantia aos pensionistas chega-lhes por antecipação em Outubro de 2022. Mas o menor aumento de 2023 repercutir-se-á negativamente e para sempre nos aumentos vindouros. O truque foi baixo, mas teve o alto e instantâneo patrocínio de Marcelo Rebelo de Sousa.
 
2. Em declarações recentes, o ministro da Educação referiu-se a “padrões de baixas médicas irregulares” por parte dos professores e revelou que está em fase de adjudicação a contratação de juntas médicas para as “vigiar” e “identificar”, eventualmente, como irregulares. 
 
A prática agora anunciada não é nova. Já foi usada pela então Direcção Regional de Educação de Lisboa e Vale do Tejo, que contratou uma “clínica médica”, constituída por um médico reformado da PSP e pelo cônjuge, médica reformada da GNR. Pela módica quantia de 54.375,00€, este vasto corpo clínico ficou ao serviço do ministério da Educação por oito meses e 25 dias. Especializou-se em aviar professores à razão de 50 por hora. Pelo menos num caso, em que fui solicitado a intervir, um “criterioso” relatório estava previamente assinado pelo “presidente” da junta, que nem sequer esteve presente na farsa. Quem quiser detalhes, respire um pouco de pó dos arquivos e vá à edição deste jornal, de 13 de Março de 2013. 
 
Porque nestas colunas denunciei macabras decisões de juntas que decretaram o retorno às aulas de professores vítimas de doenças terminais, que morreram dias volvidos, estarei particularmente atento às anunciadas 7.500 juntas do século XXI.
 
Sete anos em funções governativas não foram suficientes para João Costa perceber que as baixas são um epifenómeno resultante de dois factores: a classe docente está fortemente envelhecida e temos demasiados professores sem saúde para exercer; as políticas de gestão dos recursos humanos do Ministério da Educação são desumanas e irracionais (a uma semana do início do ano, por altura da primeira reserva de recrutamento, havia 582 docentes dos quadros sem horário lectivo numas escolas, enquanto faltavam em abundância noutras), coagindo demasiados professores à precariedade toda a vida e condenando-os a aceitar colocações incompatíveis com a prestação de cuidados de assistência a familiares com doenças terminais ou incapacitantes. 
 
João Costa disseminou o medo no seio dos professores mais fragilizados do sistema. Mentiu e manipulou a opinião pública, provocando-lhe falsas emoções e sentimentos sobre esse grupo de docentes. Com aquele seu jeito sonso, foi aspergindo energia negativa contra e sobre aqueles que devia proteger.
 
Depois de lançar lama sobre os professores, com maliciosas insinuações de desonestidade, João Costa apressou-se agora a aligeirar culpas próprias referindo que a falta de docentes não é problema exclusivamente português. Como se isso fosse atenuante e não tão-só problema comum a todos os países que incensaram as doutrinas neoliberais de menorização dos servidores públicos. 
 
João Costa nunca entenderá que a Escola, para os professores, não é só o local onde passam a maior parte de todos os seus dias, mas um projecto de vida, ao qual dedicam o melhor de que são capazes.
João Costa tem feito tudo para transformar os professores em operários da sua escola, uma escola sem integridade pedagógica e científica. Misturar a sua cegueira com a busca de uma falsa modernidade vem dando o resultado desastroso de deixar a Educação nas mãos de demagogos, que constroem as directivas com muita incultura pedagógica e desprezo pelas perspectivas dos outros. Em penúltima instância, a culpa é de quantos percebem o desastre e se resignam, desistindo de lutar. Mas em última, obviamente, a culpa é dele, João Costa.
 
In "Público" de 14.9.22