25/04/2012

Os farsolas do regime

no jornal Público, hoje, a crónica de
Santana Castilho


1. Comemora-se hoje o 25 de Abril. Foi há 38 anos. “O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Já não se crê na honestidade dos homens públicos. O povo está na miséria. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. O tédio invadiu as almas. A ruína económica cresce. O comércio definha. A indústria enfraquece. O salário diminui. O Estado tem que ser considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo”. Estas frases corridas pertencem a Eça de Queirós e foram citadas por Paulo Neves da Silva, em livro editado pela Casa das Letras. A quem revê nelas o país em que hoje vive, pergunto: e não fazemos nada?
2. A evolução dos indicadores é oficial: desemprego em dramático crescimento, PIB em queda alarmante e execução orçamental do primeiro trimestre do ano muito longe do equilíbrio prometido. Dizem os farsolas do regime que não há tempo para resultarem as políticas de extermínio dos funcionários públicos, classe média e reformados. Asseveram que é preciso esperar. Aceita-se, naturalmente, que a falta de recursos traga os custos para a primeira linha das análises e que a eficiência preocupe a governação. Mas no binómio “recursos mobilizados- resultados obtidos”, gastar menos, obtendo piores resultados, mesmo que melhore a eficiência, é inaceitável. Cortar despesas de modo cego, mantendo intocáveis os grandes sugadores do país, é inaceitável. Em Washington, Vítor Gaspar teve o topete de declarar que as medidas de austeridade não afectaram os mais vulneráveis. E a propósito dos subsídios confiscados, o decoro mínimo não impediu Paula Teixeira da Cruz de desmentir o primeiro-ministro, que já tinha desmentido Vítor Gaspar. Como se a confiança no Estado aguentasse todas as diatribes. “Não podemos viver acima das nossas possibilidades” é uma frase batida dos farsolas do regime. A dívida pública e a dívida privada têm que ser pagas, recordam-nos. Aos funcionários públicos espoliados e aos que nunca viveram acima das suas possibilidades, pergunto: e não fazemos nada?
3. Na quarta-feira passada ouvi Nuno Crato na TVI 24. Afirmou que não há razões pedagógicas para dizer que 30 alunos por turma seja mau. Perante o esboço de contraditório do entrevistador, perguntou-lhe quantos alunos tinham as turmas no tempo dele. Esta conversa não é de ministro. É de farsola, que não distingue pedagogia de demagogia. No meu Alentejo e no meu tempo, não raro se encontravam à porta de uma ou outra casa, em dias de sol, dejectos humanos a secar. Eram de um doente com icterícia, que os tomaria posteriormente, secos, diluídos e devidamente coados. Pela ministerial lógica justificativa, bem pode Sua Excelência anotar a receita para os futuros netos. Garanto-lhe, glosando Américo Tomás, pensador do mesmo jeito, que os que não morriam salvavam-se! A dimensão das turmas tem óbvia implicação no aproveitamento e na disciplina. William Gerald Golding, Nobel da literatura em 1983, foi, durante 3 décadas, professor. Interrogado uma vez por um jornalista sobre o método que usava para ensinar, respondeu que com 10 alunos na sala de aula qualquer método servia, mas com 30 nenhum resultava. A resposta de Golding retorna à minha mente cada vez que surge um econometrista moderno a tentar convencer-me de que o tamanho das turmas não tem a ver com o sucesso das aprendizagens. Não nos iludamos com a profusão de estudos sobre a relevância das variáveis que condicionam as aprendizagens e, particularmente, com as correlações especulativas estabelecidas entre elas. Imaginemos que os resultados obtidos num sistema de ensino onde as turmas têm, em média, 35 alunos, são melhores que os obtidos por turmas de 20, de outro sistema. Alguma vez permite essa constatação concluir que o tamanho da turma não importa? Que aconteceria aos resultados do primeiro sistema se as turmas passassem de 35 para 20 alunos, no pressuposto de que tudo o mais não se alterava?
Poderíamos e deveríamos discutir se temos recursos financeiros para manter a actual dimensão máxima das turmas. E poderíamos concluir que não. Poderíamos e deveríamos discutir o peso e a hierarquia, em termos de resultados, das diferentes variáveis que condicionam as aprendizagens. E poderíamos concluir que, antes da dimensão das turmas, outras se impõem pelo seu impacto e relevância. Mas não afrontemos com pseudo razões pedagógicas a experiência comprovada da sala de aula, que torna evidente que a probabilidade de sucesso aumenta se cada professor tiver menos alunos com quem repartir esforços e atenção. Aos professores adormecidos pergunto: e não fazemos nada?
* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

-------------------------------------------------

comentários daqui


Carlos Beja Ribeiro Apreveito o 38º aniversário da revolução para mandar um grande abraço ao sempre brilhante e lúcido Prof. Santana Castilho.
As suas denúncias aos "farsolas do regime", ajudam-nos a entender melhor esta "confusão" em que estamos mergulhados. Parece que voltámos ao obscurantismo, á lei da rolha, ao clientelismo despudorado.
E não vamos fazer nada?
Um enorme abraço, Professor.
Fatima Mesquita Parabéns professor por mais esta brilhante reflexão, se me permite, julgo no entanto, que "OS PROFESSORES NÃO ANDAM ADORMECIDOS", podem andar SIM , ATORDOADOS, com os cataclismos que tem havido nos ultimos tempos no nosso País, nomeadamente os POLÍTICOS...
Evaristo Frois Parabéns Professor Santana Castilho, mais uma exelente reflexão e como uma vez ouvi dizer (não vou dizer a quem), Portugal está cheio de "pedabobos".
Jorge Pimentel Cada um não pode abraçar o mundo ... mas pode abraçar "um metro e pico" dele. Depois do meu "metro e pico", afinal... só falta o resto.
Manuela Justino Pois é, e não fazemos nada???? o pior é que nos acomodamos, acobardamos, vamos aceitando......até quando? só com a queda deste governo as coisas mudam e nós não fazemos nada?
João Vitor Eu no meu mural pedi a todos que lessem este artigo que considero o melhor de TODOS os já escritos. Mais uma vez pergunto:para quando um livro?

Maria Amélia Rodrigues Cabaça concordo muito consigo professor, obrigada por me aceitar para sua amiga.
 
José Pires de Lima Concordo com muitas das opiniões que tem partilhado acerca do sistema de ensino Português. Já tive o prazer de o ouvir em algumas conferências e admiro a lucidez e frontalidade com que aborda os temas estruturantes e/ou fraturantes do nosso ensino. Obrigado por me aceitar como mais um amigo "virtual"!

11/04/2012

Visto vagarosamente, o lapso do ministro é uma mentira

no Público de 11 de Abril, 2012

Santana Castilho *

Por ironia do destino, a 1 de Abril de 2011, o dia das mentiras, Passos Coelho classificou de “total disparate” a ideia que lhe atribuíam de cortar o subsídio de Natal. Cortou-o, pouco tempo volvido. A 13 de Outubro deste ano, reincidiu e aumentou o esbulho. Consciente da brutalidade da medida, foi pressuroso a afirmar que ela vigoraria “apenas durante a vigência do programa de ajuda económica e financeira”. Nem ele nem Vítor Gaspar, nem tão-pouco o diligente “spin doctor” Miguel Relvas, desmentiram a cascata de referências abundantes, escritas e faladas, que circunscreveram, sempre, os cortes dos subsídios de férias e Natal a 2012 e 2013. Mais: a secretária de Estado do Tesouro, o ministro-adjunto e dos Assuntos Parlamentares e o próprio ministro das Finanças afirmaram na televisão, de forma reiterada portanto, que os cortes eram temporários e vigoravam apenas em 2012 e 2013. O descrito é factual. Prolongar agora o confisco por mais tempo não pode ser justificado, ainda que vagarosamente e com a insolência com que Vítor Gaspar tratou a Assembleia da República, com a invocação de um lapso. O vocábulo “lapso” tem uma semântica que não é dúbia: significa erro que se comete por inadvertência ou descuido. Um “lapsus linguae”, em registo psicanalítico, é explicado por uma exposição acidental de pensamentos reprimidos, a qual introduz no discurso um sentido dissonante daquele que o emissor queria transmitir. Um “lapsus memoriae” traduz uma falta de lembrança momentânea, recuperável mais tarde. Nada disto se adapta à mudança de discurso do Governo. Este “lapso” é, outrossim, a última mentira duma sucessão que valida a máxima atribuída a Frederico II, o Grande, rei da Prússia: “ A trapaça, a má-fé e a duplicidade são, infelizmente, o carácter predominante da maioria dos homens que governam as nações”. 

As afirmações e a pergunta que transcrevo, retiradas aleatoriamente de um registo extenso a que qualquer cidadão tem acesso, foram feitas por Passos Coelho antes de ser primeiro-ministro:
- “Ninguém nos verá impor sacrifícios aos que mais precisam”.
- “Se vier a ser necessário algum ajustamento fiscal, será canalizado para o consumo e não para o rendimento das pessoas”.
- “Se formos Governo, posso garantir que não será necessário despedir pessoas nem cortar salários para sanear o sistema português”.
- “A ideia que se foi gerando de que o PSD vai aumentar o IVA não tem fundamento”.
- “Como é possível manter um Governo em que um primeiro-ministro mente”?

O anterior sustenta que Passos Coelho mentiu. O triste episódio do prolongamento dos cortes patenteia que continua a mentir. Aqueles que acompanham com mais cuidado a série longa de sinais, por isso significativa, dada por este Governo, sabem que a doutrina seguida até agora foi esmagar o valor do trabalho sem tocar na imoralidade dos lucros agiotas das parcerias público-privadas e das empresas que operam em regime de monopólio. Para impor essa doutrina, Passos e Gaspar têm agido como religiosos sectários, que impõem aos outros a sua crença. A essa atitude é costume chamar-se fanatismo. Começa a ser tarde para os portugueses admitirem o que é evidente: o Governo está a falhar na resolução da crise, aproveitando-a, entretanto, para impor um programa político com que nunca teria sido eleito. A degradação da economia e das finanças é clara: o défice só baixou em 2011 pelo recurso artificioso ao fundo de pensões dos bancários; do que se conseguiu em ajustamento do orçamento de Estado, 75 por cento deveu-se ao aumento dos impostos e só 25 por cento à redução das despesas, sendo certo que se atingiu o extremo direito da curva de Laffer (impossibilidade de arrecadar mais receitas aumentando a carga fiscal); o desemprego saltou para os 15 por cento; a dívida pública subiu e aproxima-se dos 115 por cento do PIB, que desce 3,3 pontos percentuais; desapareceu o investimento público e o privado tem a especulação financeira por paradigma (o banco do Estado financia especulações bolsistas de um grupo milionário, enquanto empresas viáveis recusam encomendas do estrangeiro por não terem dinheiro para comprar matérias primas). 

Enquanto o “ Frankfurter Allgemeine Sonntagszeitung” diz que Portugal cairá, citando Sean Egan ("quando a economia de um país se retrai de forma tão significativa e, simultaneamente, os juros das obrigações a 10 anos se situam próximo dos 10 por cento, é óbvio que a situação é insustentável"), Vítor Gaspar (“o ano de 2015 é o ano imediatamente consecutivo a 2014”) entretém-se a competir com Américo Tomás (“hoje visitei todos os pavilhões, se não contar com os que não visitei”). Para que a Grécia não nos caia em cima, o caminho não é este.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)