17/02/2021

O genocídio social em curso

O genocídio social em curso

Santana Castilho*

A erosão emocional está em acelerado crescimento e a vida suspensa é uma amálgama de ansiedade e frustração. Os mais idosos são vítimas de abandono e os mais novos estão confusos quanto ao futuro. O vizinho que antes mudava de passeio para me apertar a mão e dizer bom dia, mudou ontem de vereda no jardim que eu, solitário, atravessava sem máscara. Promove-se a bufaria a obrigação cívica. O confinamento já não é físico. É psíquico. Já não separa só um do outro. Começa a separar muitos de si próprios, mentalmente doentes. São poucos os que gritam para fora. Mas, alienados pelo medo, são muitos os que gritam para dentro. Está em curso um genocídio social.

O muito grave problema de saúde pública com que estamos confrontados, particularmente o número de mortos, poderia e deveria ter sido combatido com prevenção organizada, que não com proibições centralistas, obsessivas e extremistas. Impede-se a maioria da população de trabalhar e a sociedade de funcionar e viver, porque houve e há incompetência para fazer o rastreamento dos que contactaram com os infectados, em tempo útil para prevenir a disseminação da doença. Não é preciso ser virologista ou epidemiologista para perceber que este procedimento seria bem mais eficaz e bem menos nefasto socialmente que confinamentos cruéis para a maioria da população.

Previsões que vamos ouvindo, sem apresentação de prova suficiente da relação causal entre os efeitos a jusante e os fenómenos a montante, fazem-me pensar que passou a ser difícil destrinçar astrologia de matemática. E, assim, muitas decisões radicais vão sendo tomadas a partir do que, em rigor, ignoramos, com razoável desprezo pelo que já sabemos. Porque são sempre os mesmos “cientistas” que intervêm publicamente e porque quem ouse exercer o contraditório sério e construtivo ganha lugar cativo no índex dos negacionistas, tem-se confundido o consenso político entre o presidente da República e o primeiro-ministro, peritos em transformar hipóteses em leis, com consenso científico. 

Sobram normas contraditórias e terror noticioso e falta planeamento estratégico e informação útil e rigorosa. Já com mais de 800 mil desempregados e um quinto da população em risco de pobreza, 1 milhão e 200.000 consultas e 125.000 cirurgias canceladas, é revoltante ouvir o primeiro-ministro garantir que não houve poupanças orçamentais em 2020, quando os números o desmentem com estrondo (ficaram por executar sete mil milhões de euros, dos quais 1.500 milhões poderiam ter sido investidos no SNS e 1.250 milhões usados para mais apoios sociais).

Dados publicados pelo INE revelam cerca de oito mil mortos a mais, por referência à média de anos anteriores. Desse número, não chegam a 30% as mortes oficialmente atribuídas à covid-19. Seria bom que a ministra da Saúde ou António Costa dissessem a que atribuem as restantes 5.600 mortes a mais. Dirão certamente respeito a doentes crónicos (diabéticos, oncológicos, cardíacos, entre outros) que deixaram de ser tratados por uma gestão negligente da saúde dos portugueses.

Dizem os que mandam que a vacinação protege da morte por infecção com SARS-CoV-2. Dos quase 65 mil infectados maiores de 80 anos, cerca de 10 mil morreram. Nenhuma coorte, etária ou profissional, se aproxima, nem de longe, destes resultados trágicos. Porque não foram, desde o primeiro momento, os maiores de 80 anos a primeira prioridade para receber a vacina? Que modelo matemático mais significativo do que este facto justificou que não tenha sido feito o que deveria ter sido feito? É dura a resposta, a única, que podemos retirar da negritude social em que estamos mergulhados. Em qualquer retrovisor político despido de preconceitos, António Costa só pode sentir vergonha quando olhar para trás.

A continuarmos assim seremos como os pássaros criados em gaiolas, que acreditam que voar é uma doença. E aceitaremos brevemente que a arte de governar é a arte de nos curvar a estatísticas de morte e servidão, onde polícias serão mais eficazes que políticos, já que a Constituição virou capacho. Que importa que dois prefeitos estejam a transformar Portugal num enorme internato, se lá para o Verão, 70% dos sobrevivos estiverem vacinados?

*Professor do ensino superior

 

03/02/2021

A doença, as escolas e a democracia

A doença, as escolas e a democracia

Santana Castilho*

1. A luta contra a doença não pode ser feita suspendendo a luta pela democracia e substituindo o Estado de Direito pelo estado de emergência. Outrossim, só a articulação das duas lutas conquista a confiança dos cidadãos, evita que a coesão social se esboroe e dispensa o mundo que estamos a construir: uma comunidade vigiada por polícias, sob sucessivas limitações de liberdades, direitos e garantias, para combater um vírus que só se debela com organização e conhecimento.

Expurgando-os da retórica, os discursos políticos do presidente da República e do primeiro- ministro têm sido para dizer que a propagação da doença é culpa dos que adoecem, apesar da singularidade de o poder legislativo ter sido entregue ao poder executivo, que dele passou a fazer pau-mandado, via o sempre-em-pé estado de emergência, já oficiosamente admitido até ao outono. 

2. Com os mortos cada vez em maior número e a proximidade do caos diariamente anunciada nas televisões, o encerramento das escolas era inevitável, sem tempo nem espaço para discutir os prós e os contras da decisão. Sabendo-se que a adequação de qualquer medida exige a análise das variáveis que a possam justificar, no caso em apreço não eram só os modelos matemáticos dos epidemiologistas que importavam. Deveriam, igualmente, ter sido consideradas evidências de longa data, no domínio da psicologia, social e cognitiva. Mas não puderam ser, pela pressão política que referi. Assim, quem decidiu não considerou que para muitas crianças, do ponto de vista alimentar, físico e mental, a escola é um local onde estão mais seguras do que em casa. Nem considerou as repercussões futuras, graves, no desenvolvimento das crianças e jovens, motivadas pela supressão abrupta da socialização de que tanto necessitam nas idades em que estão. Muito menos tomou a sério o desespero que essas crianças e esses jovens sentem, pelo desespero que importam do desespero vivido pelos seus cuidadores.

3. É evidente que o Governo perdeu o controlo da situação em matéria de Saúde e por aí arrastou as escolas para a capitulação. A impossibilidade de as fechar, repetidamente afirmada por António Costa (as implicações irreversíveis e os custos no desenvolvimento das crianças assim o determinavam, garantia), esvaiu-se, como se esvaiu a última réstia da sua credibilidade quando nos quis tomar por parvos ou distraídos.

 “Ninguém proibiu ninguém de ter ensino online”, disse António Costa na Circulatura do Quadrado de 27 de Janeiro. Como se a 21 não tivéssemos ouvido o comunicado com as decisões do Conselho de Ministros desse dia, que o proibia. Como se declarações bem explícitas do ministro da Educação não tivessem reiterado essa proibição. E como se o artigo 31º A do decreto nº 3-C/2021 não tivesse fixado a proibição em forma de lei.

O jurista António Costa achou que o princípio da igualdade lhe dava o direito de prejudicar todos por igual. A proibição que decretou foi, para além de inconstitucional, uma medida escabrosa, porque a protecção da saúde pública seria beneficiada por uma acção que ajudava a manter os jovens ocupados em casa.

4. O que acontecer daqui para a frente não ficará a dever-se à capacidade do Governo para intervir. O seu tempo político foi gasto em mentiras e em bazófias de resultados próximos do zero.  

Bem ou mal, todas as escolas desenharam, no início do ano, planos que contemplavam três cenários: o desejável ensino presencial, o ensino de emergência, remoto, por recurso a meios digitais, e o ensino misto, alternando as duas vertentes anteriores. Foi a falta grosseira ao compromisso que António Costa assumiu em 9 de Abril passado (“estou em condições de assumir o compromisso de que, no início do próximo ano letivo, aconteça o que acontecer, teremos assegurado a universalidade do acesso em plataforma digital, rede e equipamento, para todos os alunos do básico e do secundário”) que ditou a total paragem das actividades lectivas. Não fora estar por fazer o que devia estar feito e ter-se-ia passado à solução menos má, isto é, ao ensino remoto.

A experiência do ensino remoto ou de emergência (que não à distância, como impropriamente é por vezes chamado) no ano passado foi má. Foi geradora de desigualdades, que deixou mais para trás os que já estavam mais atrás. Mas é a única possível, graças à incapacidade do Governo.

*Professor do ensino superior

in Público, 3 de Fevereiro de 2021