no Público
1970272020
por Santana Castilho*
1. Mesmo que as palavras sejam graves e as proclamações venham ensaiadas com solenidade, há momentos na Assembleia da República em que a política fede a hipocrisia infinita.
Uma petição e dois projectos justos, do BE e do PCP, foram ignorados por partidos hipócritas, num Parlamento dominado por um PS que odeia gratuitamente os professores. Falo de mais de cinco mil docentes, eternamente precários, com horários incompletos, que vão continuar a contabilizar em cada mês menos de 30 dias para a Segurança Social, apesar dos próprios tribunais já terem reconhecido, em duas sentenças transitadas em julgado, que a situação é ilegal. Esclareço brevemente os menos avisados: o horário de um professor não são, apenas, as horas lectivas; os professores contratados têm de assegurar o mesmo tempo de componente não letiva que os restantes, pelo que nenhum horário pode ser tomado como part-time (como o tribunal, repito, já reconheceu); acresce que um docente com um horário de 16 horas lectivas num agrupamento vê contabilizados 30 dias, enquanto outro, que acumule o mesmo número de horas divididas por dois agrupamentos, não vê. O PSD, que defendeu em plenário a iniquidade da situação, absteve-se na votação. O CDS e o IL ficaram calados e fizeram o mesmo. O PS pôde, assim, destilar o ódio habitual e cobrir com um manto de ignomínia a sua falta de ética mínima. Com raiva a crescer nos dentes, admito que nos apoiantes que fizeram multiplicar por cinco as intenções de voto no Chega, passem agora a figurar alguns professores, tocados por um sentimento anti-políticos. É o risco que se corre quando, a quem pede pão, se manda comer brioche.
Pelo mesmo diapasão afinou o coro insólito contra o IVA da electricidade. O PCP avançou com uma proposta que sabia que a direita não aceitaria e o PSD fez depender a sua de contrapartidas que sabia que PCP e BE rejeitariam. Numa palavra, todos redigiram propostas prenhes do desejo inconfessado de que fossem reprovadas. Porque sabendo-se que só o PS era contrário ao que todos defendiam, ninguém foi suficientemente livre para se libertar das convenções que impedem votar ao lado dos “inimigos” intestinos, ou porque depois do Governo fazer o costumado número baixo de ameaçar com uma crise política, ninguém a quis abrir.
2. Os políticos são muito mais lestos a desenhar planos para manipular os resultados de políticas erradas que em orientá-los para as modificar. E porque se ocupam mais das consequências visíveis que das causas, estratégias e planos são constantemente incoerentes. Por exemplo, a política fiscal escrutina ao cêntimo os rendimentos do trabalho. Mas permite que os rendimentos do capital viagem para offshores, livres de impostos, ou apenas os paguem, a taxas reduzidas, em praças diferentes daquelas onde são obtidos. As políticas seguidas têm sido pródigas na criação de incentivos para que as empresas se fixem por cá. Mas esmagam quem trabalha e favorecem a manutenção dos salários baixos, para que a decantada competitividade não seja prejudicada. É assim que o nosso PIB tem crescido, oferecendo vantagens ao capital e sacrifícios ao trabalho.
Uma outra forma de interpretar a realidade incensada por António Costa e prosélitos é lê-la sem lentes do PS ou de guru de auto-ajuda. Muito do que a ela subjaz tem reversos que a mais que duvidosa paz social não esconde. Assim, o aumento do emprego deve-se, em grande medida, ao aumento dos contratos precários (pouco mais de 800 mil à chegada da Troika, quase 900 mil hoje). O celebrado aumento do consumo interno radica no endividamento das famílias (segundo dados do Banco de Portugal, de Outubro passado, situava-se no máximo dos últimos três anos: 140 mil milhões de euros). Enquanto isto, aumentou o valor absoluto da dívida pública, os investidores abutres ocuparam os centros de Lisboa e Porto, expulsando para a periferia quem lá vivia, os reformados e os profissionais altamente especializados estrangeiros não pagam impostos, enquanto os nacionais suportam a maior carga fiscal de sempre, os serviços públicos degradam-se e, a bem do ambiente, retiramos carros da baixa lisboeta mas importamos milhares de toneladas de lixo que os outros não querem.
Acredita que este estado de coisas augura algo de bom? Eu não!
*Professor do ensino superior
no Público
5 de Fevereiro de 2020
por Santana Castilho*
1. Um vídeo mostrando um rosto limpo, antes da imobilização feita com brutalidade inaceitável por um polícia, um rosto deformado por hematomas, feridas com sangue pisado, olhos e lábios inchados, depois, a mulher acusando o polícia e o polícia acusando a mulher no fim, foi tema de muitas análises. Não vi nenhuma sobre o que terá ficado gravado na psique da criança de oito anos, que assistiu à brutalidade exercida sobre a mãe. Mas desejo que um dia, já adulta, esteja livre de qualquer trauma, provocado pela sociedade em que começou a viver. Como o palhaço triste de Gotham, metaforicamente afundada no lixo moral que o transformou no vilão do Joker.
2. O fenómeno da penetração da extrema-direita nas nossas forças de segurança (foi o Conselho da Europa que o disse) deve ser encarado com urgência, porque as repetidas suspeitas sobre a actuação de alguns dos seus membros degradam o Estado de direito.
O que é socialmente mais preocupante? Transportar sem passe uma criança, que legalmente está isenta de pagamento, ou ver escrito, em relatório europeu, que a corrupção impune em Portugal vale 18 mil milhões de euros por ano? Por que razão nunca vi um polícia à bastonada com trânsfugas fiscais ou banqueiros que nos roubaram no BES, BANIF ou BPN? Como interpretar que o CDS-PP se tenha apressado a manifestar total confiança no vice-presidente do partido, logo que se tornaram públicas declarações suas de elogio a Salazar e à PIDE e referindo Aristides de Sousa Mendes como um "agiota de judeus"?
3. Parece que a maioria parlamentar pensante achou que era melhor fazer de conta que um deputado não tinha recomendado a deportação de uma deputada, com o argumento de que censurá-lo no hemiciclo seria dar-lhe importância e mais palco.
Não gosto de políticos que reagem a quente, primeiro, para se esconderem a frio, depois. À indignidade de um deputado, a decência dos pares responde sempre. A minha República tem de ser clara e não se esconde com medo de dar palco às graçolas racistas de um deputado.
4. Durante a recente celebração dos 75 anos da libertação dos sobreviventes de Auschwitz, o presidente alemão referiu-se assim ao seu país: “Quem me dera poder dizer que os alemães aprenderam com a história. Mas não posso dizer isso quando o ódio se está a espalhar. E não posso dizer isso quando crianças judias são cuspidas nas escolas”.
Que a clarividência de Frank-Walter Steinmeier nos mobilize para rejeitar a normalização dos comportamentos racistas, homofóbicos e xenófobos, venham eles donde vierem. Particularmente porque aqueles a quem se referiu, os que cospem em crianças, são certamente outras crianças, que já crescem ensinadas a odiar. Simplesmente aterrador. Se nas escolas formos escusos como fomos na AR, então ficará livre o caminho para os que promovem o retrocesso civilizacional e cultural, manipulando as múltiplas frustrações sociais. Numa palavra: a democracia não pode ser tolerante com aqueles que a querem destruir.
5. Que sociedade estamos a criar? As redes sociais são hoje uma montra da degradação da convivência entre humanos. A violência verbal e os discursos de ódio são o novo normal para políticos emergentes agradarem aos prosélitos. Fomos ouvindo, mais longe, Le Pen, Trump, Bolsonaro, Salvini e Orbán, agora temos aqui perto Santiago Abascal e cá dentro Ventura. É altura de pararmos para pensar. Porque existem, todos eles?
Porque existe a insegurança no emprego e o medo do desemprego. Porque em nome da produtividade, o tempo de trabalho tornou-se brutal. Porque as pessoas sentem a vida ameaçada e o futuro dos filhos sem horizontes. Porque a injecção continuada do dinheiro público no sistema financeiro manteve a ganância do capitalismo global. Porque ao neoliberalismo de direita sucedeu o neoliberalismo de uma falsa esquerda, que apenas aligeirou a austeridade e não entendeu que as desigualdades sociais se combatem com emprego com direitos, que não com assistencialismos castradores.
Marques Mendes falou, no domingo passado, de um mundo de pernas para o ar porque um fura-greves foi punido quando, no entender dele, deveria ter sido louvado. Eu vejo-o de pernas para o ar pelo que aqui escrevi e porque não estamos a construir uma sociedade diferente a partir da Escola.
*Professor do ensino superior