29/04/2020

Esta comédia desumana e triste

no Público
29/04/2020

por Santana Castilho*


1. Já me referi ao tema. Mas é imperioso que a ele volte, agora que, tudo indica, a emergência dará lugar à calamidade. Estão em processo de continuidade ideias torturadoras dos mais velhos. É pois altura de ser claro: enquanto estiver lúcido e não prejudicar os outros, sou eu que decido os riscos que quero correr. Amedronta-me menos o vírus circulante que os perímetros abdominais e as papadas dos políticos que me querem proteger. Basta de paternalismos cívicos!

Em tempo de restrições como nunca tivemos depois de Abril, a liberdade é o valor maior que me apetece invocar, num país sob uma autofágica polarização: os que querem permanecer fechados, encurralados pelo pânico, e os que, embora reconhecendo a gravidade da situação, sacodem cabrestos e discriminações que julgavam afastadas.

São livres os portugueses presos em lares miseráveis, que não percebem porque lhes desapareceram filhos e netos? Não é um défice de liberdade a falta de conhecimento para interpretar com serenidade o fenómeno que nos atormenta? São hoje livres os milhares de portugueses que ficaram ontem sem emprego? Os que já viviam na fronteira da sobrevivência e hoje desesperam, esses, são livres?

Porque não tenho senhores e penso livremente, ouso perguntar ainda: será que um estado de emergência duas vezes repetido, com tão pequeno questionamento e tão generalizada aceitação, pode ser socialmente havido como um resquício da ditadura de que Abril nos livrou? Como aceitar, sem enorme perplexidade, os delatores que a covid-19 destapou? Antes, a PIDE zelava pela ordem que o Estado Novo determinava e a censura amordaçava-nos. Hoje há quem defenda certificados de imunidade e a georreferenciação das pessoas, enquanto, sofredores, resignados, confinados, de máscara posta, adoecemos mentalmente.

Vão-me dizendo que as decisões políticas são tomadas depois de ouvir os especialistas. Mas há especialistas que não são ouvidos. Não são ouvidos os virologistas e os epidemiologistas que pensam a contrario sensu dos que são seguidos por Marcelo e Costa, muito menos são ouvidos outros especialistas, de outras áreas (psicólogos sociais e psiquiatras, por exemplo), que poderiam complementar o saber médico e epidemiológico e explicar as consequências do autêntico assédio moral que tem sido exercido sobre os mais velhos ou a influência depressiva do massacre noticioso dos telejornais sobre toda a população.

Deputados do PS, do PSD e do CDS, chumbaram no Parlamento a atribuição temporária de um subsídio de risco aos trabalhadores que asseguram actividades críticas, enquanto o resto do país está em casa (protegido, dizem). A ministra buzina permitiu que médicos e enfermeiros fossem miseravelmente discriminados quanto ao indecoroso aumento salarial dos restantes funcionários públicos. Depois batem-lhes palmas à janela e chamam-lhes heróis.

No Parlamento, as propostas que visavam a proibição da distribuição de dividendos relativos a lucros de 2019 (e que exigiam das empresas apoiadas que não despedissem) foram rejeitadas pelo PS e pelo PSD. Depois abrem-se linhas de crédito, que a banca aproveita para transformar créditos antigos, com risco seu, em créditos novos, com risco do Estado.

A minha geração, aquela que mais lutou pela liberdade, essa, pelo menos, entenderá como me revolta tudo isto e entenderá que não esteja passivamente disponível para assistir à erosão das liberdades individuais, em moldes inaceitáveis numa democracia aberta e plural.


2. Subliminarmente, António Costa apelou a uma certa união nacional em torno das aulas da novel telescola, quando classificou de “mesquinhas” as críticas feitas nas redes sociais às primeiras sessões e argumentou que os professores “não são actores de cinema”. O problema não está em pedir aos professores, que foram formados para ensinar em sala de aula, que sejam profissionais de TV. O problema está nos erros científicos e pedagógicos expostos. Porque torrei a paciência a ver as primeiras aulas e ele não, e porque sempre defendi os professores e ele não, posso, serenamente, dizer isto. Teria sido melhor não acrescentar os professores à paranoia das palmas à janela, depois de, no anterior Governo, lhes ter roubado o tempo de serviço efectivamente prestado. Citando Torga, “o que não presta é isto, esta mentira quotidiana. Esta comédia desumana e triste”.

*Professor do ensino superior

15/04/2020

Vamos ficar todos bem?

no Público
15/04/2020

por Santana Castilho*


1. Vão ficar bem os de sempre. Os que já reclamam compensações de milhares de milhões. Não vão ficar bem os 552 mil em layoff, nem os 320 mil no desemprego.

Na longa vida que já levo, não guardo memória de uma hecatombe assim. Nunca vi uma travagem da economia tão generalizada e um pânico social tão ampliado. Por isso, aflige-me não sabermos quando acabará a prisão preventiva da sociedade inteira. Embora a atmosfera actual esteja dominada por uma certa ideologia comportamental, seja opressiva e reaja mal a opiniões sem máscara, afirmo que não teria parado a economia deste modo, muito menos teria alimentado o medo desta maneira.

2. A opinião pública está hoje fortemente condicionada para aceitar um só ângulo de observação da pandemia. O receio deu lugar ao medo e o medo abriu a porta ao pânico, desproporcionado face a outras patologias e a outros males que assolam o mundo. As bolas de cristal foram substituídas por modelos matemáticos, que protagonizaram cenários em que, a breve trecho, teríamos mais infectados que população existente.

O dilúvio noticioso sobre a covid-19 superou largamente a alienação de outras ondas mediáticas (futebol, incêndios, calamidades climáticas). Os noticiários são massacrantes e repetem ad nauseam quadros de desgraça. Perplexo, pergunto-me como é possível que equipas de reportagem, atropelando a privacidade e a dignidade mínima dos prostrados nos cuidados intensivos, filmem o que o decoro e a protecção de dados interdita.

Dia após dia, os mais populares pivots das nossas televisões descodificam gráficos mágicos, com as antevisões dos penúltimos dias da humanidade. No fim dos noticiários asfixiantes, paramentam-se de sacerdotes da esperança e catequizam-nos com uma longa e poética homilia de boas condutas.

3. Aos velhos foram aplicadas duas penas: aos que vivem em lares, a crueldade da solidão imposta; aos que lá não estão, a discriminação, como cidadãos de segunda. Não é aceitável que o Estado, que legalizou a eutanásia, decida retirar aos velhos o direito de continuarem a ver os filhos e os netos, se entenderem correr o risco. Não se entende que a idade seja indicador discriminatório. Se as discriminações por religião, por orientação sexual, por etnia ou por género estão hoje banidas pela ética mínima que nos norteia socialmente, como aceitar que se retomem estigmas por outras características da pessoa humana, no caso, a idade? O confinamento coercivo de pessoas só é aceitável quando elas possam pôr em risco a saúde dos outros. O resto é interrupção da democracia, paternalismo que se dispensa, infantilização dos velhos, desrespeito pelo direito ao “convívio familiar” e à “autonomia pessoal”, que a Constituição expressamente lhes atribui (Artº 72º). É imperioso que Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e Ursula von der Leyen (que quer confinar os velhos até ao fim do ano) esclareçam se os direitos cívicos e a dignidade humana caducam com a idade.

4. Os números que documentam esta pandemia não são mais graves que outros. Já morreram 100 mil pessoas com covid-19. Mas por ano morrem 10 milhões com cancro. Em 2018 morreram 200 mil crianças com tuberculose e 300 mil com malária. O que esta pandemia tem de novo é ser servida por um contador universal de mortes em directo, ter uma maior velocidade de contágio e ser provocada por algo que ainda é pouco conhecido. O confinamento foi importante para evitar o colapso dos serviços de saúde. Mas a sua continuidade radical é insustentável, se pensarmos na economia e na saúde mental da população. Na ausência de vacina, o contágio controlado (imunidade de grupo) é a estratégia inteligente. Já assim começaram a actuar a Espanha, Itália, Reino Unido, França, Dinamarca, Alemanha, Áustria e Suíça. A abertura tem que ser lenta e progressiva. Mas o excesso de prudência e o sequestro brutal da vida produtiva matará mais que o vírus. A decisão de abrir é um risco. A decisão de continuar em confinamento radical será uma tragédia.

5. Por fim, vejo com enorme preocupação que se comece a falar em certificados de imunidade, escabrosa ideia que nos ofereceria mais uma repugnante divisão social: cidadãos puros, devidamente munidos de passaporte de sanidade, e párias impuros, sem direito ao novo papel selado. O que é que isto nos recorda, caros cidadãos, obedientemente recolhidos em casa?

*Professor do ensino superior

01/04/2020

Tocata para um ministro à distância

no Público
1/4/2020

por Santana Castilho*


Vêm aí longas semanas de ensino a distância. Importa pois analisar a que distância está o Ministério da Educação (ME) da realidade.

Incapaz de produzir orientação séria, o ministro começou por proclamar que “os professores não estão de férias”. A maioria das escolas e demasiados professores, apostados em mostrar que não estavam de férias, tomaram iniciativas cujo volume, diversidade e fragmentação conferiram ao sistema a incoerência característica do “salve-se quem puder”. Em vez de desenhar um quadro de intervenção pedagógica e definir os recursos digitais para o executar, o ME arrebanhou tudo o que mexia na internet e despejou sobre as escolas, para ajudar à balbúrdia. Quando surgiram os primeiros reparos para a falta de computadores e de banda larga ao alcance de muitos alunos, o ministro Tiago chamou carteiros, escuteiros e professores reformados. Receei que se seguisse a requisição civil dos pombos-correios. Mas seguiu-se um roteiro, ora banal, ora prolixo, que transfere para as escolas e para os professores as responsabilidades centrais.

Agora, é preciso aproveitar estas estranhas férias da Páscoa para pensar com serenidade. O sistema não tem recursos para o funcionamento do ensino a distância na escala que é requerida. O ME não pode contar com os seus equipamentos obsoletos, sem capacidade de memória, nem com a sua internet, que ora é lenta, ora sucumbe, ora não existe. Só o salva os equipamentos dos pais e dos professores, que pagarão as contas de energia e de internet. Os problemas logísticos que o ensino a distância coloca vão aprofundar as desigualdades sociais entre os alunos. Muitos (50 mil só no ensino básico) não dispõem de um computador nem de internet em casa. Muitos encarregados de educação não têm as condições e formação necessária para acompanhar os filhos nas tarefas escolares.

Saia do marasmo, ministro Tiago, e faça, pelo menos, isto:

- Defina já como se processa e como se avalia o trabalho do 3º período, oficializando o que todos sabem oficiosamente.

- Desista do ensino online para crianças do 1º e 2º ciclos, que não têm preparação para tal. Para estas e para todas as que não têm computador nem internet, recorra à televisão. Siga o exemplo da sua colega de Espanha, que reuniu recursos de 14 editoras e nove portais educativos e partiu para emissões de cinco horas diárias de TV educativa. Reserve o online para o 3º ciclo e secundário, com identificação das plataformas digitais mais eficazes e a sua disponibilização gratuita.

- Fixe horários nacionais para o ensino a distância. Este tempo de crise tem sido invasivo da privacidade dos alunos, das famílias e dos professores, com um enorme excesso de solicitações e exigências. Se há paradigma já evidente é o da servidão digital. Sem horário de actividades, tanta diligência e desrespeito pela privacidade alheia transformarão pais, professores e alunos em simples plataformas humanas à deriva, no meio das plataformas digitais.

- Anule imediatamente as provas de aferição, marcadas para Maio, e os exames finais do 9º ano. As primeiras porque, de duvidoso sentido desde o início, são agora redobradamente inúteis. Os segundos porque, sendo praticamente irrelevantes para a progressão dos alunos, ocupariam recursos e tempo necessários para iniciativas prioritárias, em tempo de crise.

- Mande redefinir os conteúdos programáticos dos exames nacionais do ensino secundário (as provas devem ser limitadas ao que foi leccionado presencialmente) e mande corrigir, em conformidade, os respectivos enunciados. Claro que isto o obriga a adiar o calendário dos exames e a coordenar com o seu colega do superior a acomodação destas mudanças no processo de acesso ao ensino superior.

- Incumba um pequeno grupo de pessoas sensatas (tem de procurar fora do seu circulo) de desenhar, desde já, um plano de regresso à actividade presencial, que preveja cuidados de vigilância e resguardo para uma eventual segunda onda da Covid-19 (reduzir o número de alunos por turma, para aumentar o seu distanciamento em sala; redefinir normas de utilização de espaços comuns, designadamente recreios e generalizar artefactos de higienização das pessoas e dos objectos). Aquando da reentrada, devem estar previstos apoios pedagógicos suplementares para quem deles necessite.

Se precisar de ajuda, diga. Vou trabalhar consigo, pro bono.

*Professor do ensino superior