24/11/2021

Dar murro em ponta de faca

 

no Público,
24 de Novembro de 2021
 
por Santana Castilho

 

António Costa, em entrevista de 8 de Novembro à RTP, usou uma metáfora sobre a função da maçaneta e da fechadura, recorrendo ao seu conhecido comportamento político ardiloso: referiu não querer abrir feridas, mas esfaqueou repetidas vezes o PCP e o BE; quando rodou a maçaneta para deixar entrar o PSD e foi confrontado com a rejeição anterior, logo esclareceu que esse preconceito exorcista só se aplicou ao governo que vai cair; e, finalmente, permitiu concluir que se o PS não tiver maioria absoluta, um novo bloco central será possível. 

O homem que vê maçanetas onde outros só divisam fechaduras, enclausurou a Educação atrás das grades do retrocesso. A metáfora que melhor define o que fez nesta área é esta: dar murro em ponta de faca. 

As políticas educacionais destes dois governos do PS, personificadas por um ministro escandalosamente incompetente, são um poço de incongruências impostas por caudais normativos nunca vistos, paradoxalmente produzidos em nome da autonomia e da flexibilidade, perante, de um lado, escolas e professores reverenciais a quem manda e, do outro, escolas e professores exasperados, mas incapazes de dizer um não audível e consequente. É aqui que estamos, com a sociedade, distraída e passiva, a descobrir agora o que há muito se sabia e muitos foram denunciando: não há professores suficientes e o pior está para vir. Porque os salários indignos, já de si baixos (em início de carreira pouco acima do ordenado mínimo), perderam quase 30% do poder de compra nos últimos 12 anos. Porque temos professores com horários precários que pagam, literalmente, para trabalhar, suportando despesas (deslocações e rendas de segunda casa, longe da família) na esperança de reunirem condições para entrar nos quadros. Porque, de acordo com o Registo de Alunos Inscritos e Diplomados do Ensino Superior (Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência), o número de jovens que se candidatam a cursos de formação de professores sofreu uma quebra de mais de 70% nos últimos 15 anos. Porque, em resumo e em consequência do anterior, segundo um estudo promovido pelo próprio ME, o ensino público português tem um grave problema: recrutar, nos próximos dez anos, 34.508 novos docentes. 

O caos começou a ser desenhado pela proletarização dos professores, que Maria de Lurdes Rodrigues promoveu, em nome de uma eficácia ignorante, Nuno Crato continuou e António Costa e o seu mandarim Tiago apuraram, juntando-lhe precariedade e desprezo. 

Quando a OCDE referiu que a “Escola a Tempo Inteiro” é assistência social e não é educação, mais não fez que reiterar o que eu e outros fomos dizendo ao longo dos tempos. Quando a OCDE reconhecer que as políticas seguidas sob a epígrafe da “Educação para o Século XXI” não passaram de actos propagandísticos vazios de resultados, já estarão amarelecidos os papéis onde tantos denunciaram atempadamente o logro. 

A estratégia que agora se propõe é o retorno aos anos oitenta, ou seja, permitir que qualquer diplomado, sem a mínima preparação profissional específica, possa ser professor. Quando os eventuais candidatos virem o salário e as condições de trabalho, a exigência ainda descerá mais, como já hoje se verifica nalgumas zonas do país e nas disciplinas mais problemáticas (Geografia, Filosofia, Inglês, Português, Francês, Física e Química e Informática). Por mais que puxasse pela cabeça, este ministro só podia decidir assim: abaixo de zero. 

Se querem começar a resolver a falta de professores, comecem por lhes devolver o prestígio perdido (só 9,1% dos professores em serviço consideram que a sociedade os valoriza). Protejam-nos, com medidas eficazes, da violência a que estão sujeitos. Poupem-nos à burocracia inútil, que os escraviza. Mudem as regras de acesso aos quadros e de progressão na carreira. Paguem salários justos. Incentivem o exercício da docência no interior do país. 

Se não reagirmos com vigor, opondo sensatez ao delírio, em breve, tudo o que durante décadas se construiu, com o esforço de todos, vencendo tantas turbulências de percurso, irá ruir. Porque a cura anunciada (qualquer a dar aulas) é mais perniciosa que a doença (falta de professores qualificados). 

A pergunta que vai pedir a resposta dos portugueses, particularmente dos professores, é esta: quem trouxe a Educação a este estado, pode continuar a governar? 

 

*Professor do ensino superior

10/11/2021

A saúde mental das crianças e dos jovens

no Público

10/11/2021

por Santana Castilho

 

Boa parte da sociedade parece ter hoje dificuldade em manter contacto com a realidade. O medo, quanta vezes irracional, foi transformado em virtude e a obediência a regras tornou-se, socialmente, mais importante que o questionamento racional sobre a legitimidade e a validade científica dessas regras. Poderemos falar de uma certa psicose de massas, provocada pelo fomento do medo que a pandemia da covid-19 originou? Pelo menos, muitos especialistas em saúde mental assim o sugerem. 

Um relatório da Unicef sobre impacto da covid-19 na saúde mental de crianças e jovens, citado por Sara Johnson (The Guardian, 5.10.21) revela que um em cada cinco jovens de 15 a 24 anos, em todo o mundo, sofre de depressão, com receios extremos sobre o futuro e a família. 

Segundo o Royal College of Psychiatrists (https://www.rcpsych.ac.uk/), no Reino Unido, 16% das crianças com idades entre 5 e 16 anos foram diagnosticadas com transtorno mental em 2020. Por outro lado, aumentaram 29%, entre Abril de 2019 e Abril de 2021, os primeiros diagnósticos de psicose, assumindo-se que a pandemia tem graves reflexos na saúde mental da população (Helen Pidd,The Guardian, 20.10.21). 

Mark McDonald, psiquiatra especialista em crianças e adolescentes, afirmou que os americanos estão afectados por “uma psicose delirante”, provocada pelo medo induzido pela pandemia da covid-19. Isto apesar de as mortes verificadas representarem 0,002% na faixa etária dos 10 anos e 0,01% na de 25 anos (S.G. Cheah, Evie Magazine, 22.12.20). 

Nicola Davis (The Guardian, 8.10.21), citando estudos de vários cientistas, escreve que os episódios de ansiedade e depressão em todo o mundo aumentaram dramaticamente em 2020, com uma estimativa de acréscimo de 76 milhões de casos de ansiedade e 53 milhões de casos de transtorno depressivo, sendo que as mulheres e os jovens têm maior probabilidade de ser afetados do que os homens e os idosos. 

Num oportuno trabalho de reportagem (Público, 6.11.21) aborda-se o tema da saúde mental dos nossos alunos e o que lá se lê não nos deixa tranquilos. Numa reflexão sobre os impactos da covid-19 na saúde mental das crianças e dos jovens (DN, 1.11.21), o psicólogo Alfredo Leite afirma que “o suicídio é a principal causa de morte em crianças e jovens adultos em Portugal". 

Os problemas de saúde mental podem ser devastadores para o futuro das nossas crianças e adolescentes e exigem, por isso, intervenções rápidas. Não estão apenas em causa os preocupantes novos casos de depressão e ansiedade (um dos traumas que se vê referido na literatura sobre a matéria foi a ideia transmitida às crianças de que poderiam, por simples proximidade, fazer adoecer os pais ou os avós), mas também o agravamento dos casos dos alunos com necessidades educativas especiais, cujas rotinas de apoio especializado, terapia e socialização foram brutalmente interrompidas e permanecem longe de ser recuperadas. Numa palavra, não é saudável que as crianças cresçam podendo pensar que são perigosas para os cuidadores e que estes podem também ser perigosos para a saúde delas. Na equação de relativização dos prós e contras das medidas de saúde pública, a saúde mental e a imperiosa necessidade de a proteger não foram consideradas, já que os estudos produzidos indicam como primeira causa da depressão das crianças a desconexão que elas sentem em relação aos amigos e à própria família. O crescimento saudável das crianças e a segurança vital de que necessitam não dispensam o contacto físico e a intimidade emocional. As decisões que as possam pôr em risco não podem ser decretadas por políticos, ouvidos apenas epidemiologistas e virologistas. Devem incluir a pronúncia de psicólogos, psiquiatras e pedagogos. 

Ciente embora da desproporção comparativa, as estratégias actuais para direcionar o pânico instalado na sociedade para determinados objectivos fazem lembrar o que a História nos reporta sobre idêntico modo utilizado pelas classes dominantes, em período de crises epidémicas e mudança social, que culminaria com a criação do Tribunal do Santo Ofício. A sociedade do futuro não pode ser uma sociedade desprovida das liberdades civis anteriormente conquistadas, muito menos uma sociedade em que poucos controlem e dominem os outros, impondo-lhes uma visão distorcida de segurança e bem-estar, desprovida de humanidade. 

*Professor do ensino superior