O genocídio social em curso
Santana Castilho*
A erosão emocional está em acelerado crescimento e a vida suspensa é uma amálgama de ansiedade e frustração. Os mais idosos são vítimas de abandono e os mais novos estão confusos quanto ao futuro. O vizinho que antes mudava de passeio para me apertar a mão e dizer bom dia, mudou ontem de vereda no jardim que eu, solitário, atravessava sem máscara. Promove-se a bufaria a obrigação cívica. O confinamento já não é físico. É psíquico. Já não separa só um do outro. Começa a separar muitos de si próprios, mentalmente doentes. São poucos os que gritam para fora. Mas, alienados pelo medo, são muitos os que gritam para dentro. Está em curso um genocídio social.
O muito grave problema de saúde pública com que estamos confrontados, particularmente o número de mortos, poderia e deveria ter sido combatido com prevenção organizada, que não com proibições centralistas, obsessivas e extremistas. Impede-se a maioria da população de trabalhar e a sociedade de funcionar e viver, porque houve e há incompetência para fazer o rastreamento dos que contactaram com os infectados, em tempo útil para prevenir a disseminação da doença. Não é preciso ser virologista ou epidemiologista para perceber que este procedimento seria bem mais eficaz e bem menos nefasto socialmente que confinamentos cruéis para a maioria da população.
Previsões que vamos ouvindo, sem apresentação de prova suficiente da relação causal entre os efeitos a jusante e os fenómenos a montante, fazem-me pensar que passou a ser difícil destrinçar astrologia de matemática. E, assim, muitas decisões radicais vão sendo tomadas a partir do que, em rigor, ignoramos, com razoável desprezo pelo que já sabemos. Porque são sempre os mesmos “cientistas” que intervêm publicamente e porque quem ouse exercer o contraditório sério e construtivo ganha lugar cativo no índex dos negacionistas, tem-se confundido o consenso político entre o presidente da República e o primeiro-ministro, peritos em transformar hipóteses em leis, com consenso científico.
Sobram normas contraditórias e terror noticioso e falta planeamento estratégico e informação útil e rigorosa. Já com mais de 800 mil desempregados e um quinto da população em risco de pobreza, 1 milhão e 200.000 consultas e 125.000 cirurgias canceladas, é revoltante ouvir o primeiro-ministro garantir que não houve poupanças orçamentais em 2020, quando os números o desmentem com estrondo (ficaram por executar sete mil milhões de euros, dos quais 1.500 milhões poderiam ter sido investidos no SNS e 1.250 milhões usados para mais apoios sociais).
Dados publicados pelo INE revelam cerca de oito mil mortos a mais, por referência à média de anos anteriores. Desse número, não chegam a 30% as mortes oficialmente atribuídas à covid-19. Seria bom que a ministra da Saúde ou António Costa dissessem a que atribuem as restantes 5.600 mortes a mais. Dirão certamente respeito a doentes crónicos (diabéticos, oncológicos, cardíacos, entre outros) que deixaram de ser tratados por uma gestão negligente da saúde dos portugueses.
Dizem os que mandam que a vacinação protege da morte por infecção com SARS-CoV-2. Dos quase 65 mil infectados maiores de 80 anos, cerca de 10 mil morreram. Nenhuma coorte, etária ou profissional, se aproxima, nem de longe, destes resultados trágicos. Porque não foram, desde o primeiro momento, os maiores de 80 anos a primeira prioridade para receber a vacina? Que modelo matemático mais significativo do que este facto justificou que não tenha sido feito o que deveria ter sido feito? É dura a resposta, a única, que podemos retirar da negritude social em que estamos mergulhados. Em qualquer retrovisor político despido de preconceitos, António Costa só pode sentir vergonha quando olhar para trás.
A continuarmos assim seremos como os pássaros criados em gaiolas, que acreditam que voar é uma doença. E aceitaremos brevemente que a arte de governar é a arte de nos curvar a estatísticas de morte e servidão, onde polícias serão mais eficazes que políticos, já que a Constituição virou capacho. Que importa que dois prefeitos estejam a transformar Portugal num enorme internato, se lá para o Verão, 70% dos sobrevivos estiverem vacinados?
*Professor do ensino superior