27/09/2023

A necessidade de encontrar um equilíbrio saudável entre o digital e o analógico

 


Para a maioria das nossas crianças, a exposição a ecrãs tornou-se um fenómeno omnipresente e, para as de tenra idade, a baby-sitter fácil e barata. Demasiados responsáveis da área da Educação esqueceram que a tecnologia não significa só desenvolvimento e progresso, que uma ligação WiFi nunca será equiparável a uma ligação com um ser humano e que a essência da Educação é humanista, que não tecnológica. Como esqueceram, ainda, que a estimulação em excesso transforma as crianças e os jovens em seres passivos, presas fáceis do imediatismo, porque lhes vai roubando a verdadeira capacidade de sentirem.
 
Finalmente parece que o país vai discutir o problema e começou a dar atenção à produção científica que há anos alerta para os perigos da onda do digital descontrolada e das tecnologias encantatórias. Muito do que aqui vai ficar dito, como achega para o debate anunciado, já foi abordado por mim, em artigo que escrevi na edição do Público de 28 de Novembro de 2018, sob o título “A eterna culpa dos professores”.
 
A 21 de Agosto passado, a JAMA Pediatrics, revista de pediatria publicada pela American Medical Association, publicou os resultados de uma investigação que relacionou os atrasos comunicacionais e cognitivos verificados em 7097 crianças, com dois e quatro anos de idade, e o tempo que passaram frente a um ecrã, quando tinham um ano. A investigação concluiu que as capacidades motoras, sociais, de comunicação e de resolução de problemas dessas crianças diminuíram à medida que foi maior o tempo em que estiveram expostas a ecrãs. Este estudo, o último a que tive acesso, é apenas mais um dos muitos da mesma natureza que o antecederam e que já levaram a própria OMS a emitir recomendações sobre a matéria.
 
Vários investigadores da Rede Europeia de Pesquisa em Leitura (E-READ) vêm alertando, desde 2014, para a circunstância de a nossa compreensão ser maior quando um texto é lido em papel do que quando o mesmo texto é lido num ecrã. E a diferença intensificou-se com o passar dos anos e intensifica-se quando se trata de manuais escolares ou outro tipo de livros didácticos e de textos mais complexos.
A ministra da Educação da Noruega revelou recentemente que nove em cada dez crianças de dez anos têm um smartphone e que mais de 70% dos estudantes do ensino secundário passam três horas diárias em frente de um ecrã.
 
Também a situação na Suécia foi motivo para muitas análises recentes na imprensa e nas televisões. Em 1990, a Suécia optou pela imersão 100% digital nas suas escolas. Hoje reconhece que a decisão foi errada e o Governo anunciou um grande investimento para voltar aos manuais escolares impressos.
Por outro lado, o debate sobre o efeito da utilização de telemóveis nas escolas cresceu, entre nós e lá fora, reforçado pelo recente relatório anual UNESCO sobre o uso das tecnologias na educação, com um alerta especial para o aumento de casos de bullying. 
 
Em Portugal, uma petição pública com 19000 assinaturas pediu restricções e a utilização está proibida na Escola António Alves Amorim, em Santa Maria da Feira (desde 2017), nas escolas do Concelho de Almeirim e nas escolas básicas do Alto de Algés e de Miraflores. No Agrupamento de Escolas Gil Vicente, em Lisboa, a utilização está também proibida para todos os níveis de ensino, excepto para o secundário, onde é apenas desaconselhada. 
 
No resto da Europa, são vários os países que proibiram a utilização dos telemóveis, a saber, entre outros: Espanha, França, Itália, Países Baixos e Finlândia. Fora da Europa, a mesma decisão foi tomada no Canadá, no Japão, na Coreia do Sul e na Austrália. Sem proibição total, mas com fortes medidas restritivas, temos os Estados Unidos da América e a Inglaterra.
 
Apesar de tudo isto, quase duplicou, face ao ano transacto, o número de alunos portugueses que vão estudar com manuais digitais no presente ano lectivo, dando cumprimento à quarta fase do projecto-piloto lançado pelo Governo para, definitivamente, descontinuar, de forma gradual, o uso dos manuais impressos em papel. São, no total, 21260 estudantes, distribuídos por 1153 turmas de 160 escolas.
João Costa, tendo afirmado publicamente não ser adepto de proibições, pediu um parecer sobre a matéria ao Conselho de Escolas. Oxalá estejamos a dar um primeiro passo para arrepiar caminho.
 
 
In "Público" de 27.9.23

13/09/2023

Novo ano, erros velhos


No começo de um novo ano escolar, pareceu-me que podia fazer sentido falar de coisas que, sendo essenciais, vão passando ao lado do debate político. Com efeito, a vertente forte da contestação dos professores tem-se cingido à recuperação do tempo de serviço e a outros temas relacionados com a carreira. 
 
A Educação é um serviço público e o direito de todos à Educação é um dos pilares fundamentais do Estado de direito. Mas o Estado tem falhado na regulação da Educação, particularmente no que à sua qualidade respeita e na protecção daqueles que têm mais vulnerabilidades socioeconómicas. 
 
Tenho escrito repetidas vezes que educar é uma arte, que não uma ciência. Métodos e doutrinas pedagógicas não são cientificamente demonstráveis como correctos ou incorrectos, em termos absolutos. O que resultou num determinado contexto, com determinados alunos, professores ou escolas, pode não resultar em contexto diferente. É por isso que está errada a actual imposição de uma “pedagogia de Estado”, que tem vindo a transformar professores em agentes funcionalizados de ensino, quando eles devem ser autores, sublinho autores, de ensino. O voto confere legitimidade democrática. Mas não confere autoridade pedagógica.
 
O Currículo Nacional não pode continuar a ser esquartejado. Obrigatoriamente deve conter conhecimentos estruturantes (Língua Materna, uma ou várias Línguas Estrangeiras, Literatura, Filosofia, História, Geografia, Matemática, Ciências Naturais, Música, Artes e Educação Física e Desporto). A estas áreas acrescerão disciplinas “qualificantes”, consoante a diversidade dos diferentes cursos.
 
Os responsáveis têm promovido a “inovação” a uma espécie de Deus ex machina. Ora o que interessa não é se a intervenção é tradicional ou inovadora, mas sim se resulta ou não. Vivemos num autêntico vórtice de “inovações” não testadas, impostas centralmente a quem sobre elas devia decidir, isto é, o professor. Só que os clássicos teoremas matemáticos tanto se ensinam usando os modernos quadros digitais interactivos, como usando o velho quadro negro e um pau de giz.
 
Em contraste com os erros enunciados, imagine que reduzíamos o número de alunos por turma, digamos que a um máximo de 20. É minha convicção que melhorava substancialmente a aprendizagem e a disciplina. Do mesmo passo, se diminuíssemos a carga horária global dos alunos, libertando tempo para o estudo acompanhado por professores e para o desporto organizado, melhorávamos a sua saúde, protegíamos as actividades socializantes próprias da infância e da adolescência, que agora não têm, e defendíamos os que não podem pagar explicações, promovendo o verdadeiro sucesso escolar. Por outro lado, se o actual Estatuto do Aluno, indutor de facilitismo e de direitos sem deveres, fosse substituído por outro, assente na promoção de princípios éticos e morais, que consagrasse o aprender como o primeiro dever do aluno, reforçaríamos vigorosamente o processo de construção de cidadãos íntegros e devolveríamos a autoridade aos professores e às escolas.
 
Se libertássemos os professores da alienação burocrática em que vivem e extinguíssemos o kafkiano modelo de avaliação, desadequado e pejado de grosseiros erros técnicos, o corpo docente rejuvenescia. Se reformássemos radicalmente os concursos de recrutamento e colocação de docentes, com uma intervenção corajosa e tecnicamente possível, mas nunca até hoje assumida, pôr-se-ia fim à decantada instabilidade profissional e familiar de quem ensina, com incomensuráveis benefícios para os alunos.
 
Se as escolas passassem a ser governadas por um novo modelo de gestão, verdadeiramente democrático, e jamais fosse possível atribuir-lhes uma só nova tarefa sem o reforço dos recursos humanos e materiais necessários, a produtividade aumentava e removeríamos a politização perniciosa, o centralismo asfixiante e a conflitualidade desagregadora.
 
Por fim, tal como não se pode outorgar aos professores responsabilidades sem lhes conferir autoridade, tão-pouco se pode dispensar os pais do dever de educar os filhos. A vida dura dos pais e os seus absorventes deveres laborais não os podem alhear do valor mais alto a que devem responder: educar os filhos. O Estado tem de responsabilizar os pais pelos comportamentos dos filhos, sempre que estes geram a indisciplina e prejudicam a paz nas escolas.
 
In Público de 13.9.23