Não, à ressurgência da BCE!
Marcelo Rebelo de Sousa abriu o ano lectivo na escola Pedro Nunes. Não fugindo às generalidades que caracterizam boa parte das intervenções que faz, a propósito não importa de quê, disse, desta feita, que o Governo não tem a cabeça virada para a Educação e que é hora de se fazer um debate sério sobre os seus problemas.
Aproveito a deixa e pego num, o novo regime de recrutamento e colocação de professores, no âmbito do qual o ministro da Educação pretende que as escolas passem a escolher 1/3 dos seus docentes, para lembrar que a contratação de escola (a BCE, que deu desastrosos resultados) já existiu e foi abandonada em 2016, por um Governo a que João Costa pertenceu, por ser um processo marcado por favorecimentos clientelistas e menos justo do que o que tem uma lista de graduação nacional por base.
Não nos iludamos, por mais liberal (figura no programa do IL) que seja a proposta: a Constituição diz (nº2 do Art.º 47º) que “todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso”; concursos locais (cerca de 5.836 escolas e 713 agrupamentos) seriam bem mais complexos e dispendiosos do que um concurso nacional, agregador de indicadores minimamente equitativos e justos; as escolas não têm recursos para promover concursos locais sérios, que teriam de ter critérios diferentes, consoante as áreas disciplinares; admitindo que uma escola cheia de carrancudos problemas contratasse um professor com dons superiores para lidar com eles, nada poderia impedir que esse docente, uma vez nos quadros, zarpasse para outra escola, de rosto mais sereno, fazendo da contratação “por perfil” porta giratória para tratar da vida; e já experimentámos a ineficácia gestionária de milhares de ofertas de escolas em simultâneo e a cascata de desistências dos candidatos que, podendo habilitar-se a todas, fazem depois escolhas que obrigam a novas iniciativas de selecção.
Uma autonomia assim desenhada aumentaria as desigualdades entre diferentes zonas do país, com as escolas “mais reputadas” a disputarem os docentes “mais talentosos”, como, aliás, ficou demonstrado em sede de experiências de outros países. Os defensores da medida citam-nos. Bom seria que reflectissem sobre os estudos que expõem os resultados obtidos, que não são bons.
Escolher professores por “perfis” (gostava que o ministro explicasse direitinho o que é isso), num universo de milhares de candidatos e escolas, para além de substituir a objectividade possível por uma subjectividade indesejável, introduziria demora e entropias inaceitáveis. Simplesmente, porque o nosso sistema não funciona vaga a vaga. Entendamo-nos: os concursos nacionais, assentes numa fórmula de graduação, já funcionaram em modo estável, colocando os professores a tempo e horas, sem protestos. Esqueceram-se deste facto?
Posto isto, não reconheço que ensinar em contextos sociais difíceis requer características específicas e acrescidas por parte dos professores? Obviamente que reconheço. Simplesmente, o preenchimento directo de lugares de quadro pelas escolas não só não resolveria o problema como seria um dos mais graves atropelos a acrescentar à vasta lista de injustiças cometidas em sede de colocação de professores. Como reagiria um contratado, que espera há 20 anos pela entrada no quadro, se soubesse que um colega, acabado de formar, lhe passava à frente pela porta estreita de um convite do director de uma escola?
A desejável adequação do processo de recrutamento às necessidades particulares das escolas (e, já agora, às dos professores, também) é um bom objectivo. Mas não é com uma ilusória intervenção a jusante que lá chegamos. É necessário agir a montante, corrigindo primeiro os atropelos e as injustiças escabrosas que se acumularam em sede de concursos e reformando, depois, profundamente, toda a gestão de recursos humanos do sistema. Tudo coisas de que António Costa foge a sete pés e João Costa não sabe fazer.
Em conclusão: uma coisa é o interesse público, que o concurso nacional protege, outra os interesses particulares, que os concursos de escola favorecem; esses concursos reforçariam o poder discricionário e autocrático dos maus directores, cujo número é, infelizmente, elevado.
In "Público" de 28.9.22