23/06/2021

A republiqueta

A republiqueta

Santana Castilho*

A atmosfera política portuguesa está mergulhada numa cultura de incongruências, oportunismos, servilismos e mentiras, para proteger responsáveis de tribos sem ética. A verdade, a liberdade e a justiça vão perdendo significado. Se seguirmos a sucessão dos episódios dos últimos dias, compreendemos o descrédito do Governo e a pequenez das tômbolas partidárias. Os cidadãos portugueses que ainda não desistiram de votar deveriam inquietar-se com os acontecimentos políticos mais recentes.

- A República está a virar republiqueta. Em Março de 2020, António Costa era contra o estado de emergência, mas Marcelo decretou-o. Agora, com os papéis invertidos, após uma troca de picardias entre ambos, que a decência dispensava, depois da festança do Sporting e do regabofe da Liga dos Campeões, o desorientado António Costa, sem anuência presidencial nem escrutínio da AR, confinou três milhões de portugueses. Será que a variante da terra dele só ataca de sexta à tarde a segunda de madrugada? A Constituição (artigos 19º e 44º) é papel molhado? Que moral lhe sobra depois de tudo isto?

- É impossível eximir Fernando Medina da responsabilidade política por um acto de enorme gravidade, responsabilidade que aumentou quando entrou num vórtice manipulatório dos factos, para reduzir uma delação hedionda a rotina burocrática. A CML atentou contra direitos humanos protegidos por tratados internacionais, contra a Constituição e contra a nossa dignidade. O responsável máximo pela CML é Fernando Medina. Não chega terminar uma auditoria nada independente com o despedimento de um cabeça-de-turco. Não chega pedir desculpa ou exonerar o porteiro, como se os dados tivessem descido a escadaria central dos Paços do Concelho sem ele os ver. Perante a dimensão do desastre, o Ministério de Administração Interna, o Ministério dos Negócios Estrangeiros e a Comissão Nacional de Protecção de Dados, alertados em Março, devem também explicar porque não actuaram, sob o risco de vermos todo o Governo como um antro de incúria e indiferença.

- O anterior vai de passo síncrono com uma lei aprovada pelo Parlamento e promulgada pelo Presidente da República, que instituiu o controlo da liberdade de expressão e a censura a posteriori, num remake inqualificável da ditadura salazarista.

- A elite pífia da Iniciativa Liberal usou a liberdade de manifestação dos partidos políticos para fazer aquilo que foi interditado aos lisboetas.  Mas o sórdido expediente teve um mérito: quando políticos recorrem a metáforas de ódio e se entregam à alarvidade de furar com setas as imagens dos seus adversários políticos, os eleitores podem extrapolar o que deles se espera se chegarem ao poder.

- Dois pavões sociopatas, gestores de recursos humanos da TAP, que sobrevive sugando o erário público, pavonearam-se em modo bacoco nas redes sociais, por estarem a recrutar em Madrid, depois de terem despedido em Lisboa. Reduzi-los a espanadores resolveria o problema, não fora a desumanização que personificaram ser transversal a tantas instituições que o Estado protege.

- Perguntava-me eu por que razão toda a selecção continua em funções, apesar de um dos seus ter sido sinalizado como infectado, quando na escola, logo que uma criança testa positivo, toda a turma, mesmo testando negativo, fica em quarentena. Marcelo esclareceu: a Educação não é uma actividade essencial, o futebol é uma actividade fundamental.

- No passado dia 11, PS, PSD, CDS e IL uniram-se na AR para impedir a integração nos quadros de todos os professores com 5 ou mais anos de serviço até 2022. Estes partidos não só se opuseram a um acto de elementar justiça como atentaram contra a resolução da recorrente falta de professores em muitas escolas do país. Uns trocos agora importaram mais do que a educação das gerações vindouras. Se verificarmos o dinheiro efectivamente gasto, que não o inicialmente orçamentado, no sector da Educação, em percentagem do PIB, constata-se que o seu peso diminuiu sempre, desde 2014.

A enorme suscetibilidade da sociedade a todo o tipo de manipulações, que o medo da covid-19 ofereceu a políticos sem sensibilidade e bom senso, torna talvez inútil referir tudo isto. Mas, como na parábola do colibri, pelo menos cumpro a minha parte. Porque não podemos continuar numa vida que não é vida, arruinando a saúde mental e psíquica para combater uma doença do corpo.

*Professor do ensino superior

 

09/06/2021

Serviço sujo em nome da pandemia

no Público
9/7/2021

por Santana Castilho*

 

Já se sabe que tudo o que vem de grupos de trabalho constituídos por independentes (nomeados pelo Governo e compostos por prosélitos seus) é bom e tem selo prévio de qualidade oficial. Numa escola da Amadora, António Costa e Tiago Brandão Rodrigues certificaram essa qualidade, protagonizando um lance de propaganda, com a designação cínica de Plano 21/23 Escola +. O ministro da Educação, lendo um discurso mal feito mas manipulador, anunciou uma dotação de 901,3 milhões de euros para o plano (140 milhões para recursos humanos, 43,5 para formação, 47,3 para digitalização e 670,5 para equipamentos e infraestruturas). António Costa fechou a festa evocando “o triângulo de sucesso nas escolas”: descentralização, autonomia e flexibilidade.

O que se retira de toda esta narrativa enganadora é a inexistência de medidas para combater os problemas de sempre, agravados agora. Nenhuma referência para a redução do número de alunos por turma, a medida que mais sentido faria para responder às dificuldades e particularidades de cada aluno e melhorar as suas aprendizagens. Nenhuma intenção eficaz para prevenir a prevalência da indisciplina, fenómeno que mais impede o trabalho em sala de aula. Nem um ténue reconhecimento sobre a falência de uma inclusão que excluiu ainda mais os que careciam de apoio específico e prejudicou enormemente o trabalho dos restantes e dos professores. Nenhuma alusão ao indispensável reforço das equipas de intervenção precoce, depois de termos tido cerca de 90 mil crianças com necessidades educativas especiais abandonadas durante os períodos de suspensão do ensino presencial. Nenhum sinal de reconhecimento de que a autonomia profissional de cada professor é fulcral para promover a diferenciação pedagógica que a situação actual requer. Nada quanto ao tão reclamado alívio do trabalho burocrático que recai sobre os docentes, para que se pudessem concentrar nas tarefas exclusivas de ensino. Silêncio quanto à necessidade imperiosa de, no primeiro ciclo do ensino básico, não constituirmos turmas onde coexistam anos diferentes de escolaridade.  Em contrapartida, mais formação inútil e causticante para os professores, entregue aos bonzos do regime, mais tutorias em grupos (cuja dimensão mata o conceito), mais tretas pedagógicas (clubes de ciência, recuperações com artes e humanidades e oficinas de escrita). Em resumo, assistimos a um enunciado de intenções, para dar fôlego às medidas que o Governo vem desenvolvendo desde 2015, relativamente às quais a maioria dos professores percebeu, de há muito, que dão resultados contrários aos pretendidos.

Atirados ao ar, os números sugestionam os incautos. Ponderados com os contextos a que respeitam, podem esvaziar-se facilmente. Como irão ser relacionados com as verbas consignadas à Educação, em cada um dos dois OE a aprovar, os 901,3 milhões agora referidos para dois anos? Vão somar-se às dotações previsíveis ou irão, outrossim e ao invés, aliviar o esforço do Estado com a Educação, em sede de orçamentos? Os 670,5 milhões destinados a equipamentos e infraestruturas somam-se ao que já foi anunciado para a transição digital ou foram, agora, simplesmente desagregados dessa verba? Porque não relativizaram, António Costa e Tiago, os 3300 docentes, que disseram que serão contratados, com o número dos que sairão para a reforma, mais de 2000 só neste ano? Que leitura política pode ser feita quando comparamos o que se consigna à Educação com os milhares de milhões que vão ser transferidos para outras áreas da economia, ou quando verificamos que para o que é critico para o funcionamento do sistema (as pessoas) apenas se reserva 15,5% do total?

Como ousam pedir mais empenho e esforço a professores que, com trinta anos de serviço e elevadas classificações de desempenho, permanecem absurdamente retidos no 4º escalão da carreira? Como ousam pedir mais empenho e esforço a professores submetidos à arbitrariedade que preside à atribuição das menções de mérito, com todo o cortejo de opacidade que as serve?

Substituir o apuramento sério das carências dos alunos e a intervenção educativa para as superar por compra de mais computadores e meios digitais, porque é esse o investimento dominante do plano, é fazer serviço sujo em nome da pandemia.

*Professor do ensino superior