20/08/2020

Um alerta, que devia ser geral

 

no Público

19/8/2020

por Santana Castilho*

A morte de George Floyd, estrangulado em público por um polícia, indignou o mundo. Há um par de anos, no auge de uma discussão política, um homem jovem, prosélito de Bolsonaro, matou pelas costas, com 12 facadas cobardes, um homem velho, apoiante de Lula e do PT. Alcindo Monteiro e Bruno Candé morreram na rua às mãos de fanáticos, porque não eram brancos. Por e-mail, um grupo nacionalista, a Nova Ordem de Avis - Resistência Nacional, ameaçou três deputadas e sete outros cidadãos, a quem deram 48 horas para deixarem o país. Recorde-se que a “Nova Ordem” foi um conceito político que fez escola durante o III Reich, proclamando a superioridade da raça ariana e o extermínio dos judeus, dos homossexuais, dos negros, dos ciganos e dos deficientes.

Nestes actos temos todo um programa de futuro, se nada for feito. Paulatinamente, as maiores atrocidades banalizam-se e na sociedade consumista em que vivemos tornam-se insuficientes as reacções dos que lutam por um viver mais solidário e mais justo. De modo falsamente complacente, assistimos a uma prática política, judicial e policial que permite a criação e funcionamento de organizações que professam e proclamam ideologias fascistas e nazis, coisa que o artigo 46º, nº 4, da Constituição, claramente proíbe. 

É nisto que estamos, quatro décadas e meia depois de nos termos livrado de 48 anos do fascismo beato de Salazar? Quatro décadas e meia depois de Abril, o que falta fazer para recordar à consciência cívica da sociedade que sempre que a democracia recua avança a barbárie? O que há de comum entre estas manifestações do que de mais negro caracteriza a natureza humana, senão a desumanização de uma sociedade que retrocede mesmo naquilo que dávamos por adquirido e onde muitos chegam a negar o próprio holocausto? 

No mundo, passámos o último século a constituir depósitos de armas sofisticadas e a engendrarmos estratégias fratricidas, que enriquecem poucos e desgraçam muitos. No mesmo oceano onde uns se banham em férias, morrem outros que fogem da guerra e procuram trabalho e pão para que os filhos sobrevivam. 

As condições para que os movimentos populistas fortifiquem cresceram. A decantada luta contra a corrupção afirma-se incapaz de regenerar seja o que for. A mitomania de Trump e a bizarria de Bolsonaro fizeram escola e ajudaram a projectar os preconceitos. Os produtores das notícias falsas, que inundam as redes sociais, profissionalizaram-se ao jeito da Cambridge Analytica. É hora de nos opormos ao aumento de um sentimento generalizado de impotência democrática, entre nós irresponsavelmente ajudado pelas últimas decisões políticas. 

A nossa incapacidade para analisar os riscos a que estamos expostos e a informação que temos à luz dos ensinamentos da história contemporânea é alimentada pela tendência para valorizar o que está facilmente disponível. Num rumo que devemos combater, quantas vezes teremos de ver os desmandos antidemocráticos, xenófobos e homofóbicos, que se vão multiplicando pela Europa, para nos darmos conta de que eles estão a chegar à nossa sociedade? 

Aos portugueses pobres, aos portugueses que integram as diversas minorias étnicas da nossa sociedade, para além de uma economia que valorize o trabalho e promova o bem-estar colectivo, que não apenas o enriquecimento desmesurado do capital, falta uma justiça igual para todos, que sirva todas as culturas mas não tolere um só comportamento que ponha em perigo a coexistência pacífica entre cidadãos, a democracia e a Constituição, falta uma organização social e política liberta das clientelas partidárias e falta uma escola exigente, que anule as diferenças e não as agrave. 

A facilidade com que a democracia tolera o uso de estereótipos e preconceitos racistas para estigmatizar e catalogar comunidades inteiras talvez seja o corolário da sua, até hoje, incapacidade para remover as desigualdades estruturais e crónicas da nossa sociedade, que favorece uns e discrimina outros. É redutor reduzir o problema à dicotomia clássica esquerda versus direita. Mas é urgente remover a extrema direita criminosa da equação e combater os seus argumentos intelectualmente primários e socialmente tenebrosos, remetendo-a ao bordel, que é, de descrença na humanidade. 

 *Professor do ensino superior

05/08/2020

“Para trás mija a burra!”


no Público
5 de Agosto de 2020

por Santana Castilho


1. O PSD propôs e o PS aproveitou: precisamente numa conjuntura em que tantas decisões e tão graves devem ser tomadas, o escrutínio do Parlamento sobre os actos do Governo foi deploravelmente amputado. E aparentemente insatisfeitos com o modo como contribuíram para o crescimento do populismo, PSD e PS aproveitaram esta machadada na democracia para enterrar ainda mais o cutelo: o número de assinaturas para validar uma petição cidadã passou de quatro mil para 10 mil. Ou seja, é mais fácil agora criar um novo partido (7500 assinaturas) que levar o Parlamento a discutir uma causa proposta por eleitores.

Que Parlamento vai ficando? O que representa o Povo ou, cada vez mais, o que os representa só a eles, convenientemente imprestável para os fiscalizar e para ser eco das preocupações dos cidadãos? Admiram-se, assim, que André Ventura cresça?

As máquinas partidárias do PSD e do PS fundiram-se na cultura rasca que nos toma por idiotas. Os leitores que me perdoem o plebeísmo, mas, alentejano de gema que sou, sei, desde tenra idade, que para trás só mija a burra.


2. Elogiar a dedicação dos professores para salvar o possível do ano escolar que passou é consolo débil para enfrentar a falta de condições que se adivinham no que ao próximo respeita. Aos baixos salários dos docentes e às suas penosas perspectivas de carreira, acrescem agora as dificuldades dos alunos que, impiedosamente, mais atingirão aqueles que, antes da covid-19, já viviam a pandemia da exclusão e do abandono. A este propósito, o ministro da propaganda educativa tem repetido o feito até à náusea: as escolas do continente irão ter mais 2500 professores com horário completo, para ajudar a recuperar o que se perdeu no ano anterior e para superar as ciclópicas dificuldades do que vai vir. Não fora ele um bom filiado na cultura política que nos toma por parvos e poderia dar a nova de outro modo: para o reforço anunciado, em média, a cada escola caberá meio professor; ou, se preferirem, a cada um destes docentes caberão 617 alunos.


3. O que se viveu desde Março não abriu os olhos aos que governam a Educação. Os ministeriais éditos anunciaram aos indígenas que estão a ser preparados “documentos de apoio para orientar e apoiar as escolas neste trabalho [de recuperação em cinco semanas do que se terá perdido nos seis meses de encerramento das escolas], no qual se explicitam os princípios para a identificação de aprendizagens que, quando não adquiridas, são impeditivas de progressão”. O criador das “bolhas” de alunos avançou agora com “balões” de escolas e “borbulhas” de professores. Como se umas e outros precisassem da orientação de quem ignora. Como se a diversidade de problemas (diferentes consoante os anos de escolaridade, muito diferentes no que respeita a contextos e a recursos de cada escola, abissais se tivermos em conta o aumento exponencial das desigualdades entre os alunos e as suas necessidades específicas) fosse agora solucionável, trocando um qualquer “Catecismo da Flexibilidade Curricular” por um qualquer “Guia Único da Retoma em Cinco Semanas”. Uma política de ensino assente em falácias, que menorizam o conhecimento e a independência profissional e intelectual dos professores, só pode dar nova vaga de mediocridade.


4. Um relatório do Tribunal de Contas (TC) veio dizer que os números usados oficialmente para caracterizar o abandono escolar em Portugal, os mesmos que por extensão figuram depois nas estatísticas da OCDE e da EU, não são fiáveis. O relatório é bem claro quando afirma que “não existem, no sistema educativo nacional, indicadores para medir o abandono. De facto, nem o indicador internacional, o do INE, que incide nos jovens dos 18 aos 24 anos e que resulta do Inquérito ao Emprego, nem a Taxa de Retenção e Desistência, calculada pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência e centrada no desempenho estático de um ano letivo, são adequados para medir o abandono.”

Para quem acompanha de perto a gestão política da educação nacional, não é novo o que o TC disse. Mas ganha relevância por ser dito pelo TC e no momento em que a pandemia agigantou os problemas de fundo do ensino, problemas para cuja solução se mostraram incapazes os dois últimos governos do PS. Quando não se quer ou se é incapaz de sentir e perceber a realidade, martelar as estatísticas ajuda.

*Professor do ensino superior