26/07/2022

O estado da Educação e a “Educação do Estado”

no Público

26/7/2022

por Santana Castilho*



A Educação sempre foi uma área de intervenção social, onde os respectivos dinamismos se
exprimem menos vezes com base no conhecimento e mais vezes com base em ideologias,
doutrinas e teorias por validar. Não fora isto suficiente para tornar complexa a actividade
educacional, e ainda devemos considerar o peso das crenças, que perduram e arrastam
prosélitos, mesmo depois dos seus postulados terem sido submetidos a experimentação, com
resultados negativos.
Quando a direcção política da Educação pública é entregue a políticos de frágil conhecimento,
a exposição à contaminação por emoções, crenças e ideologias pode gerar uma “Educação do
Estado”. É o que temos: uma escola mínima, hipócrita, de fancarias pedagógicas, de chavões,
de cedências fáceis, numa palavra, um albergue para o pensamento único oportunista, que
compromete o futuro dos jovens e do país. Este é o preâmbulo que, em meu entender,
caracteriza o estado actual da Educação em Portugal.
A “Educação do Estado” vem, de há seis anos para cá, criando crenças e percepções em muitos
docentes sobre o que funciona bem durante o processo de aprendizagem. Só que essas
crenças e percepções divergem dos ensinamentos sustentados pela experimentação da
psicologia cognitiva. Entre outras, dou um exemplo: o apregoado ensino através da
descoberta, versus o ensino directo, dirigido pelo professor.
Muitos docentes defendem a premissa, confundindo a eficácia da aprendizagem com o
aspecto lúdico da abordagem pela descoberta. Com efeito, a teoria da aprendizagem pela
descoberta assenta na frágil ideia segundo a qual, se um cientista chega a novos
conhecimentos pela experimentação, o mesmo pode ser conseguido por uma criança, em
situação de aprendizagem. Kirschner, que aqui refiro por tantos outros que têm refutado a
teoria ao longo dos tempos, postula que as crianças não podem aprender ciência com os
mesmos métodos com que os cientistas fazem ciência. Já porque não têm os conhecimentos
prévios que lhes devem ser transmitidos pelo ensino directo e dirigido, já porque, obviamente,
o seu desenvolvimento neuronal não lhes permite pensar como cientistas. [Kirschner, P. A.
(2009). Epistemology or Pedagogy, That Is The Question. In S. Tobias & T. M.
Duffy. Constructivist Instruction: Success or Failure? (pp. 144-157). New York: Routledge].
A consequência das diletâncias, de que a anterior é um exemplo, ficou patente nos últimos
resultados divulgados pelo IAVE. A maior parte das crianças do 2º ano do ensino básico não
entende o que lê e não sabe escrever. Mais de metade dos alunos do 9.º ano (57,7%) teve
“negativa” na prova de aferição de Matemática (45% de respostas certas, em média, que
comparam com 55% dos resultados dos exames de 2019). O grupo mais numeroso (8.368
alunos) ficou-se, apenas, por 20% de respostas certas. Cerca de 4.000 alunos obtiveram
resultados entre 0 a 0,5%! A Português, 38% ficaram num nível negativo, com um resultado
médio que, por comparação com 2019, desceu de 60% para 55%.
Mas os pedagogos do regime, arautos da inclusão que exclui, profetas do “aprender a
aprender”, pregadores da filosofia Ubuntu e veneradores do evangelho MAIA, que submergiu

escolas e professores em burocracia ridícula, instrumentos e procedimentos delirantes e
confusões nunca vistas, fizeram convenientemente desaparecer os instrumentos de avaliação
externa (exames nacionais) para poderem decretar,  urbi et orbi, a passagem de todos,
independentemente do número de disciplinas com negativas.
A pedagogia oficial vem enganando, assim, os alunos, na medida em que lhes passa a ideia de
que transitar de ano e ter sucesso escolar não requer trabalho e empenho. Os alunos que em
casa têm outras referências interrogam-se sobre se vale a pena aplicarem-se, quando
verificam que colegas indolentes, que pouco ou nada fazem, conseguem o mesmo
reconhecimento escolar que eles. Há hoje uma desconformidade preocupante entre os
compromissos que a Escola não pede e aqueles que a vida fora dela exige.
Na “Educação do Estado”, a fantasia da inclusão caminha de passo síncrono com a fantasia do
sucesso. Uma e outra centram-se exclusivamente nos professores e esquecem os fenómenos
sociais e económicos que estigmatizam as famílias dos alunos e a não existência nas escolas de
recursos mínimos, humanos e materiais.
Aproximadamente metade dos alunos sinalizados como carentes de “medidas selectivas ou
adicionais” (novilíngua oficial) não tem apoio directo de professor especializado. Para
satisfazer o falso conceito de inclusão vigente, basta que passem mais de 60% do tempo
lectivo numa sala de aula, com os colegas de turma. Pouco importa que nada entendam do
que lá é dito ou feito. Já engordaram as estatísticas e a ordem para que passem de ano atira as
suas taxas de sucesso para cima dos 90%. Falta medir os seus índices de sofrimento e de
impreparação para a vida. Completa o quadro real (que a fantasia do discurso político
obviamente omite) a rarefação de assistentes operacionais (e até de enfermeiros), preparados
para responder às exigências específicas desses alunos, de psicólogos (educacionais e clínicos)
e de terapeutas (ocupacionais e da fala).
Uma nota final sobre a falta de professores. A 6/7/22, na AR, António Costa reconheceu que o
país tem “um problema sério em matéria de professores” e anunciou a aprovação de um
diploma no Conselho de Ministros do dia seguinte com “duas medidas da maior importância”.
Mas essas medidas foram, tão-só, remendos para os grupos disciplinares e áreas geográficas
onde o desastre é maior, intervenções casuísticas sem correspondência às realidades e às
necessidades do sistema, onde os sucessivos governos do PS, incapazes de proceder à revisão
global dos diplomas que regulam os concursos e os quadros, apenas vão acrescentando
injustiças e atropelos à ignomínia que criaram. Acresce que, no quadro de um concurso de
âmbito nacional, as vantagens oferecidas a uns e cerceadas a outros talvez não estejam em
conformidade com os ditames constitucionais. Mas, reconheça-se, que importância pode ter
isso para António Costa, que já teve o topete de dizer que, neste reino, cumpre-se o que ele
decide, diga a Constituição o que disser?
A solução séria, a única solução, não pode ser outra que não o alargamento dos quadros das
escolas, a reestruturação da carreira docente, a desburocratização do trabalho, o
reconhecimento da independência intelectual, científica, pedagógica e metodológica dos
professores, a sua valorização salarial, a formulação de uma avaliação de desempenho justa e
a radical intervenção nos concursos de recrutamento e mobilidade.

*Professor do ensino superior

20/07/2022

Palavra de ministro


no Público

20/7/2022

por Santana Castilho*

 

À eventual atenção dos senhores deputados, que hoje debatem o estado da nação.

João Costa não é ministro que disserte publicamente com um mínimo de rigor sobre os problemas do seu ministério. Quando fala, por ignorância ou com dolo, o que ele diz sai em modo taralhouco e cheio de inverdades. Quando actua, remenda, manipula, ou adia.

- Disse que a actual directora da Pordata (sua, até há pouco, subordinada na Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência), produziu estimativas grosseiras com base em critérios pouco rigorosos, relativamente à falta de professores. Não disse que a metodologia em causa foi bem mais rigorosa do que as manipulações e extrapolações estatísticas de que ele se serve para nos anunciar sucessos a pataco.

- Disse que o sistema educativo português, ao contrário do que se passa noutros países, ainda não enfrenta uma carência generalizada de profissionais. E justificou alegando que foram preenchidos, no ano que terminou, cerca de 27 mil horários em substituições, o que mostrou haver 27 mil profissionais disponíveis em diferentes momentos. Falso! 27 mil foi o número de contratações feitas durante todo o ano lectivo. Mas, destas, 18 mil referiram-se a horários anuais e não de substituição.

- Disse que o Governo aprovou um decreto-lei com medidas excepcionais e temporárias para o recrutamento de professores. Não disse que essas medidas não estão previstas no ordenamento jurídico que regulamenta os concursos de professores, o que poderá criar mais problemas do que os que pretende resolver. Nem disse que não são novas medidas, porque são as mesmas que já pôs, ilegalmente, em prática no fim do ano lectivo que agora terminou.

- Disse que no próximo ano lectivo regressarão às escolas cerca de 500 professores cedidos pelo ME a outras instituições. Não disse que consequências daí podem resultar para essas instituições.

- Disse que não é racional dizer aos professores que têm de trabalhar em sítios diferentes a cada três ou quatro anos. Mas não disse que é a isso que ele próprio os vem obrigando, por acção ou por omissão, há mais de seis anos.

- Disse que vai mudar o ordenamento jurídico dos concursos para que os professores não tenham de concorrer de quatro em quatro anos. Falso! Os professores dos quadros (excepto os dos quadro de zona sem carga lectiva) só concorrem se quiserem. E estes e todos os contratados têm de concorrer anualmente, que não de quatro em quatro anos.

- Disse que os professores em mobilidade por doença passaram de 128 para 8.818 em dez anos. Foi imediatamente desmentido pela Fenprof, que lhe recordou que não eram 128 mas sim, pelo menos, 1.678. E não disse que, na altura, havia outros mecanismos de mobilidade, que permitiam a aproximação à residência ou aos locais de tratamento.

- Disse que a concentração de situações de mobilidade por doença se verifica em três zonas pedagógicas do Norte do país, onde estão mais de 83% dos professores deste regime. Mas não disse que, segundo a insuspeita Alexandra Leitão, já em 2018 havia três vezes mais professores em mobilidade por doença a norte do que em Lisboa, porque os professores do norte estavam a ser forçados a dar aulas no sul, circunstância que só se agravou daí para cá.

- Disse que cerca de 10% dos professores em mobilidade por doença acabou por fazer deslocações entre escolas do mesmo concelho, por vezes na mesma rua. Mas não disse que são as suas próprias regras que a isso obrigam. Com efeito, os professores cuja doença passe a impedir a actividade letiva, de acordo com a lei, só mudando de escola, ainda que seja para outra da mesma rua, poderão ser dispensados dessa atividade.

- Disse, ou pelo menos insinuou, que se teriam registado 23.600 baixas médicas de docentes. A Fenprof corrigiu-o, contrapondo um número quase três vezes menor: 8.000.

- Não disse, mas insinuou que há abusos. Mas não disse que sempre teve á disposição a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º 35/2014), que os poderia corrigir, se existem, sem lançar lama sobre todos.

- E disse, sim, não me cansarei de o recordar, que a formação dos professores tem de ser reconfigurada porque foram formados para serem só professores de bons alunos, coisa tão insólita como se formássemos médicos para verem só pessoas saudáveis.

*Professor do ensino superior

 

06/07/2022

As estranhas liturgias no bananal


no Público

6/7/2022

por Santana Castilho*

 

Vivemos uma crise (a do custo de vida e correlata agitação civil), que sucede a duas outras crises (pandemia e guerra na Ucrânia). Para muitos países, mais pobreza e mais agitação social estão garantidas (o massacre de Melilla é exemplo próximo). O aumento da polarização política, as perdas económicas generalizadas e a corrida ao rearmamento são perturbadores e vão aumentar muitos dos abismos sociais existentes, tornando mais instáveis as democracias que conhecemos.

Mas, entre nós, o alarme dos últimos dias não foi devido a estes problemas, sequer ao aumento da pobreza, da dívida pública, da inflacção e dos preços dos combustíveis. Outrossim, teve origem em estranhas liturgias no bananal em que o Governo se transformou, isto é, nos atropelos de Pedro a Costa e de Costa a Pedro. Com efeito, ao Aeroporto de Lisboa não bastava o recente rótulo de um dos piores do mundo, as longas horas de espera que são impostas aos utentes e a catadupa de cancelamentos diários de voos. Faltava-lhe ser pano de fundo de um dos episódios mais grotescos da política portuguesa, com António Costa a humilhar o seu ministro das Infraestruturas e da Habitação e a deixar bem à vista a irresponsabilidade e o amadorismo com que o Governo tratou um assunto de tão grande interesse nacional.

A coberto desta trapalhada, o desagregar dos sistemas de Saúde e Educação passou para segundo plano. Na saúde, onde segundo a OCDE (Health at a Glance 2021), somos o terceiro país da Europa a despender mais recursos financeiros privados (39% da despesa total), os serviços de urgência encerram em cascata, cresce o número dos portugueses sem médico de família e a directora-geral recomenda que não se adoeça em Agosto.

Na Educação, desde que António Costa é primeiro-ministro, aboliram-se os mecanismos fiáveis de avaliação de resultados e a produção de dados comparáveis. A reprovação, que antes era um estigma de aluno, é hoje um estigma de professor. A escola imprepara as crianças e arruína os professores, enquanto crescem as medidas sem lógica nem critério, a saber e a título de exemplo:

- Professores com doenças graves foram tratados como lixo. Na prática, o que se fez foi transformar a satisfação de uma necessidade de saúde num concurso, por via de regras absurdas. Com o novo regime de mobilidade por doença, as baixas médicas de longa duração aumentarão. Com elas, aumentará a necessidade de substituições temporárias, cada vez mais difíceis de conseguir, e, consequentemente, o número de alunos sem aulas.

- O Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior deu orientações às respectivas instituições para aumentarem o número de vagas de acesso aos cursos de Educação. Só que o problema reside na procura e não na oferta, já que o número de alunos em cursos para a docência caiu 70% nas duas últimas décadas, ficando, ano após ano, por preencher as vagas postas a concurso. O problema é o acumular de erros, desde Maria de Lurdes Rodrigues, tornando a carreira docente cada vez menos atractiva, num vórtice de desgoverno, que culminou há pouco com a soez referência de João Costa aos professores: “…foram formados para serem professores de bons alunos. Era como formar médicos para verem só pessoas saudáveis”.

- Conclusões recentes do Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) disseram-nos que a maior parte das crianças do 2º ano do ensino básico não entende o que lê e não sabe escrever.

Os dados relativos às reprovações e abandono escolar de 2020/21, divulgados pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, embora mostrem uma ligeira subida desses indicadores no ensino básico, face a 2019/20, exprimem, globalmente, sucesso. Todavia, quando cruzados com a análise que o IAVE fez sobre o que os alunos demonstraram realmente ter aprendido, a perplexidade ressalta: os indicadores das provas de aferição não são coerentes com os dados das reprovações e abandono. Donde, a pergunta legítima: o que mede o sucesso? O que os alunos realmente aprendem, ou, a estatística (construída) sobre os chumbos?

Ora a resposta é simples: aquilo que é apresentado aos portugueses não são os factos ocorridos. É, antes, a perspectiva, naturalmente interessada e ficcionada, que o Governo tem sobre esses factos. A esta forma de os tratar, frequentemente triunfalista, chama-se propaganda.

*Professor do ensino superior