28/12/2016

Os lesados do BES e os lesados do ME

no Público
28 de Dezembro de 2016

por Santana Castilho*

Sem direito a perguntas, logo sem a maçada de dizer quem paga, quem assume as garantias e se o milagre agrava ou não as contas públicas, António Costa anunciou, em conferência de imprensa, a solução do decantado problema dos lesados do BES. Perito que é em dar boas novas e virar páginas, quando o vi numa escolinha, pronto para a mensagem de Natal, admiti, por momentos, que ia anunciar a solução para os lesados do ME. Qual quê!

Em 30 de Novembro último, o Ministério da Educação tornou pública a intenção de abrir um concurso para integrar nos quadros os docentes com um mínimo de vinte anos de serviço e cinco ou mais contratos a termo resolutivo, celebrados nos últimos seis anos. São estes e muitos outros, precários de uma vida, os lesados do ME, um ministério que vive há anos fora da lei, explorando miseravelmente quem o serve e concebendo maliciosamente soluções que iludem, sem resolver. É disto que trata a proposta, glosada com as coreografias governamentais e sindicais habituais e o pesadelo de sempre.

São duros os meus qualificativos? Que é, senão déspota, quem exige aos outros um contrato estável ao cabo de três anos de serviço, mas permite vinte para si e, ainda assim, os armadilha com requisitos desprezíveis? Que é, senão desprezível, a subtileza de persistir em considerar que os contratos anuais e sucessivos tenham que ser no mesmo grupo de recrutamento? Que é, senão iníquo, ardiloso e inconstitucional, deixar para trás docentes com maior antiguidade, só porque já foram vítimas de injustiças anteriores? Que é, senão inaceitável, a utilização abusiva de milhares de contratos de serviço de duração temporária, ano após ano, que violam o Direito da União Europeia (Diretiva 1999/70/CE), como, aliás, foi reconhecido pelo respectivo Tribunal de Justiça?

Desde há muito que os concursos de professores geram injustiças e criam castas, por via de sucessivas mudanças de regras, donde a ponderação da iniquidade desapareceu. Tudo indica que assim será, uma vez mais, com alguma coisa a mudar para que tudo continue na mesma, tónica aliás dominante da actual aposta na Educação.

Navegar por entre a teia da legislação aplicável aos concursos de professores é um desesperante exercício de resistência, onde a corrupção constitucional parece não incomodar o poder. Só legisladores mentalmente insanos e socialmente perversos a podem ter concebido, acrescentando sempre uma nova injustiça à anteriormente perpetrada.

A contratação de escola, com total desrespeito pela graduação e tempo de serviço dos candidatos, foi via aberta para despudorados favorecimentos. Basta ler as kafkianas 1347 páginas de subcritérios aplicáveis ao recrutamento de 2014/15, em sede de BCE, para dispensarmos mais argumentos. Apesar disso, alguns têm agora o topete de a defender, talvez por nunca terem lido o artigo 47º da Constituição da República Portuguesa, que assim dispõe:

“Todos os cidadãos têm direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso”.

A arrogância, o ódio aos professores, a ignorância sobre a realidade do sistema educativo e das escolas foram os eixos identificadores daquilo que poderemos designar por bloco central de governo da Educação da última década, marcada por uma estratégia política de degradação de uma classe profissional, com salários definitivamente reduzidos e progressão na carreira ad eternum suspensa, demasiado numerosa e heterogénea para se unir eficazmente. Insidiosamente, a conflitualidade e a sobrevivência impuseram-se como modus vivendi predominante nas escolas. O objectivo de muitos, ante a pressão psicológica e emocional a que estão sujeitos, é manter o salário, quantas vezes a troco da dignidade mínima. Costa sabe-o bem, que nisso é mestre. Por isso juntou o tema à factura dos lesados do BES, Novo Banco, e CGD, e varreu tudo para debaixo do tapete, com a ligeireza com que tirou a vaquinha e o burrinho do cenário de Natal.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

17/12/2016

O topete dos pais apressados do PISA

no Público
17 de Dezembro de 2016

por Santana Castilho*

Guterres tomou posse como Secretário-Geral da ONU. Ronaldo arrebatou outra Bola de Ouro. Cada família portuguesa vai gastar neste Natal 359 euros, diz a Deloitte, e Marcelo vai beijar as 207 crianças que nasceram ontem, prognostico eu. Que importa que no mesmo dia tenham morrido 284 portugueses? Que importa que a Der Spiegel diga que Ronaldo subtraiu 150 milhões ao fisco? Que importa que as contas da Deloitte sejam o resultado de uma média que junta os gastos obscenos de poucas famílias aos gastos miseráveis de dois milhões de pobres? Que importa tudo isso e quem sou eu para contrariar a euforia deste nosso modo bipolar de viver? Mas a festa dos pais apressados dos resultados do PISA, essa, tenho que a contraditar.

Quando toca a hora de colher louros, é enternecedor ver ex-ministros, que se digladiaram e reclamaram autores de teses opostas, aceitarem que as suas políticas, juntas, produziram bons resultados. O paradoxo talvez se resolva se trocarmos as premissas da equação. Se em vez do “graças a Lurdes Rodrigues” ou do “graças a Nuno Crato”, dos prosélitos, tentarmos os bem mais certos “apesar de Lurdes Rodrigues” e “apesar de Nuno Crato”.

Ambos escreveram artigos sobre os resultados do TIMMS e do PISA (DN de 7/12). Antes de se porem em bicos de pés, qual casal modelo, pais apressados do sucesso alheio, eles que humilharam, acusaram, denegriram e prejudicaram os professores como ninguém, tiveram o topete de lhes tecer, agora, rasgados elogios. Que pouco decoro!

Lurdes Rodrigues, passando de fininho pela “festa” da Parque Escolar, pelo deboche das Novas Oportunidades e pelos milhões que os Magalhães deitaram ao lixo, lembrou o Plano de Acção para a Matemática, mas esqueceu que teve contra ela 100 mil professores.

Nuno Crato pôs de lado a tese da década perdida e escreveu que os factores mais importantes que explicam os progressos dos resultados do PISA de 2012 para 2015 foram: “novos e ambiciosos objetivos curriculares - as metas curriculares - e novas avaliações - as provas finais nos 4.º e 6.º anos de escolaridade.” Ora se atendermos ao facto de os exames dos 6º e 4º anos terem sido introduzidos, respectivamente, nos anos lectivos de 2011/12 e 2012/13 e tivermos presentes as características da amostra usada nos testes do PISA 2015, podemos afirmar que nenhum aluno que a integrou foi submetido a qualquer dos exames invocados, pelo que é aberrante atribuir-lhes impacto nos resultados. No que toca às metas (veja-se o calendário estabelecido no DR nº 242, 2ª série, de 14/12/12) e ainda que se admitisse o efeito “tiro e queda”, o que em Educação é grotesco, elas nem chegaram a tocar um quarto dos alunos que prestaram provas em sede do PISA 2015.

Referindo-se às metas, escreve, ainda, que “foram centradas no conhecimento e não em "competências" vagas e impossíveis de avaliar.” E linhas á frente, sobre o PISA (que é construído e desenvolvido para avaliar competências, note-se bem), diz que “os documentos do estudo PISA são muito ricos.” Por fim, cereja no topo do escrito, afirma que o estudo permite “também perceber que as vias vocacionais tiveram um papel decisivo”, quando o que o relatório do PISA diz é que a orientação precoce dos alunos para percursos vocacionais é perniciosa para a aquisição de competências básicas essenciais.

Ligeireza? Desonestidade intelectual? Só ele saberá. Se é que sabe!

A modéstia e a humildade seriam prudentes se estes dois carrascos dos professores, finalmente, se tivessem enxergado e entendido que o acontecimento a celebrar é simples e exprime-se assim: apesar do aumento desmesurado das cargas de trabalho, do congelamento das carreiras, da perda de salário, de um ambiente institucional burocraticamente opressivo e inútil e das repercussões na disciplina escolar da degradação social de muitas famílias, os professores portugueses, com dignidade e responsabilidade profissional ímpares, aguentaram, não abandonaram os seus alunos e fizeram-nos progredir.

Em nome do crescimento, da eficiência e da eficácia, os instrumentos transnacionais de avaliação comparativa têm-se vindo a constituir como autoridades veneráveis e únicas, que paulatinamente unificam práticas e reduzem culturas e contextos díspares a estereótipos modais e à mesma escravatura de resultados, ao alcance de um clique.

Mas se um clique basta para aceder a séries estatísticas, nenhum clique chega para as explicar e interpretar, muito menos para as desconstruir, enquanto instrumentos de poder e controlo social.

Sim, o nosso sistema de ensino passou à frente da Finlândia no Olimpo da OCDE. Que nos afaguem pois o ego, mas não nos ceguem, os resultados do TIMSS e do PISA. Porque os nossos progressos estão colados a muito mais aulas para aprender o mesmo que os outros aprendem em menos aulas (temos 275 horas anuais em Matemática, que comparam com uma média de 157 nos países que foram avaliados pelo TIMSS e com as 100 da Coreia do Sul, terceira classificada). Porque o número de estudantes portugueses que já reprovaram um ano ultrapassa os 30% na amostra que se sujeitou ao PISA, enquanto a média da OCDE se fica pelos 13%. Porque, acima de tudo, estes programas deixam de lado todas as vertentes humanistas, morais, cívicas e artísticas dos sistemas de ensino (Andreas Schleicher, director do PISA, foi claro quando disse que o programa pretendia medir quanto “value for money” resulta dos sistemas de ensino em análise). Porque, em limite, o excesso de fé nestes programas pode estar para a Educação integral das nossas crianças como os martelos do Estado Islâmico estiveram para as relíquias do museu de Mosul.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

02/12/2016

Números duros, políticas moles


Há dias, foi tornado público que, durante o ano lectivo de 2015/2016, se registaram 5051 ocorrências do foro criminal nas escolas portuguesas, isto é, 500 por mês, em média. No ano anterior haviam sido registadas 3930. Sublinho que não se trata de incidentes disciplinares. Foram ocorrências que caem sob a alçada do Código Penal. Cumulativamente, a PSP teve ainda que intervir em mais 2001 situações de outro tipo. Estes números são preocupantes e apelam à reflexão.
Aquando de casos mais graves de violência em meio escolar, verifica-se, por parte das autoridades respectivas, uma propensão para dissimular os acontecimentos. Mas se por um lado sabemos que a tendência para iludir o óbvio foi classificada por Freud como a primeira paixão da humanidade, por outro também sabemos que ignorar a realidade nunca nos salva. Aceitemos, então, que a indisciplina é hoje um dos maiores, senão o maior, problema do sistema de ensino e que há uma evidente crise de autoridade na Escola. Quando a estudamos, são esmagadoras duas situações responsáveis: do ponto de vista interno, a falta de coragem para adoptar políticas adequadas à solução dos problemas, materializada pela manutenção de uma lei inadequada, que introduziu no processo disciplinar o método processual penal, com um cortejo de prazos, audições e garantias pedagogicamente desadequadas, tudo permitindo a proliferação de pequenos marginais; do ponto de vista externo, a crescente demissão dos pais para imporem disciplina aos filhos.
A maioria dos pais de filhos indisciplinados não gostaria de ter filhos indisciplinados. Mas não sabe ou não pode discipliná-los. Os restantes são negligentes, que não se interessam pelos filhos e são, eles próprios, quantas vezes, marginais.
Os alunos indisciplinados criam problemas graves, que perturbam a vida da comunidade. A Escola deve fazer o possível para os ajudar. Mas antes tem a obrigação de proteger os outros e não permitir que os primeiros lhes tornem a vida impossível. A palavra-chave de uma estratégia de actuação é responsabilizar. Não é ignorar, branquear, contemporizar.
Os jovens são seres que vivem de modo particularmente intenso e até tumultuoso as suas emoções. Os adultos têm mecanismos de regulação dessas emoções. Os jovens, em processo de formação, procuram-nos. Se em casa não os encontram, temos que dar instrumentos à Escola para enfrentar o obstáculo.
O empirismo de qualquer vida vivida (a redundância é propositada) dispensa a cultura psicológica mais erudita para sabermos como tem que ser. Numa primeira fase os comportamentos são regulados a partir de fora: são os pais, são os professores, são os adultos que actuam, que moldam. Num segundo momento, de co-regulação, o ser em crescimento vai aprendendo, na interacção com os outros, a dominar-se e respeitar os pares (sem dispensa da atenção cuidada e, sempre que necessário, activa e interventiva, do adulto). Para chegar, por fim, à auto-regulação, estádio maturo e autónomo em que, sozinhos, encontramos o nosso equilíbrio social.
Simples? Não, complexo. Sobretudo quando os políticos não percebem que tratar isto exige uma longa “linha de montagem”, que requer pessoas com tempo e meios para apertar os “parafusos”.
Dispendioso? Talvez não, se se derem conta que dispensa muitos envios para o “controlo de qualidade”. E, mais ainda, se se derem conta que os produtos acabados desta “linha de montagem” são pessoas. Isso, pessoas!
Uma forma de ignorar o problema da indisciplina é não o assumir como coisa da sociedade e da Escola e torná-lo coisa do professor, cuja função é mediar a aprendizagem dos alunos e não gerir conflitos provocados por comportamentos disruptivos. Tenhamos presente que essa função principal é constantemente secundarizada, quando não anulada, pela indisciplina e que grande parte do tempo lectivo é ocupada com a gestão de conflitos, quando devia ser usada com a gestão das aprendizagens.
In “Público” de 30.11.16

29/11/2016

Fidel Castro, o revolucionário mais icónico do século XX

Curto e claro

Numa das suas últimas intervenções públicas, no encerramento do Congresso do Partido Comunista Cubano, Fidel Castro falou da sua morte:

"Em breve vou fazer 90 anos. Isso nunca me tinha passado pela cabeça e não foi fruto de um esforço. Foi capricho da sorte. Em breve serei como todos os outros. A vez chega a todos, mas ficam as ideias dos comunistas cubanos como prova de que neste planeta, se se trabalha com fervor e dignidade, se podem produzir os bens materiais e culturais de que os seres humanos precisam e devemos lutar sem trégua para os obter”.

Na manhã de hoje, Fidel Castro será cremado. Reduzido a cinzas, passará a ser como todos os outros. Mas não foi como todos os outros. Nenhum como ele tentou um desenvolvimento independente contra um bloqueio desumano, de um vizinho forte, que já tinha feito de Cuba o bordel da América.

Violentamente odiado por uns, apaixonadamente amado por outros, é agora como todos seremos. Deixem que a história arrefeça para o julgarem e respeitem-lhe a morte.

Hoje, milhões de crianças morrerão com doenças que poucos dólares curariam. Nenhuma será cubana.
Hoje, milhões de crianças ainda não vão à escola. Nenhuma será cubana.
Hoje, milhões de crianças dormirão na rua. Poucas serão cubanas.

17/11/2016

Um reality check às políticas para a Educação

no Público
17 de Novembro de 2016

por Santana Castilho*

Ao completarem-se 30 anos sobre a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, este poderia ser o momento adequado para fazermos um balanço rigoroso dos caminhos que a Educação trilhou em democracia e, sobretudo, para definirmos o que queremos para o futuro.

Ao optar hoje, neste contexto, por um reality check, passe o estrangeirismo, às políticas do PS para a Educação, o meu objectivo não é opor-lhes certezas (que as tenho) mas antes confrontá-las com as interrogações e as perplexidades que suscitam. Com efeito, são as perguntas que podem ser feitas que mostram que as coisas vão acontecendo de modo imprudente, mais por reacção ao fundamentalismo de Crato que por ponderação da oportunidade, da qualidade e da justeza das políticas. Tudo beneficiando de um caudal de águas mornas de aceitação dos problemas mal resolvidos pela impreparação de Tiago Rodrigues e pelos excessos de Alexandra Leitão.

Cedo se tornou claro que a iniciativa pertencia à AR e que o PS não tinha problemas identificados e prioridades estabelecidas. Primeiro foram abolidos os exames nacionais de Matemática e Português do 1º ciclo do ensino básico, na manhã seguinte à tomada de posse do Governo, cujo programa não continha tal medida. Seguiu-se a extinção da PACC, de novo ao arrepio do programa, que apenas estabelecia a suspensão da prova, “procedendo à reponderação dos seus fundamentos, objetivos e termos de referência”. Estranhamente, os deputados do PS votaram contra o programa do seu próprio Governo, António Costa mostrou na AR que não o conhecia e o ministro da Educação, ao invés do que aconteceu, havia garantido que não seriam tomadas decisões sobre os exames sem ser ouvida a comunidade educativa. Não ficou claro quem mandava e quem engolia os sapos?

Seguiu-se a urgência desgarrada de impor, a meio de um ano lectivo, a trapalhada do “Modelo Integrado de Avaliação Externa das Aprendizagens no Ensino Básico”, que recuperou provas que já usámos e se revelaram inúteis, confrontou alunos e professores com três modelos de avaliação, três, num só ano e obrigou à intervenção “salvadora” de Marcelo. Não ficou profetizada a incompetência pedagógica que se seguiria?

No início de 2016, as “Grandes Opções do Plano” alargaram a todos os alunos do ensino básico o conceito, de Maria de Lurdes Rodrigues, de “Escola a Tempo Inteiro” (permanência na escola das 08.30 às 19.30). Não é verdade que o PS ainda não percebeu que mais escola não significa melhor educação? Que cada vez mais as crianças não são crianças? Que não têm tempo para brincar livremente, a actividade mais séria do seu crescimento?

No mesmo documento, o PS lamentava que a taxa de “escolarização efectiva antes dos três anos” fosse apenas de 45,9% e regozijava-se por essa taxa ficar, ainda assim, “claramente acima dos 27,7 % da Finlândia”. Não é verdade que o PS ainda não percebeu que, no caso vertente, taxa baixa é melhor que taxa alta? Que só cresce a necessidade de mais berçários porque aumenta o peso do trabalho desregulado e mal pago? Que a falta de tempo para os pais se dedicarem ao crescimento dos filhos é um problema social real e grave, que não se resolve substituindo pais por professores e técnicos?

Por que razão permanecem incólumes as burocracias sem sentido, que penalizam drasticamente as condições de trabalho dos professores e, por essa via, roubam tempo e dedicação ao ensino dos alunos?

Compreende-se que nada tenha sido feito para alterar o estatuto do ensino particular e cooperativo quando se tomaram medidas efectivas que o derrogaram?

Aceita-se que as mesmas forças políticas que tanto zurziram a denominada municipalização da Educação permitam o avanço dissimulado do processo?

Compreende-se que na legislatura que queria virar a página os agrupamentos, o modelo de gestão das escolas e o estatuto da carreira docente, de Maria de Lurdes Rodrigues, ainda brilhem como se fossem a última Coca-Cola no deserto?

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

15/11/2016

convite: "Portugal: O Futuro É Possível"

A apresentação da obra será no dia 16 de Novembro (quarta-feira), pelas 18h30, na Biblioteca dos Paços do Concelho - Câmara Municipal de Lisboa.

(clicar para ampliar)

 

10/11/2016

“America's Brexit”

retirado daqui

Curto e Claro

“America's Brexit”

Embora literalmente “bocejado” pela sorte de ainda aguentar “directas” (refiro-me, do mesmo passo, a uma noite sem dormir e às eleições americanas) é ousado escrever de cabeça zonza. Leiam tudo, que será curto. E sejam generosos, se não resultar claro.

Por todo o mundo, cada vez mais se verifica que os cidadãos já não se dão ao trabalho de votar. Talvez porque pouco muda, eleição após eleição, epifenómenos menores de uma ordem mundial maior (leia-se financeira e corrupta). Não foi assim com o Brexit, não foi assim nestas eleições americanas. Talvez porque cansados, desiludidos com o poder do dinheiro e com a supremacia da ordem global, os cidadãos preferem arriscar no que não conhecem a viver com o que conhecem.
Ninguém sabe o que será a América de Donald Trump, que, importa sublinhar, conquistou também o Senado e o Congresso. Mas todos sabíamos o que seria a América de Hillary Clinton.
Ninguém sabe o que passará para o exercício do poder de um discurso de campanha autoritário, mentiroso, xenófobo, homofóbico, misógino, racista e instável de Trump. Mas (invoco a atenuante da noite em claro) a eternização da perfídia de Washington, sustentada pelos títeres de Wall Street (combustível e comburente de Hillary) seriam alternativa melhor? Estamos agora mais perto ou mais longe de um terceiro conflito bélico, à escala mundial? Significativo, neste âmbito, (coisa menos iluminada pelos holofotes dos jornais e das televisões que os escândalos de Trump) é ver como os falcões do Pentágono ameaçaram demitir-se se Trump ganhasse.
Ninguém sabe o que se segue. Mas todos sabemos que as consequências do “America's Brexit” chegarão a todo o mundo. Se não o assassinarem antes.

08/11/2016

"Disse Costa!"

Santana Castilho
7/11 às 9:43 ·

Curto e Claro

Disse Costa!

No dia 20 de Outubro transacto, António Costa foi ao Jardim de Inverno do Teatro São Luiz, a convite da Área Urbana de Lisboa (FAUL) do PS, falar aos socialistas sobre os problemas suscitados pelo OE 2017. Uma militante do PS, tratando-o por “meu camarada”, interpelou-o deste jeito:

“É uma vergonha o salário do presidente da Caixa Geral de Depósitos. Como é possível alguém ganhar tanto dinheiro assim?”
A resposta de António Costa:
“Pode ser impopular o vencimento, mas eu não arrisco a má gestão da Caixa”.

Parece legítimo concluir que Costa estabeleceu uma relação causa/efeito entre a qualidade da gestão e a quantidade de dinheiro que o gestor ganha. Dado que o vencimento do presidente da Caixa Geral de Depósitos foi fixado em 423 mil euros/ano, mais prémios (que podem chegar a 50% daquela quantia) e o de António Costa não chega aos 80 mil, a que não acrescem prémios, é razoável concluir que, segundo Costa, só podemos esperar, de Costa, uma má gestão.
Não digo eu. Disse Costa!

07/11/2016

das memórias e dos afectos

Foi a sua publicação mais apreciada, contada em 605 "gostos", no facebook. Suscitou inúmeros comentários de quem foi passando pela vida deste Professor, a saudade e o apreço sem limites, a gratidão de quem lhe reconhece as qualidades ímpares, enquanto Homem (e, sim, com a maiúscula que a tão poucos é devida!) e enquanto Profissional, o Primeiro entre os melhores.
Aqui fica mais uma homenagem, de uma professora que lhe deve (como todos os professores deste país!) o reconhecimento e o incentivo, o apoio e a generosidade, sempre, a força de lutar, todos os dias: por uma profissão que tantos aviltam e de que poucos reconhecem a relevância, pela Escola Pública que tanto beneficiaria da sua orientação e do seu saber, do seu humanismo. Obrigada, Professor Santana Castilho! 
E cito Bertolt Brecht:

«Há homens que lutam um dia, e são bons. Há outros que lutam um ano, e são melhores. Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons. Porém há os que lutam toda a vida. Estes são os imprescindíveis.»

06/11/2016

a interiorizar ...

da página no  facebook do Professor Santana Castilho 




«Todo o poder só se constrói 
sobre o consentimento dos que obedecem!»

02/11/2016

Os tocadores dos tambores do empreendedorismo

no Público
2 de Novembro de 2016

por Santana Castilho*

Pelo Expresso de 22 de Outubro, fiquei a saber que está criada uma “fábrica de líderes” (sic) em Cascais. A matéria-prima para a fabricação são 10 mil alunos de 50 escolas de Cascais. Diz a notícia que se trata do “maior programa municipal de empreendedorismo nas escolas” e afirma o obreiro mor, vereador Nuno Piteira Lopes, que quer “despertar o espírito empreendedor dos mais novos, dando-lhes ferramentas para encararem a criação de negócio próprio”. A iniciativa é da DNA Cascais, dita pelos costumes como associação sem fins lucrativos, mas verificada, de facto, como uma emanação da Câmara Municipal de Cascais. Com efeito, os associados fundadores são empresas municipais e a própria câmara e os órgãos sociais confundem-se, ora com políticos do PSD, ora com elementos da autarquia. Tudo em casa, pois, com a municipalização da Educação a passar de fininho, sob a égide da geringonça.

Softkills” (é talvez um acto falhado, mas é assim que está escrito no texto que cito) e “coaching”, são dois instrumentos pedagógicos com que o despertador de espíritos, Piteira Lopes, conta para catequisar 10 mil indígenas. O presidente da Câmara Municipal de Óbidos, o primeiro que se chegou à frente logo que a municipalização deu os primeiros passos, aquele que anunciou filosofia para os alunos do 1º ciclo do básico, yoga para os do jardim-de-infância e golf e eco design para os do secundário, não está mais só em matéria de arrojo. Já só faltam 306 contributos das restantes câmaras do país, no prometedor caminho da municipalização da Educação, para termos o curriculum nacional transformado numa empreendedora nave de loucos.

Em matéria de parceiros, Cascais tem um de peso: a Junior Achievement Portugal, aquela associação que foi acusada por um grupo de mães e pais de andar a “doutrinar crianças a ver a família como unidade de consumo e produção”.

A educação é cada vez mais pautada pela doutrina da sociedade de consumo e os alunos são cada vez mais orientados para os desejos que a orgia da publicidade fomenta. O nosso sistema de ensino deixa-os sem tempo para serem crianças, porque lhes define rotinas e obrigações segundo um modelo de adestramento que ignora as suas necessidades vitais de crescimento. A compreensão simples do que é uma criança é constantemente distorcida. E, digo-o com pesar, se não tivéssemos demasiados professores a não fazerem o seu trabalho, isto é, apanhando a onda em vez de a questionarem, deixando-se envolver por ideias neoliberais, devidamente higienizadas por discursos modernistas, a probabilidade destes discursos morrerem à nascença era bem maior que a possibilidade de granjearem adesões cúmplices. Com consciência operante umas vezes, de modo acéfalo outras, há uma comunicação social dominante, que usa técnicas de propaganda para formatar a opinião pública. Com peças persuasivas, na ausência de contraditório, é ver como fraudes e agressões passam por virtudes, trazendo consentimento para onde deveria existir questionamento, senão rejeição.

Correndo o risco de divergir da festa cascalense, permitam-me que complemente a peça do Expresso com quatro notas sobre a moda do empreendedorismo: cerca de 40% dos nossos activos são empresários em nome próprio ou labutam em empresas que têm menos de uma dezena de trabalhadores (o que mostra que não nos falta iniciativa para criar “negócios”); quanto mais atrasados são os países, mais elevados são os níveis de empreendedorismo dos seus cidadãos (o auto-emprego na Noruega não chega a 10%, mas no Bangladesh pula para 75%); o grosso dos activos dos países desenvolvidos trabalha em grandes organizações, que não em pequenos “negócios”; concluindo, promovamos um sistema de ensino que liberte as capacidades criadoras dos jovens (que só acrescentam valor relevante quando aproveitadas por organizações altamente profissionais e eficazes) em vez de iludir a chaga do desemprego com o folclore do empreendedorismo e criação do próprio “negócio”.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

31/10/2016

entrevista - Diário do Alentejo


Diário do Alentejo
28 outubro 2016

Texto: Paulo Barriga

SANTANA CASTILHO, pedagogo natural de Beja, regressa hoje (28/10) à sua cidade natal para uma conferência em torno da formação para a vida ativa. A iniciativa, que decorre (decorreu ...)  a partir das 10 horas no ginásio da Escola D.Manuel I, insere-se nas comemorações dos 25 anos da Associação dos Antigos Alunos da Escola Industrial e Comercial de Beja, e conta ainda com a presença do antigo ministro da Educação de Durão Barroso, David Justino. O “DA” publica em exclusivo uma entrevista com Santana Castilho onde se faz a revisão das principais matérias que afetam as políticas de ensino em Portugal e onde é evidenciada uma verdadeira “falta de reflexão e produção doutrinária sobre os grandes problemas do sistema de ensino” por parte dos partidos políticos. 

"Aos partidos políticos falta reflexão e produção doutrinária sobre os grandes problemas do sistema de ensino."

.
Há mais de 40 anos que anda na docência. Esta coisa de cada um que chega de novo mudar as regras do jogo do ensino e da educação em Portugal não o aborrece já um bocadinho? 
Aborrece muito e cansa ainda mais. Mas a questão que me anima nos momentos de desalento é saber que, não fora a luta de muitos, nos quais me incluo, e os resultados da atrevida ignorância de tantos políticos seria ainda pior.

Por vezes até passa para a opinião pública que cada novo ministério, ou ministro, acaba sempre por chegar com uma certa vontadezinha de deixar o seu próprio nome gravado na história da educação em Portugal... Partilha desta ideia? 
A simples constatação empírica mostra que a substituição do que se encontra por aquilo que se propõe despreza olimpicamente duas vertentes básicas de qualquer processo de mudança: avaliação séria e fundamentação sólida. Mas há quem chegue com a vaidade de ligar o nome, não importa a que reforma, e há quem chegue com o propósito de obedecer a quem manda, mesmo que nada entenda do que faz. O atual ministro ilustra bem esta postura. Safa-o a circunstância de os erros que comete serem, ainda assim, menos perniciosos para o sistema que as maldades concebidas pelo anterior governo PSD-CDS.

Santana Castilho também teve responsabilidades governativas. É assim tão difícil estabelecer uma linha de ação coerente e duradoura em termos educacionais? 
É difícil, efetivamente. E ocuparia todo o seu jornal a dizer-lhe porquê, no contexto da cultura política em que vivemos. Aos partidos políticos falta reflexão e produção doutrinária sobre os grandes problemas do sistema de ensino. Quando chega a hora, o exercício responsável do poder cede o passo à simples exibição de poder e o improviso substitui a sensatez que o conhecimento permite. Neste caldo cultural é impossível operar estabilidade e aceitação durável das políticas. A imposição ignorante não é conciliável senão com uma falsa ideia de democracia.

Já por várias vezes o li a defender a necessidade de um “pacto para a educação”. Está a falar do quê, em concreto?
A pedagogia é uma área da atividade humana que se serve de várias ciências. É fundamentalmente especulativa, mais caracterizada pela pluralidade de hipóteses que pela existência de certezas. Mas a produção científica existente permite fazer escolhas que se afigurem mais adequadas para o contexto do País. Fazer essas escolhas e acordar em as manter por todo um ciclo de formação dos jovens portugueses é uma utopia transformável em realidade quando mudarmos a forma de fazer política. É dessa mudança que falo.

Digamos que, numa área onde os interesses são tão diversos e as opiniões, por vezes, tão antagónicas, não será nada fácil estabelecer esse “pacto”. Aliás, o próprio Santana Castilho referiu, não há muito, que o atual ministro da Educação chegou ao cargo, e cito, “sem uma linha conhecida ou ideia” sobre o assunto. 
Reconheçamos que, desta forma, não há pacto de regime que possa resistir... Entendo o exercício político como serviço público, o que quer dizer que, nessa sede, os interesses particulares caem sempre face aos interesses coletivos. Um político que assim actue precisa de uma formação ética inabalável, a par de um conhecimento superior relativamente à área que dirige. Enquanto a cultura organizacional dos partidos políticos for ditada por carreiristas e oportunistas, que desprezam estes valores, tem razão: não será fácil realizar a minha utopia.

Já agora, o que pretendeu dizer quando escreveu que tinha conhecido o PS antes de ser virgem? 
Foi uma metáfora alusiva à recorrente falta de pudor do atual PS, que se esquece do que o anterior PS fez. Que assobia para o lado e ignora, sem ética e sem delas se ter demarcado, as malfeitorias de Sócrates e Maria de Lurdes Rodrigues. Conta-se que, no início da década de 1970, Doris Day terá feito um discurso no fim de um jantar de homenagem. Todos os americanos, de smoking, se levantaram para aplaudir, excepto Groucho Marx. Interpelado por tal grosseria, terá respondido: “I’m so old that I knew her before she was a virgin”.

Santana Castilho é das vozes mais críticas e mais longevas sobre a educação em Portugal. Esta sua ousadia permanente tem-lhe trazido alguns dissabores ao longo da sua vida? 
Muitos. Mas são as alegrias, que também são algumas, particularmente o reconhecimento dos meus alunos e de muitos colegas que prezo, que me dão o propósito firme de persistir.

Como é que olha para o ensino em Portugal hoje em dia, nomeadamente para esta nova proposta através da qual se pretende saber quais as matérias que são verdadeiramente essenciais constarem dos currículos? 
Jugo que a síntese está feita nas respostas anteriores e a situação a que se refere é um exemplo do que caracterizei como atuação dominante.
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"A sociedade esquece-se de que o papel da Educação é transformar o mais possível em acto as Potencialidades de cada criança."


Não saímos, então, da tal guerra entre a “cultura universal” e a “cultura utilitarista”? 
Hoje, a preponderância da visão utilitarista e imediatista na Educação é um facto. Assim reclamam os interesses económicos, em cuja teia vão caindo as próprias famílias. A sociedade esquece-se de que o papel da Educação é transformar o mais possível em acto as potencialidades de cada criança. E essas potencialidades têm, muitas vezes, relação com interesses e capacidades distintas do que dá lucro imediato.

Qual a sua opinião em relação à distribuição gratuita dos manuais escolares do primeiro ciclo, com necessidade de devolução incólume no final do ano letivo? 
O Governo decidiu sem avaliar as consequências da imposição de um modelo de gratuidade e reutilização dos manuais escolares. Decidiu sem considerar o impacto numa indústria que move anualmente 100 milhões de euros, dá emprego a duas mil pessoas e interessa a 1 600 livrarias. Trata-se de uma iniciativa populista, que agrada ao mainstream mas que abalroa, de modo centralista, interesses de editores, de autores e dos que trabalham na indústria da produção de livros. Dito isto, não ignoro a necessidade de uma melhor regulação da atividade das editoras escolares, que funcionam em oligopólio e praticam preços injustificáveis. Era isso que o Governo devia ter feito e não meter-se na trapalhada que sintetizo nas seguintes questões: Por que razão não esperou pelas conclusões do grupo de trabalho que nomeou para estudar o problema? Como vai gerir administrativamente milhões de processos de empréstimo, designadamente executar o recebimento das indemnizações pelos manuais que sejam devolvidos em mau estado, ou não sejam devolvidos? Por que estranho critério excluiu liminarmente do processo os alunos do ensino privado? Por que nada fez para conferir eficácia ao regime de certificação dos manuais escolares, previsto na Lei n.º 47/2006? Que ponderação fez sobre as consequências de uma caixa de Pandora, que se abre num cenário de ensino obrigatório, que é de 12 anos e não apenas de ensino básico? Como irá lidar o Governo com a incoerência que resulta de impor a reutilização ao mesmo tempo que anuncia a alteração de programas, que vão já no próximo ano tornar obsoletos manuais a meio do ciclo de validade legal?

Bom, é uma lista interminável de questões que se levanta de uma única… Santana Castilho está em Beja, a sua terra natal, a convite da Associação dos Antigos Alunos da Escola Industrial e Comercial de Beja. Que memórias guarda dos tempos em que por cá estudou? 
Já viu como vai longa esta entrevista? Julga que tem jornal para acomodar a emoção que verteria para o seu papel, se desatasse a responder-lhe? Fiquemos por aqui e com a certeza de que aí passei os melhores anos da minha vida, graças aos pais que tive, aos professores que me ensinaram e à gente de uma terra que trago sempre no coração.

Hoje em dia, quer a antiga Escola Industrial, quer o antigo Liceu foram transformados em mega-agrupamentos. Concorda com esta política de concentração? 
Não! Houvera um Código Pedagógico com a força legal do Código Penal e só a inimputabilidade cognitiva acerca das necessidades das crianças impediria muitos de cumprirem pesadas penas.

Conhecendo como conheceu os meios rurais, como assistiu ao encerramento de centenas de escolas primárias em pequenas aldeias do Alentejo e de todo o interior do País? 
Como instrumento pérfido de, em nome de um falso modernismo, condenar o interior à desertificação sem apelo.

Foi presidente do Politécnico de Setúbal. Que futuro prevê para estas instituições? 
As instituições a que se refere estão em crise. Terão futuro quando as políticas visarem o desenvolvimento do interior e as instituições preencherem o espaço para que foram concebidas.

Faz sentido coexistirem em Portugal dois níveis diferentes de ensino superior? 
Faz, se racionalizarmos a rede de oferta do ensino superior e substituirmos a lógica da competição pela lógica da cooperação.

Ou os politécnicos estão condenados a serem as futuras escolas profissionais do sistema de ensino?
Não penso que tal venha a acontecer, embora a tentação de garantir fontes de financiamento o indicie e o preconceito de muitos contra o ensino superior politécnico o deseje.
 recebido via e-mail 

19/10/2016

Manuais escolares: o populismo decide, a sensatez paga

no Público
19 de Outubro de 2016

por Santana Castilho*

O Governo escreveu e os jornais repetiram: a despesa com a Educação sobe 3,1% em 2017. Mas, não é assim. O que o Governo acaba de apresentar é o que estima vir a gastar em 2017, que comparou com o que previu gastar em 2016. Ora o Governo sabe que vai fechar as contas de 2016 com uma despesa bem superior à que estimou. Termos em que, com o que já se conhece, a afirmação é falsa.

Apesar deste expediente e dos artifícios que recheiam o OE 2017, fica desde já claro que prefiro a lógica que o informa à lógica dos que o antecederam. Posto isto, permitam-me que formule a pergunta de partida para abordar um desses artifícios: quais são as consequências da imposição de um modelo de gratuidade e reutilização dos manuais escolares? Como se pretende abordar uma indústria que, estima-se, move anualmente 100 milhões de euros, dá emprego a 2.000 pessoas e interessa a 1.600 livrarias? Poderemos ter, numa primeira fase, sob um pretexto político discutível mas que é bem acolhido pelo mainstream, uma iniciativa que poderá destruir, numa segunda fase, uma cultura que demorou décadas a desenvolver-se? Tratar-se-á de uma actuação movida por simples preconceito, que acaba abalroando, de modo centralista, interesses de editores, de autores e dos que trabalham na indústria da produção de livros?

Um parecer de Gomes Canotilho e Jónatas Machado e uma entrevista de Alexandra Leitão deram respostas opostas. Mas enquanto o parecer (ainda que pago pelos editores e apesar de eu nunca ter visto um só que não dê razão a quem o encomendou) é sólido e fundamentado, na entrevista a essência do problema é escamoteada por afirmações gongóricas, de pendor totalitário. No parecer sublinha-se a necessidade de ponderar a gratuidade com o efeito adverso numa indústria livreira livre e democrática. Na entrevista, Alexandra Leitão apoda o parecer de “juridiquês”. No parecer relaciona-se, com exemplos, a posse plena do livro escolar com os resultados superiores obtidos nos programas internacionais de avaliação de resultados. Na entrevista, Alexandra Leitão limita-se a sentenciar de cátedra: “ser contra a reutilização é passar um atestado de diminuição ao povo português”.

Nada do que fica dito branqueia a necessidade de uma melhor regulação da actividade das editoras escolares, que funcionam em oligopólio, que praticam preços injustificáveis face a uma oferta e uma procura antecipadamente conhecidas, onerando desproporcionalmente os orçamentos familiares. Outrossim, põe em relevo o que devia ter sido feito, se o Governo respondesse às perguntas que vai deixar sem resposta. Como vai gerir administrativamente milhões de processos de empréstimo, designadamente executar o recebimento das indemnizações pelos manuais que sejam devolvidos em mau estado, ou não sejam devolvidos? Por que estranho critério excluiu liminarmente do processo os alunos do ensino privado? Por que nada fez para conferir eficácia ao regime de certificação dos manuais escolares, previsto na Lei nº 47/2006? Por que razão não esperou pelas conclusões do grupo de trabalho que nomeou para estudar o problema? Que tem o Governo a dizer sobre a autonomia das escolas e o correlato poder de livre escolha dos manuais, agora fortemente condicionado? Que ponderação foi feita sobre as consequências de uma caixa de Pandora, que se abre num cenário de ensino obrigatório que muitos parecem ter esquecido ser de 12 anos, doze, e não apenas de ensino básico? Como irá lidar o Governo com a incoerência que resulta de impor a reutilização ao mesmo tempo que anuncia a alteração de programas, que vão já no próximo ano tornar obsoletos manuais a meio do ciclo de validade legal?

Eu sei que os populistas costumam decidir antes de reflectir e ouvir. Mas sempre custa ver a sensatez a pagar a factura.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

05/10/2016

Os diferentes tratamentos da realidade


por Santana Castilho *

Os diferentes tratamentos da realidade

Vieram a público dois importantes relatórios sobre Educação. Já me referi ao primeiro, Education at a Glance 2016, da OCDE. Importa hoje abordar o segundo, Estado da Educação 2015, do Conselho Nacional de Educação. São 300 páginas, que radiografam a educação nacional, compilando dados de fontes diversas. Eis a síntese que me parece útil, em números, comprimida para o espaço de que disponho: a população portuguesa decresce desde 2010 (somos 10.358.076, mas éramos mais 215.024 em 2010); 14,2% são jovens, 20,5% são idosos, 52,6% são mulheres e 47,4% homens; a população activa diminuiu 5,5% na última década; o saldo natural (os que nascem menos os que morrem) é negativo, desde 2009; o saldo migratório (os que chegam menos os que partem) é, também, negativo, desde 2011; embora 2015 registe um ligeiro aumento de nascimentos, prevê-se que, nos próximos 5 anos, a diminuição das inscrições no 1º ano do ensino básico duplique por referência à verificada nos últimos 10 e só a partir de 2022 se comece a inverter a tendência.

A taxa de abandono precoce da educação (13,7%) está, felizmente, em queda; as taxas de conclusão do ensino básico e dos cursos do ensino secundário aumentaram; verificou-se nos últimos 10 anos um forte crescimento dos níveis de escolaridade da população activa (+ 58,5% relativamente ao ensino secundário e + 66,8% no que toca ao superior); no mesmo período, o ensino público não superior perdeu 73.572 alunos, enquanto o privado ganhou 18.912; nos últimos quatro anos, diminuiu significativamente o número de técnicos de educação especial, embora tenha aumentado o número de alunos dessa área; a relação psicólogos/alunos, no ensino público, é 1/1.270; na última década, o sistema de ensino perdeu 40.159 docentes e a despesa pública em percentagem do PIB reduziu 15% para o 1º ciclo do ensino básico e 8,3% para os outros dois ciclos e para o secundário.

Fora outro o autor desta curta síntese e os números retirados de tantos quadros e gráficos seriam diferentes. Sejam quais forem, mais importante que mostrar é interpretar, relacionar e explicar.

Quando falamos de recursos públicos, a prestação de contas é um conceito que colhe ampla aceitação no seio de qualquer sociedade democrática. Mas a tendência actual para tudo medir e tudo reduzir a números, seja qual for a natureza e a complexidade dos fenómenos em causa, vem-nos mergulhando numa cultura comunicacional de pendor estatístico e econométrico que, amiúde, não serve a verdade de que a democracia carece, porque cada arauto manipula os dados até identificar a realidade com os seus interesses.

Sobre um fenómeno, estatisticamente tratado, não existe, normalmente, uma só leitura. Existem leituras (e sublinho o plural), com pontos fortes e fracos, segundo a perspectiva de análise, as fontes usadas e os processos de construção dos indicadores. Disto mesmo encontramos abundantes exemplos na Introdução ao Estado da Educação 2015. Sobre o bullying, diz-se que “é cada vez maior a percentagem de alunos que afirma nunca terem sido vítimas de bullying” e diz-se, também, que Portugal pertence aos “países da OCDE onde essa prática concita maior número de queixas”. Sobre o grau de satisfação dos alunos com a escola, afirma-se que os alunos portugueses são dos que se sentem mais felizes. Mas, noutro quadro, só 12% dizem gostar muito da escola. E o perfil de felicidade referido contradiz, claramente, a opinião dos directores sobre o mesmo tema.

Se mudarmos de campo e passarmos para a discussão política dos últimos dias, sobre a evolução da economia e das finanças públicas, vemos o Governo a entoar hosanas à execução orçamental apurada no fim de Agosto (o défice fixou-se em menos 81 milhões quando comparado com Agosto de 2015). Mas se olharmos para o processo que nos trouxe a este défice melhorado, que vemos? Que até ao fim de Agosto o Estado cobrou em receitas (impostos, basicamente) 49,2 mil milhões de euros (mais 622 milhões relativamente a Agosto de 2015) e gastou 53,8 mil milhões (mais 541 milhões relativamente a Agosto de 2015). Assim, o défice das contas públicas, que em Agosto de 2016 se fixou em 4,6 mil milhões, melhorou em termos homólogos porque a carga fiscal aumentou, independentemente de qualquer juízo de valor sobre a natureza dos impostos que subiram e sobre a mudança de critérios para distribuir a riqueza.

O problema da nossa política é a incapacidade persistente em tomar como dialogantes as perspectivas diferentes, de modo a gerar entendimentos mínimos sobre o que é essencial. E assim vivemos, seja na Educação, seja na Economia, em ciclos de mudanças políticas que primam pela lógica primária de substituir o que se encontra pelo seu oposto, com a promessa recorrente de amanhãs que cantarão e a estratégia gasta de transformar a realidade no interesse partidário.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

21/09/2016

Erros e falta de rigor

no Público
21 de Setembro de 2016

por Santana Castilho *

Não será difícil admitir que a Educação é um instrumento ímpar, que não único, para promover o progresso social, sobretudo quando se calcula que 228 milhões de crianças continuam, em todo o mundo, sem escola e que 400 milhões a abandonarão sem qualificação primária, seja porque tiveram o azar de nascer num sítio e não noutro, seja porque nasceram mulheres em vez de homens, seja ainda porque a guerra lhes caiu em cima. Os conhecimentos, as competências que por eles se adquirem e, mais que tudo, o carácter que a escolarização formal ajuda a moldar em cada ser humano contribuem, definitivamente, para o sucesso dos indivíduos e das nações. Neste quadro, os instrumentos de avaliação educacional e de estudo comparado dos resultados da Educação, independentemente das críticas que podemos aduzir à forma como demasiadas vezes são usados para impor políticas e à tendência para tudo medir e expressar em números, constituem referências importantes para compreender o passado e programar o futuro, desde que os interpretemos com rigor. Ora interpretar com rigor começa, elementarmente, por conhecer, antes de usar parangonas que enchem os olhos, as metodologias dos processos e as unidades em que os conceitos se exprimem.

No passado dia 15, em Bruxelas, Ángel Gurría, secretário-geral da OCDE, apresentou o Education at a Glance 2016, um relatório detalhado sobre os sistemas educativos de 46 países (35 membros mais 11). São 505 páginas na versão inglesa ou 543 na francesa, complexas de analisar, pela extensão, pela profusão de quadros estatísticos e pela necessidade de os relacionar e cruzar, para relativizar e contextualizar conclusões. Não obstante, no mesmo dia, na hora seguinte, a imprensa escrita e falada veio a terreiro com afirmações de peso, mas infelizmente erradas ou pouco rigorosas. O maior erro, cometido em jogral pelo Jornal de Notícias, Negócios, Sábado, Observador e SIC Notícias, pelo menos, foi dizer que o investimento público em Educação, excluído o ensino superior, aumentou 33% em Portugal entre 2008 e 2013, de acordo com o relatório em análise. Tal afirmação constitui um erro grosseiro, que o Education at a Glance 2016 não comete. Em 2008, o PIB português cifrou-se em 178.872,6 milhões de euros e o investimento público em Educação representou 4,1% desse PIB. Em 2013 o investimento público cresceu uma magra décima (4,2) em termos percentuais. Mas, nesse ano, o PIB caiu para 170.269,3 milhões de euros. Logo, o investimento público desceu entre 2008 e 2013, em vez de ter aumentado os 33% propalados. Na pressa de falar sem analisar, a imprensa não se deu conta de que os números citados pelo Education at a Glance 2016 somam investimento público e investimento privado. Uma coisa é o que o que se consagra à Educação em sede de OE, outra coisa é a soma disso com outras fontes de financiamento. Por exemplo, do universo total dos alunos que frequentam os 2.633 colégios privados, 75% são integralmente financiados pelas famílias. Por exemplo, há financiamento da Educação com origem na União Europeia. Ou seja, em termos globais, a provisão do ensino tem custos relevantes para além daqueles que o Estado suporta, como é o caso, ainda, entre outros, dos materiais e manuais escolares, transportes, alimentação, “explicações” e actividades de investigação e desenvolvimento.

Por outro lado, não vi, em nenhum dos órgãos de imprensa que citei, notas complementares que ajudassem os leitores a interpretar os dados. É o caso da frequente utilização do PIB (Produto Interno Bruto) como indicador de referência e da correcção de dados nominais pela aplicação da PPC (Paridade do Poder de Compra).

O PIB, assumido como o valor pelo qual foi transacionada no mercado a totalidade dos bens e serviços produzidos por um país num ano, carece sempre de explicações acessórias para percebermos o significado das taxas percentuais que o referem como indicador. Comparar, como o Observador comparou, os 5,1% do PIB consignados a gastos públicos com a Educação de Portugal com os 6,2% da Noruega ou os 5,6% da Dinamarca, para além de estar errado, como já referi, induz quem lê a uma conclusão grosseiramente incorrecta, que só se resolve se, do mesmo passo, se disser (agora uso dados de 2015) que o PIB português foi 179.369 milhões de euros, enquanto os da Noruega e Dinamarca foram, respectivamente, 348.332 milhões (quase o dobro do nosso) e 266.178 milhões (superior ao nosso em mais de 86 mil milhões). E, sobretudo, se se disser, ainda, que a população daqueles países é … cerca de metade da nossa.

Quanto à PPC, que permite relacionar os rendimentos com os custos de vida entre diferentes países, constato que se fazem comparações utilizando os valores nominais de uns e os valores ponderados de outros, o que, naturalmente, distorce qualquer conclusão.

Tudo visto, será que a passividade generalizada ante tanto martelar de dados é simples consequência de um paradigma de falsa esperança, que transforma o anormal em normalidade institucional?

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

07/09/2016

Miragens no deserto

no Público
7 de Setembro de 2016

por Santana Castilho *

A análise dos contributos que o sistema de ensino projecta na sociedade portuguesa é complexa e varia com as perspectivas, técnicas ou políticas, dos observadores. Mas há dados que são incontornáveis. Tendo a OCDE por fonte (Education at a Glance), Portugal tinha, em 2014, 57% da sua população com o 3º ciclo do ensino básico ou menos, enquanto a média da OCDE se cifrava apenas em 21%. Apesar disso, foi no sistema de ensino que a política de austeridade do anterior Governo provocou maior destruição, sem que o actual tenha revertido a situação (no OE para 2016 estão inscritos, para o ensinos básico e secundário, ainda menos 149,9 milhões de euros, relativamente ao que foi gasto em 2015).
Por outro lado, as Estatísticas do Emprego (INE) mostram que, entre 2007 e 2015, foram extintos 1 milhão e 378 mil postos de trabalho para os detentores de habilitação igual ou inferior ao 3º ciclo do ensino básico, face à redução global de 621.000 empregos. Significa isto que os mesmos postos de trabalho, que antes eram ocupados pelos menos qualificados, foram preenchidos por trabalhadores com maior habilitação. Ganhando estes mais? Não, ganhando menos, já que a remuneração média em Portugal diminuiu 24,5 euros de 2011 para 2014 (Boletim Estatístico do GEP do Ministério da Economia). Conclusão: os patrões aproveitaram a crise para substituir menos qualificados por mais qualificados, pagando menos.
Vêm estas considerações a propósito das reflexões que os começos dos anos lectivos sempre suscitam. Este, que agora arranca, primeiro da total responsabilidade do actual Governo, inicia-se sob duas bandeiras ideológicas: a das novas Novas Oportunidades, que alimentará ilusões de incautos, à semelhança da anterior iniciativa, e terminará queimando, com a mesma duvidosa utilidade, quase 900 milhões de euros (não é erro meu, é previsão do Governo, ínsita no Programa Nacional de Reformas) e a que dá pelo nome de Programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar, cujos mentores podem conhecer todos os livros do baú das teorias pedagógicas, mas nada sabem das razões determinantes do insucesso escolar.
Quanto ao mais, quê? Negadas liminarmente, há bem pouco, medidas de renovação de um corpo docente envelhecido.
Sem perspectiva de fim o congelamento da carreira docente, que foi decretado em 2005, como transitório e para durar apenas até 31/12/2006, já lá vão 11 anos (relaxada Lei 43/2005).
30.000 professores no desemprego. 508 docentes do pré-escolar sem turma e crianças dessa faixa etária sem educadores suficientes, nos grandes centros urbanos. 7.306 professores, com 10, 15 ou 20 anos de serviço, contratados a prazo a meio da antevéspera do início do ano lectivo, depois de férias na ansiedade do desemprego, com cinco dias para fazerem malas, arranjarem albergue, transferirem filhos ou dizerem-lhes adeus e aos maridos e às mulheres, tudo com aviltante desprezo pelo que Constituição fixa sobre a família (artº 67º), sem que, sequer, lhes paguem a partir do primeiro dia de Setembro. Foi melhor que antes? Foi. Mas continuou indigno e podia ter sido diferente.
Municipalização da Educação, a que a maioria se opõe, a avançar de mansinho; diminuição do número de alunos por turma guardada na caixa das promessas; silêncio sobre o modelo de gestão das escolas, sobre a sobrecarga dos curricula, sobre a burocracia asfixiante, sobre as diferenças de tratamento entre os professores do 1º ciclo e os outros e sobre a reorganização do desporto escolar; esponja passada sobre o atropelo às necessidades educativas especiais.
Vivemos ignorando a vida para lá das questões da gestão corrente e do foguetório propagandístico e esquecendo as experiências anteriores, por mais recentes que sejam. Os governos, férteis em demagogia e ignorância para definir o que julgam premente, concentram todas as energias na demolição do que encontram e partem sem o mínimo esforço para discutir e encontrar soluções para os problemas de fundo da Educação. Vivemos assim há duas décadas, sem pensar o futuro, de máquina de calcular em riste, mas máquina que só faz contas para aplicar a uma parte da sociedade e a um determinado tipo de problemas. O sistema de ensino, anémico, cansado e descrente, é uma equação reduzida a estas premissas.
O termo está gasto, mas era mesmo preciso um pacto para a Educação. Não direi um pacto que a convertesse na primeira prioridade (passe a redundância) porque a Saúde e a Justiça, carentes de modelo idêntico, têm precedência em sede de urgência política. Mas a Educação vem à frente se quisermos, seriamente, preparar o futuro a 20 anos de prazo e abrir caminho à mudança cultural partidária que esse desiderato nacional exige. Só um pacto dessa natureza, duradouro, sólido e verdadeiramente nacional nos poderia afastar das constantes capitulações ante populismos fáceis e apetecíveis resultados imediatos, efémeros como miragens no deserto.
* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

24/08/2016

Conheci o PS antes de ser virgem

no Público
24 de Agosto de 2016

por Santana Castilho *

A análise das políticas propostas e a análise do discurso dos que comunicam em representação dos partidos permite estabelecer padrões previsíveis de comportamento político. Aí temos o PS, fazendo-se de virgem, a patentear, agora que se inicia o primeiro ano-lectivo sob sua inteira responsabilidade, o que fui antecipando e criticando, ainda a presente legislatura não tinha arrancado: a vacuidade de soluções para os verdadeiros problemas da Educação.

À míngua de preparação e de estudo dos problemas durante os últimos quatro anos em que foi Oposição, o PS recorreu ao baú dos adquiridos ideológicos de sempre para repetir os erros, que nunca reconheceu, dos últimos quatro anos em que foi Governo.

A 22 de Março de 2015, antes das eleições que viria a perder, no auditório do Museu de História Natural e da Ciência, após um debate sobre “qualificações”, António Costa anunciou que a educação de adultos, particularmente a recuperação do programa “Novas Oportunidades”, era uma das suas quatro prioridades para a Educação e um “dever de cidadania”. De novo em Março, agora de 2016, após um Conselho de Ministros dedicado à Educação, Tiago Rodrigues revelou que o rumo para a legislatura tinha, não quatro, mas cinco prioridades. Recordemo-las, como foram apresentadas: “orçamento participativo”, que consistirá em atribuir às escolas uma verba adicional para os estudantes gastarem como entenderem; “animação turística” das ruas das nossas cidades; “educação inclusiva”, metáfora para criar um grupo de trabalho que estudará a forma de juntar aos diplomas um descritivo do que os alunos fizeram em contexto extra-curricular; “sucesso escolar”, com o anúncio de um programa nacional de formação massiva de professores; e “formação de adultos”, recuperando, com rasgados elogios, as Novas Oportunidades, de má memória. A pavorosa semântica do ministro da Educação explicou-nos, na altura, o que seriam as novas “Novas Oportunidades”:

“Este programa deverá assentar numa maior integração das respostas na perspetiva de quem se dirige ao sistema, tornando, na ótica do formando, coerente e unificada a rede e o portefólio dos percursos formativos, que no percurso individual devem ser passíveis de combinação personalizada”. 

Entenderam? É tudo o que sabemos, para além de que pretendem começar com 50 milhões de euros.

A educação de adultos é importante? Obviamente que sim. Todas as iniciativas que visem a qualificação dos cidadãos são importantes. Mas será uma prioridade num país que não consegue matar a fome a todas as crianças do ensino obrigatório, que tem escolas sem dinheiro para pagar a electricidade que consomem, que exporta médicos, engenheiros e enfermeiros (só no Reino Unido estão 12.000), e que desperdiça no desemprego dezenas de milhares de licenciados, que custaram dezenas de milhares de milhões a serem formados?

Quanto ao programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar e ao seu primeiro ideólogo, José Verdasca, procuram atribuir às escolas e aos professores a culpa do insucesso dos alunos. Fazem-no por referência ao passado (a insidiosa “cultura de retenção”, que glosam recorrentemente) e voltam a fazê-lo quanto ao futuro, quando coube às escolas a responsabilidade de conceber planos de acção para um quadro conceptual que lhes foi imposto. Em recente entrevista ao Público, José Verdasca foi cristalino ao acusar os professores de não quererem mudar as práticas e ao afirmar que “a retenção não tem valor pedagógico e que um aluno que reprova provavelmente, no ano seguinte, terá níveis mais baixos de proficiência”. Sendo óbvio, dada a centralidade do plano na acção do Governo, que esta doutrina não é só de José Verdasca mas também do Governo, não seria menos pérfido e menos cobarde declararem por decreto o fim das reprovações?

Enquanto isto, a economia patenteia resultados miseráveis, completamente opostos aos prometidos pelo plano macroeconómico que António Costa sacralizou. As finanças estão ligadas ao suporte mínimo de vida do BCE. O colapso bancário é refém periclitante da generosidade da DBRS. A decisão do BCE sobre a CGD vexou Portugal e alguns cidadãos, arrastados num vórtice de vergonhosa incompetência e inaceitável desleixo. O investimento público de 2016 é inferior ao de 2015. O PIB cresceu um terço do previsto. A dívida pública aumentou. A “limpeza” de 120 dirigentes técnicos do IEFP passou de fininho, excepto para os 10 que recorreram aos tribunais. O caso Lacerda Machado, o melhor amigo de António Costa, que por isso mediou informalmente negócios de Estado, já lá vai. Outros três amigos, secretários de Estado protagonistas do escândalo Galp, foram aninhados no limbo do esquecimento a Carlos Martins, quinto amigo, secretário de Estado do Ambiente, com residência habitual em Cascais, que recebia um subsídio só devido a quem residisse a mais de 150 quilómetros de Lisboa.

Apesar de tudo isto, há quem bata palmas e eu não? Porquê? Porque, como diria Woody Allen, conheci o PS antes de ser virgem!

* Professor do ensino superior

10/08/2016

Nietzsche, a Galp e a consciência de alguns políticos

no Público
10/8/2016

por Santana Castilho *

Embora Nietzsche, filosoficamente, nos diga que não há factos, só interpretações, direi que há “não factos”, relativos às relações da Galp com Rocha Andrade e outros, que só admitem uma interpretação, a saber:
- A Galp patrocina a selecção de futebol porque isso lhe interessa comercialmente.
- As deferências corporativas (neste caso, da Galp) para com determinados protagonistas (neste caso secretários de Estado que podem decidir a favor ou a desfavor dos interesses da Galp) visam o estabelecimento subliminar de simpatia pelos interesses corporativos de quem convida.

- É inaceitável, ao nível do senso comum, que o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais receba presentes de uma empresa que tem um conflito imoral, de mais de 100 milhões de euros, com o Estado português, porque se recusou a pagar impostos sobre lucros obtidos com rendas excessivas, no momento em que os portugueses eram cilindrados com taxas extraordinárias e todas as grandes empresas pagaram o que a Galp não pagou.

- A partir de 2010, o Código Penal estabelece prisão até cinco anos ou multa até 600 dias para os funcionários ou titulares de cargos políticos que aceitem “vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida”. Mas, à boa maneira do nosso legislador tipo, o artigo que assim dispõe foi convenientemente aparelhado com uma porta generosa, por onde cabem todas as interpretações politicamente adequadas à trupe e que assim reza: “Excluem-se dos números anteriores as condutas socialmente adequadas e conformes aos usos e costumes”. São os decantados “usos e costumes” (que bem conhecemos), contemplados nesta excepção, que Rocha Andrade se aprestou a invocar. Ou não fora ele, para além de cobrador de impostos, escriba atento de prudentes códigos (foi co-autor do código ético para candidatos a deputados, que António Costa mandou elaborar antes das eleições que viria a “ganhar”, perdendo).

- Rocha Andrade, confrontado com as circunstâncias, abriu-nos a consciência em dois momentos eloquentes. Num primeiro acolheu-se à lei. Disse encarar “com naturalidade e dentro da adequação social” a aceitação da prebenda. Num segundo, zen, disse que ia devolver à Galp o que a Galp lhe deu. Obviamente, porque foi forçado a admitir o que começou por negar: o seu erro. Mas não ficaria por aqui a desgraça.

Quando o Ministério da Finanças veio, em socorro do seu naufragado secretário, defender que “não existe qualquer fundamento para falar em conflito ético” porque “as decisões concretas sobre os processos judiciais em causa não competem ao Governo, mas sim aos tribunais”, afogou o náufrago. Porque o argumento nos toma por tontos. Porque o Estado português é representado nos tribunais pela Autoridade Tributária, que é tutelada por Rocha Andrade. Porque a Autoridade Tributária pode fazer n coisas no processo, designadamente acordos extra-judiciais, interpretando como bom, com o beneplácito doutrinal de Nietzsche, qualquer acordo que os vulgares dos mortais não convidados pela Galp viessem a considerar como péssimo.

Quando Augusto Santos Silva disse que a intenção anunciada de ressarcir a Galp por parte dos secretários de Estado encerrava o caso e dissipava as dúvidas, espantou-me que a inteligência superior e a notável cultura política de Santos Silva lhe permitissem cometer tantos erros em tão curta frase. Porque o caso não se encerra por decisão do Governo. Porque não havia dúvidas, havia a certeza de que Rocha Andrade nunca poderia aceitar o que aceitou. Porque a devolução do indevidamente recebido é a aceitação da culpa e torna indiscutível o que já tinha uma estreitíssima margem de defesa. Porque se alguém admite que é preciso fixar em papel um código ético para governantes, a propósito de um incidente em que um secretário de Estado demonstra incapacidade para produzir um juízo ético simples (sublinho simples) o que é que nos está a dizer? Que os governantes não têm princípios éticos simples assimilados e que não devemos confiar neles. E foi isso que Augusto Santos Silva implicitamente disse, quando explicitamente defendeu uma conduta que implicitamente se propõe condenar lá para o fim do Verão. O Governo não encerrou o caso. Enterrou o protagonista. E diminuiu os políticos que se seguem, considerando que carecem de um manual para distinguirem velocidade de toucinho. Politicamente, seria difícil fazer pior.

Posto isto, retomo considerações que já aqui fiz. Antes de ser financeira e económica, a crise que nos assola, há anos, é política. E a natureza da crise política é ética, porque é a ética que molda as consciências dos que mandam. Se por um lado é gratificante verificar que são hoje mais facilmente escrutináveis os comportamentos dos que ocupam cargos públicos, é desolador concluir que muitas consciências políticas não se perturbam com o atropelo de regras e valores comuns e permanecem serenas quando protagonizam casos que insultam o entendimento geral sobre o que é o bem e sobre o que é o mal, desde que se possam refugiar em leis enviesadas que elas próprias conceberam.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

27/07/2016

Máscaras de hipocrisia

no Público
27 de Julho de 2016

por Santana Castilho *

Os professores são uma comunidade objectivamente esmagada por políticas e acordos, uns expressos, outros implícitos, entre PS e PSD. Vítimas de mitos sobre a qualidade da Educação, alvos de mentiras cuidadosamente fabricadas pelo politicamente correcto, a maioria trabalha no duro e não tem voz. Os problemas que encaram há mais de uma década não se resolverão com os mesmos que sempre os apontaram como a causa de todos os males. Assim fez o PS de Sócrates, assim continuou o PSD de Passos, assim, disfarçadamente, retoma o PS de Costa.
Nascem constantemente estudos, baterias selectivas de dados estatísticos e observatórios para os interpretar segundo os interesses dos donos. No início deste mês, disseram-nos que em 2014/2015 reprovaram menos 37.000 alunos que no ano passado. E que em 2013/2014 já tinham reprovado menos que em 2012/2013. Mas, e isto é a estatística, as melhorias, aparentemente favoráveis a Nuno Crato, têm por referência os números de 2012/2013 (o segundo ano do seu ministério), que foram os piores da década anterior. Assim, os valores de hoje (9,7% de retenções), que Crato implicitamente aplaudiu como fruto das suas políticas (longa entrevista ao DN de 17/7/16), são piores que os 7,5% que recebeu, no fim de 2010/2011, quando entrou. Como diria o inefável comentador Marcelo, uma coisa é a melhoria da subida das retenções, outra, bem diferente, é a melhoria da descida das retenções.

Conhecidos os resultados dos exames, que temos? No 9º ano, tomando o ano passado por referência, a taxa de reprovações subiu em Matemática e baixou em Português e as notas desceram em ambas as disciplinas (falando de médias, descida de 48% para 47% em Matemática e de 58% para 57% em Português). A junção dos resultados dos exames (que contam 30% para a classificação final) aos resultados das classificações de cada uma das escolas deu 8% de resultados negativos a Português (10% no ano passado) e 34% a Matemática (32% no ano passado).

No ensino secundário, as médias das notas dos exames desceram ligeiramente em Português e Matemática e subiram em Geologia, Física e Química e Biologia. Quanto a reprovações, em Matemática subiram quatro pontos percentuais (15%) e em Português um (7%). Sobre isto, que disse o ministro? Que existem “correlações positivas bastante acentuadas entre as classificações internas atribuídas pelas escolas e as classificações obtidas pelos alunos nas provas finais de Português e de Matemática, respetivamente, muito semelhantes ao ano transato”. Faltou-lhe, e é grave que tenha faltado, ressalvar que são coisas diferentes: a classificação interna considera domínios que não são vistos nem achados nos resultados das classificações externas.
Este contexto tem sido pano de fundo para um recente teatro de sombras, onde os figurantes usam, sem pudor, máscaras de hipocrisia. A primeira cobriu o rosto de Nuno Crato, na entrevista supracitada, quando rejeitou a manipulação da realidade “eliminando avaliações, ou baixando o nível dos exames e das provas”. Ele que, via ensino vocacional precoce, retirou 28.000 alunos problemáticos do ensino regular, logo dos exames e das estatísticas em análise! A segunda máscara assentou que nem uma luva em Maria de Lurdes Rodrigues, que teve o topete de criticar (Público de 15/7/16) o comportamento do seu sucessor, como se ela não tivesse feito idêntica limpeza das pautas com os CEF (Cursos de Educação e Formação).

O terceiro lugar no pódio da hipocrisia pertence a Hélder de Sousa, o patusco ex-diácono dos exames. Foi grotesco vê-lo defender as provas de aferição, com igual convicção e a mesma coluna mole. Só a hipocrisia levada ao extremo pode chamar individuais a relatórios obtidos em massa, mediante um programa informático que distribui pelos alunos frases previamente construídas em “eduquês” reabilitado. Como se a avaliação das aprendizagens, essa sim, individualizada, não fosse feita pelos professores, dia a dia e não numa só prova. Como se os professores não fossem suficientemente competentes para identificar e comunicar, ao longo do ano, as dificuldades dos alunos. Como se não tivéssemos já uma inflação de relatórios produzidos na escola. Como se esta manobra de propaganda barata, feita a propósito de provas desacreditadas e sem continuidade, pudesse ter alguma utilidade.

E assim chegamos ao progresso hipócrita do actual Governo, construído sobre um programa de combate ao insucesso de duas nebulosas vias únicas: ou passam todos ou a culpa é dos professores. Enquanto as escolas não têm dinheiro para pagar a água e a electricidade que consomem. Enquanto o PS, hipocritamente, votou ao lado do PSD e CDS/PP contra os dois projectos de resolução, recomendando a aposentação sem penalização dos docentes com 40 anos de descontos. Enquanto se determina a inclusão em cada turma de vários alunos com necessidades educativas especiais. Enquanto se impõem 30 alunos por turma em escolas que irão receber alunos de colégios onde os contratos de associação foram cancelados. Enquanto, numa palavra, se promove, hipocritamente, o que se censurou aos outros. 

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

13/07/2016

"Quando Deus é o mercado e a religião é o dinheiro"

no Público
13 de Julho de 2016

por Santana Castilho*

Quando Deus é o mercado e a religião é o dinheiro


Carl Levin Milton, advogado e ex-senador pelo Michigan, foi curto e grosso sobre o Goldman Sachs, quando o identificou como “um ninho financeiro de cobras, repleto de ganância, conflitos de interesses e delitos”. O Libération foi fino quando opinou que Durão Barroso fez um simples manguito à Europa.

Eu parafraseio ambos para acrescentar que tudo converge. Se há talento que Durão Barroso sempre teve foi para aproveitar as oportunidades e fazer manguitos à ética e à moral. Foi assim quando desertou do Governo; foi assim quando cooperou com o crime do Iraque; é assim, agora, quando regressa aonde sempre esteve, isto é, para junto dos que promovem fortunas obscenas e calcam os mais fracos. A sua ignóbil conduta faz-me pensar nos valores que a educação instila nos jovens.

A educação é pautada pela doutrina da sociedade de consumo. Os alunos são orientados para os desejos que a orgia da publicidade fomenta. Paulatinamente, muitos professores foram-se transformando em peões de um sistema sem humanidade. Paulatinamente, aceitaram desincentivar os seus alunos de questionar e discutir causas e razões.

Teoricamente livres, usamos a nossa liberdade para permitirmos que nos condicionem. Tudo é mercadoria, educação inclusa. Preferimos estar sujeitos a mecanismos de controlo social a criar mecanismos de oposição ao sistema e de desenvolvimento de outro tipo de desejos: o desejo de visitar a vida, de cooperar com os outros.
Os sistemas de educação deixam as nossas crianças sem tempo para serem crianças. Porque lhes definimos rotinas e obrigações segundo um modelo de adestramento que ignora funções vitais de crescimento. O ritmo de vida das crianças é brutalmente acelerado segundo o figurino errado de vida que a sociedade utilitarista projecta para elas. Queremos que elas cresçam depressa. A pressa marca tudo e produz ansiedade em todos. Não lhes damos tempo para errar e aprender com os erros, quando o erro e a reflexão sobre ele é essencial para o desenvolvimento dos jovens. É a ditadura duma sociedade eminentemente competitiva e utilitária, mas pobre porque esqueceu a necessidade de formar os seus, também, pelas artes, pela estética e pela música.
Muitos dizem que temos a geração mais preparada de sempre. Mas será que temos? Ou será que temos, tão-só, uma geração com uma relação elevada entre o número dos seus elementos e os graus académicos que obtiveram? E preparada para quê? Para responder ao “mercado” ou para responder às pessoas? É que há uma diferença grande entre qualificar e certificar, preparar e diplomar.

Quantos pais e quantos políticos se preocuparão hoje com o desconhecimento dos jovens acerca de disciplinas essenciais para a compreensão da natureza humana? Refiro-me, entre outras, à filosofia, à literatura, à história, à antropologia, à religião, à arte. Obliterados que estão todos com a economia e as finanças, enviesada que é a sua forma de definir a qualidade de vida das sociedades, sempre medida pelo crescimento do PIB mas nunca pela forma como ele é dividido, dão um contributo fortíssimo para apagar a visão personalista da educação e promover a visão utilitarista e imediatista, que acaba comprometendo a própria democracia. Porque troca o pensamento questionante pela aceitação obediente, de que os mercados carecem. Este minguar do conceito de educação vem transformando a sua natureza pluridimensional numa via única, autoritária, geradora do homem mercantil e do jovem tecnológico, de exigências curtas. E não se conclua daqui que desvalorizo o progresso tecnológico, mas tão-só que rejeito o enfoque único nessa via, para que tendemos mais e mais, como referência dominante da decisão política. Provavelmente porque é bem mais fácil manipular o tecnólogo que o artista, o tecnocrata que o livre-pensador.

A universidade é talvez o mais evidente espelho do que afirmo. Tem a sua natureza cada vez mais corrompida por conceitos de mercado, que vão condicionando o conhecimento gerado pelos seus investigadores. Com efeito, os programas de financiamento da investigação estão marcados pela natureza dos resultados previstos. Hoje procura-se mais a utilidade do conhecimento. Antes partia-se para a procura da verdade, mesmo que essa verdade não tivesse utilização mercantil ou não gerasse lucro imediato. O professor universitário, como intelectual puro, passou de moda. Antes, a missão dos universitários era pensar. Agora é produzir.

A valorização da cultura universal cedeu passo a múltiplos nichos de cultura utilitarista. Houve, por parte dos interesses económicos e empresariais como que uma expropriação do trabalho académico de outros tempos. A utilização da inteligência está canalizada, preferencialmente, para a inovação que interessa às empresas e que elas vão, depois, utilizar, tendo lucros. A universidade, que oferecia conhecimento, vai virando universidade que oferece serviços. A pressão para que os docentes produzam e sejam avaliados por rankings é o reflexo desta nova filosofia, onde Deus é o mercado e a religião é o dinheiro.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

29/06/2016

Um ministro errante

no Público
29 de Junho de 2016
Santana Castilho*

A discussão em torno do financiamento de novas turmas com contratos de associação ocupou a atenção da opinião pública nas últimas semanas. A contestação daí decorrente, desviando-nos de problemas mais importantes, acabou por ser favorável à imagem do Governo e ao errante ministro da Educação. Uso o adjectivo errante com o seu duplo significado: aquele que erra e aquele que vagueia sem rumo certo. Vejamos algumas justificações para o que digo, agora que a fase aguda da zaragata dos colégios acabou e o ano lectivo também.

Comecemos por este tema. Sobre a medida e a sua justiça pronunciei-me publicamente de modo claro e repetido. Mas uma medida destas não se toma no fim do ano, quando os colégios já tinham as inscrições em marcha. Tendo o grau de sensibilidade política que qualquer leigo mais atento conhece, não devia ter sido lançada porque uma secretária de Estado “teve a ideia”, como a própria candidamente narrou em entrevista à Visão. O efeito, facilmente previsível por quem conhecesse tentativas anteriores, tornava obrigatória uma estratégia de comunicação política que apresentasse ao país uma situação que só foi sendo conhecida porque outros colmataram a irresponsabilidade do Governo. O estudo, o único apresentado, feito à pressa e depois de a confusão estar em marcha, é frágil relativamente a algumas zonas, onde a redundância não é evidente. Foi lamentável ver António Costa acenar com compensações imorais e incumpríveis. PSD e CDS, procurando transformar o que é simplesmente justo num drama, acabaram protegendo o verdadeiro drama que foi a gestão amadora deste dossier por parte de Tiago Brandão Rodrigues.

Foi desastrosa a intervenção em matéria de avaliação de alunos. Com o ano lectivo já adiantado, tivemos, sucessivamente, três modelos, com o primeiro-ministro a ser desmentido pelo ministro e vice-versa e os dois a darem o dito por não dito. Com os deputados do PS a votarem contra o próprio programa do Governo. Sem se saber se governava o Governo, o parlamento ou o presidente da República. Impensável. Errado e errante.

As provas de aferição não são novidade no sistema. Já existiram e não provaram. O ministro fez mal ao recuperá-las. E fez pior ao colocá-las em anos que não são de final de ciclo, decisão difícil de compreender. Com a sua atitude insensata, interrompeu uma série estatística, que vinha de 2001 e que permitia, apesar da indesejável precocidade dos exame do 4º ano, comparar resultados e tirar algumas ilações úteis para decisões pedagógicas informadas. Disse o ministro que, assim, os professores poderiam identificar os problemas dos alunos e intervir a tempo. Como se não fosse isso que a avaliação interna permitisse, assim as escolas tivessem recursos e autonomia para actuar. Mas sem coisa alguma em final de ciclo, como vai o ministro verificar, com a lógica que defende, se as intervenções a que se refere resultaram?

A preparação do próximo ano lectivo teve aspectos lamentáveis (regulação da dimensão das turmas com alunos com necessidades educativas especiais e determinação administrativa desumana das situações de carência de assistência médica). É certo que houve reconsideração. Mas a marca da errância e do erro, próprias de quem chegou ao cargo sem uma linha publicada ou uma ideia conhecida sobre Educação, não desapareceu. Outros aspectos, igualmente errados, acabaram consagrados no despacho 4-A/2016. É o caso das tutorias, anunciadas como se não existissem já, quando, em rigor, a situação piora: antes tínhamos uma hora semanal para cada aluno assistido; no próximo ano, a hora para cada aluno passa a 24 minutos. É o caso da alteração do mecanismo de atribuição de créditos horários que, na maioria dos casos, piora a situação existente. É o caso do prolongamento da duração do tempo de aulas, num sistema em que os alunos já tinham os tempos máximos de permanência na escola, por comparação com os parceiros europeus. É o caso desse logro em marcha, mistificação indizível para banir o insucesso escolar, de que pouco se fala (veja-se o meu artigo aqui publicado em 20/4/16).

Enquanto assistimos ao erro e à errância, o que era urgente continua por fazer. O agrupamento permanece como unidade orgânica de gestão, usurpando a identidade de cada escola. O modelo de gestão permanece inalterado, carente de democraticidade. A autonomia resume-se a um discurso que, de tão repetido, sem existência real, virou mantra de falsidade. Os quadros de pessoal continuam sem dimensão adequada às necessidades das escolas. Os programas disciplinares não foram expurgados dos milhares de metas sem sentido. As elevadas cargas curriculares, desajustadas relativamente ao desenvolvimento psicológico das crianças, não foram diminuídas. Permanece um estatuto de carreira docente insustentavelmente burocratizado, sem referencial deontológico, com um modelo de avaliação do desempenho obsoleto, inútil e inaplicável. Não se tocou na missão e na estrutura da Inspecção-Geral da Educação e Ciência.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

15/06/2016

O Estado ao serviço de interesses privados e de uma religião?

no Público,
15 de Junho de 2016

por Santana Castilho*

Com uma Constituição que consagra a escola pública, resulta estranho que no próximo dia 18 esteja agendada uma manifestação para a defender. Todavia, motivações financeiras e ideológicas, que foram crescendo com forte protecção governamental desde 2011, criaram agora, com o apoio natural da Direita e com o envolvimento menos usual da Igreja, uma agitação social e política que a justifica. Com efeito, a reivindicação foi exposta e o discurso assinado: a escola privada teria um direito natural a ser financiada com o dinheiro público, chegando-se a admitir que a escola pública poderia fechar para que a privada sobrevivesse e continuasse. Assunção Cristas, que não pode desconhecer, por formação académica e responsabilidade política, a imposição constitucional de criação de uma “rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população” (artigo 75º da Constituição da República Portuguesa), defendeu o encerramento da escola pública em benefício da escola privada. Fê-lo sob pressupostos, é certo. Mas fê-lo para garantir a tença aos empresários da educação e com desprezo pela Constituição, da qual pode discordar mas à qual deve obediência como deputada da nação. O que está em causa é pois a necessidade de proclamar um “não” cívico claro, como resposta à pergunta que encima este artigo.

Existem bens e serviços que, por se coserem intestinamente com direitos básicos dos seres humanos, não podem sair da tutela do Estado e ser totalmente entregues a organizações que visem o lucro. A saúde e a educação são os casos mais evidentes de bens que devem constituir direito inalienável de qualquer cidadão e, por tal, serem protegidos de tentativas hegemónicas no sentido de os sujeitar às regras do mercado, particularmente quando a lógica do mercado nos é servida sob o piedoso propósito da “livre escolha”. Como qualquer pessoa séria sabe, existem suficientes circunstâncias práticas que distorcem a “livre escolha” da escola ou do hospital e tornam essa escolha tudo menos “livre” para a maioria. Mas finjamos, complacentes com o argumento, que essa liberdade existia. Deviam, então, as escolas públicas “concorrer” com as privadas? Não, definitivamente não. Devem apenas (e é tanto, e é muito e é tudo) assegurar a todos os portugueses, sem os seleccionar em função de resultados escolares anteriores, origem socioeconómica ou escolarização dos pais, o melhor ensino possível. É isso que está em causa e é isso que deve ser defendido. Porque a escola pública é um instrumento fulcral de promoção das democracias: social, política e económica. Porque a escola pública é verdadeiramente inclusiva: não evita territórios pobres, não escolhe alunos ricos, não seleciona em função de crenças religiosas, não discrimina em razão de necessidades especiais. Porque a escola pública não entra no jogo perigoso da concorrência: tem um papel diferente do da escola privada, com a qual convive sem querelas, no respeito constitucional pela liberdade de ensinar e aprender. Porque a escola pública e os cidadãos verdadeiramente livres não aceitam que os papéis se invertam, tornando a escola pública supletiva da privada, reduzida a uma escola para os pobres rejeitados pelo do negócio da educação.

A sociedade que defendo não dispensa uma escola pública que melhore os padrões de vida de todos e à qual sejam alocados recursos financeiros suficientes e autonomia para criar meios e materiais pedagógicos que respondam às necessidades de cada aluno. Esta escola pública e a sua função social não podem ser abandonadas à ganância privada nem à influência religiosa.

Na sociedade que defendo, o legado judaico-cristão que a História deixou à Europa não pode justificar um tratamento de favor à Igreja relativamente aos bens públicos. Porque somos um Estado laico, onde os dinheiros públicos são assunto de César, por mais que o Episcopado português discorde. Porque nessa sociedade o poder temporal não presta tributo ao poder espiritual, que não o da convivência sã e respeitadora.

A zaragata dos colégios privados mostrou, afinal, que, para muitos liberais, sem cabedais de Estado não há mercado. O grupo GPS é disso paradigma maior. Em 11 anos (a festa começou em 2005, com um providencial despacho de um governo PSD/CDS, escassos dias antes de eleições, como mandaria a ética política mínima que não fosse feito), foram-lhe servidos 52 milhões de euros de rendas. Não é, assim, politicamente honesto que a Direita, que em nome do saneamento das contas públicas semeou desemprego e sofrimento na classe média, venha agora defender mais despesa com a continuidade de apoios do Estado a colégios que operam em regiões onde, com praticamente os mesmos custos que já suportam para ensinar apenas alguns, existem escolas com capacidade para receber todos. 

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)