Diário do Alentejo
28 outubro 2016
Texto: Paulo Barriga
SANTANA CASTILHO, pedagogo natural de Beja, regressa hoje (28/10) à sua cidade natal para uma conferência em torno da formação para a vida ativa. A iniciativa, que decorre (decorreu ...) a partir das 10 horas no ginásio da Escola D.Manuel I, insere-se nas comemorações dos 25 anos da Associação dos Antigos Alunos da Escola Industrial e Comercial de Beja, e conta ainda com a presença do antigo ministro da Educação de Durão Barroso, David Justino.
O “DA” publica em exclusivo uma entrevista com Santana Castilho onde se faz a revisão das principais matérias que afetam as políticas de ensino em Portugal e onde é evidenciada uma verdadeira “falta de reflexão e produção doutrinária sobre os grandes problemas do sistema de ensino” por parte dos partidos políticos.
."Aos partidos políticos falta reflexão e produção doutrinária sobre os grandes problemas do sistema de ensino."
Há mais de 40 anos que anda na docência. Esta coisa de cada um que chega de novo mudar as regras do jogo do ensino e da educação em Portugal não o aborrece já um bocadinho?.
Aborrece muito e cansa ainda mais. Mas a questão que me anima nos momentos de desalento é saber que, não fora a luta de muitos, nos quais me incluo, e os resultados da atrevida ignorância de tantos políticos seria ainda pior.
Por vezes até passa para a opinião pública que cada novo ministério, ou ministro, acaba sempre por chegar com uma certa vontadezinha de deixar o seu próprio nome gravado na história da educação em Portugal... Partilha desta ideia?
A simples constatação empírica mostra que a substituição do que se encontra por aquilo que se propõe despreza olimpicamente duas vertentes básicas de qualquer processo de mudança: avaliação séria e fundamentação sólida. Mas há quem chegue com a vaidade de ligar o nome, não importa a que reforma, e há quem chegue com o propósito de obedecer a quem manda, mesmo que nada entenda do que faz. O atual ministro ilustra bem esta postura. Safa-o a circunstância de os erros que comete serem, ainda assim, menos perniciosos para o sistema que as maldades concebidas pelo anterior governo PSD-CDS.
Santana Castilho também teve responsabilidades governativas. É assim tão difícil estabelecer uma linha de ação coerente e duradoura em termos educacionais?
É difícil, efetivamente. E ocuparia todo o seu jornal a dizer-lhe porquê, no contexto da cultura política em que vivemos. Aos partidos políticos falta reflexão e produção doutrinária sobre os grandes problemas do sistema de ensino. Quando chega a hora, o exercício responsável do poder cede o passo à simples exibição de poder e o improviso substitui a sensatez que o conhecimento permite. Neste caldo cultural é impossível operar estabilidade e aceitação durável das políticas. A imposição ignorante não é conciliável senão com uma falsa ideia de democracia.
Já por várias vezes o li a defender a necessidade de um “pacto para a educação”. Está a falar do quê, em concreto?
A pedagogia é uma área da atividade humana que se serve de várias ciências. É fundamentalmente especulativa, mais caracterizada pela pluralidade de hipóteses que pela existência de certezas. Mas a produção científica existente permite fazer escolhas que se afigurem mais adequadas para o contexto do País. Fazer essas escolhas e acordar em as manter por todo um ciclo de formação dos jovens portugueses é uma utopia transformável em realidade quando mudarmos a forma de fazer política. É dessa mudança que falo.
Digamos que, numa área onde os interesses são tão diversos e as opiniões, por vezes, tão antagónicas, não será nada fácil estabelecer esse “pacto”. Aliás, o próprio Santana Castilho referiu, não há muito, que o atual ministro da Educação chegou ao cargo, e cito, “sem uma linha conhecida ou ideia” sobre o assunto.
Reconheçamos que, desta forma, não há pacto de regime que possa resistir... Entendo o exercício político como serviço público, o que quer dizer que, nessa sede, os interesses particulares caem sempre face aos interesses coletivos. Um político que assim actue precisa de uma formação ética inabalável, a par de um conhecimento superior relativamente à área que dirige. Enquanto a cultura organizacional dos partidos políticos for ditada por carreiristas e oportunistas, que desprezam estes valores, tem razão: não será fácil realizar a minha utopia.
Já agora, o que pretendeu dizer quando escreveu que tinha conhecido o PS antes de ser virgem?
Foi uma metáfora alusiva à recorrente falta de pudor do atual PS, que se esquece do que o anterior PS fez. Que assobia para o lado e ignora, sem ética e sem delas se ter demarcado, as malfeitorias de Sócrates e Maria de Lurdes Rodrigues. Conta-se que, no início da década de 1970, Doris Day terá feito um discurso no fim de um jantar de homenagem. Todos os americanos, de smoking, se levantaram para aplaudir, excepto Groucho Marx. Interpelado por tal grosseria, terá respondido: “I’m so old that I knew her before she was a virgin”.
Santana Castilho é das vozes mais críticas e mais longevas sobre a educação em Portugal. Esta sua ousadia permanente tem-lhe trazido alguns dissabores ao longo da sua vida?
Muitos. Mas são as alegrias, que também são algumas, particularmente o reconhecimento dos meus alunos e de muitos colegas que prezo, que me dão o propósito firme de persistir.
Como é que olha para o ensino em Portugal hoje em dia, nomeadamente para esta nova proposta através da qual se pretende saber quais as matérias que são verdadeiramente essenciais constarem dos currículos?
Jugo que a síntese está feita nas respostas anteriores e a situação a que se refere é um exemplo do que caracterizei como atuação dominante.
"A sociedade esquece-se de que o papel da Educação é transformar o mais possível em acto as Potencialidades de cada criança."
recebido via e-mail
Não saímos, então, da tal guerra entre a “cultura universal” e a “cultura utilitarista”?
Hoje, a preponderância da visão utilitarista e imediatista na Educação é um facto. Assim reclamam os interesses económicos, em cuja teia vão caindo as próprias famílias. A sociedade esquece-se de que o papel da Educação é transformar o mais possível em acto as potencialidades de cada criança. E essas potencialidades têm, muitas vezes, relação com interesses e capacidades distintas do que dá lucro imediato.
Qual a sua opinião em relação à distribuição gratuita dos manuais escolares do primeiro ciclo, com necessidade de devolução incólume no final do ano letivo?
O Governo decidiu sem avaliar as consequências da imposição de um modelo de gratuidade e reutilização dos manuais escolares. Decidiu sem considerar o impacto numa indústria que move anualmente 100 milhões de euros, dá emprego a duas mil pessoas e interessa a 1 600 livrarias. Trata-se de uma iniciativa populista, que agrada ao mainstream mas que abalroa, de modo centralista, interesses de editores, de autores e dos que trabalham na indústria da produção de livros. Dito isto, não ignoro a necessidade de uma melhor regulação da atividade das editoras escolares, que funcionam em oligopólio e praticam preços injustificáveis. Era isso que o Governo devia ter feito e não meter-se na trapalhada que sintetizo nas seguintes questões: Por que razão não esperou pelas conclusões do grupo de trabalho que nomeou para estudar o problema? Como vai gerir administrativamente milhões de processos de empréstimo, designadamente executar o recebimento das indemnizações pelos manuais que sejam devolvidos em mau estado, ou não sejam devolvidos? Por que estranho critério excluiu liminarmente do processo os alunos do ensino privado? Por que nada fez para conferir eficácia ao regime de certificação dos manuais escolares, previsto na Lei n.º 47/2006? Que ponderação fez sobre as consequências de uma caixa de Pandora, que se abre num cenário de ensino obrigatório, que é de 12 anos e não apenas de ensino básico? Como irá lidar o Governo com a incoerência que resulta de impor a reutilização ao mesmo tempo que anuncia a alteração de programas, que vão já no próximo ano tornar obsoletos manuais a meio do ciclo de validade legal?
Bom, é uma lista interminável de questões que se levanta de uma única… Santana Castilho está em Beja, a sua terra natal, a convite da Associação dos Antigos Alunos da Escola Industrial e Comercial de Beja. Que memórias guarda dos tempos em que por cá estudou?
Já viu como vai longa esta entrevista? Julga que tem jornal para acomodar a emoção que verteria para o seu papel, se desatasse a responder-lhe? Fiquemos por aqui e com a certeza de que aí passei os melhores anos da minha vida, graças aos pais que tive, aos professores que me ensinaram e à gente de uma terra que trago sempre no coração.
Hoje em dia, quer a antiga Escola Industrial, quer o antigo Liceu foram transformados em mega-agrupamentos. Concorda com esta política de concentração?
Não! Houvera um Código Pedagógico com a força legal do Código Penal e só a inimputabilidade cognitiva acerca das necessidades das crianças impediria muitos de cumprirem pesadas penas.
Conhecendo como conheceu os meios rurais, como assistiu ao encerramento de centenas de escolas primárias em pequenas aldeias do Alentejo e de todo o interior do País?
Como instrumento pérfido de, em nome de um falso modernismo, condenar o interior à desertificação sem apelo.
Foi presidente do Politécnico de Setúbal. Que futuro prevê para estas instituições?
As instituições a que se refere estão em crise. Terão futuro quando as políticas visarem o desenvolvimento do interior e as instituições preencherem o espaço para que foram concebidas.
Faz sentido coexistirem em Portugal dois níveis diferentes de ensino superior?
Faz, se racionalizarmos a rede de oferta do ensino superior e substituirmos a lógica da competição pela lógica da cooperação.
Ou os politécnicos estão condenados a serem as futuras escolas profissionais do sistema de ensino?
Não penso que tal venha a acontecer, embora a tentação de garantir fontes de financiamento o indicie e o preconceito de muitos contra o ensino superior politécnico o deseje.