27/12/2017

A banalidade do mal e o sabor dos anos que passam

no Público
27 de Dezembro de 20017

por Santana Castilho*

“Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo o dia.” 
José Saramago

1. Passou o Natal das ocas farturas. Por comodidade e interesse, o Natal comercial tem varrido da memória dos homens o verdadeiro Natal, menos fantasioso, aquele em que Herodes, o Grande, ao saber do nascimento do Rei dos Judeus, mandou assassinar todos os recém nascidos em Belém, para varrer o alegado concorrente. Segue-se a passagem de ano e é tempo do habitual balanço. Em 2017, Portugal tornou-se moda para os turistas.

Em 2017, assegura a santa madre Estatística, cresceu a economia, cresceu o emprego e registámos o mais baixo défice desde 1974. Em 2017, saímos do procedimento por défice excessivo e recebemos bulas purificadoras das agências de rating. Em 2017, um dos diáconos do totalitarismo financeiro, mas nosso, arrebatou o ceptro do Eurogrupo.

Prestes a findar 2017, o parecer do Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do Estado de 2016 foi claro: de 2008 a 2016, foram-nos extorquidos 14,6 mil milhões de euros para acudir aos desmandos de banqueiros e amigos, soltos e impunes. Em 2017, os incêndios florestais fizeram 111 mortos e 350 feridos.

Em 2017, um político que foi de férias quando meio Portugal ardia, considerou saboroso o ano que finda.

Imagino como seria cómoda a vida de um governante que não se importasse com nada nem ninguém. Mas será possível governar sem se importar? Será possível governar sem a capacidade de nos colocarmos na pele daqueles que não conhecemos, mas sofrem? Será possivel governar sem amar? No coração de quem ama, os êxitos efémeros não apagam o sofrimento perene nem as alegrias superficiais afastam a dor mais funda.


2. Felizmente recuperado das vertigens e falta de equilíbrio que a síndrome vestibular aguda lhe provocou, o ministro Tiago Brandão Rodrigues foi à Chamusca e caiu do cavalo da demagogia. Embalado pelo trote das referências à “metodologia expositiva” (Estado da Educação 2016, CNE, págs. 7, 27 e 28), alegadamente usada em excesso pelos professores, e instado a pronunciar-se sobre a matéria (Público, 15.12.17), passou ao galope: “… esses dados dizem respeito ao ano lectivo 2015-2016, cujo início foi ainda da responsabilidade do anterior Governo. Tivemos a oportunidade de, sabendo nós como o estado da educação se apresentava nesse ano lectivo, poder desenvolver novas políticas públicas para dar resposta à estaticidade das salas de aula …”.

Estática esteve a leitura do relatório por parte do patusco ministro. É que “esses dados” referem-se a 2012, como está no relatório que Tiago não leu. E a poderem, inquisitoriamente, ser ligados de modo isolado a algum Governo, então seria … ao do PS (Lurdes Rodrigues e Isabel Alçada).


3. A 19 deste mês, a página institucional da DGAE ofereceu-nos um texto de antologia propagandística sobre as inovações, velhas de décadas, do secretário de Estado João Costa, autor da prosa. Sob a epígrafe “Autonomia, Liderança e Participação”, disse-nos João Costa:

“O insucesso não é, pois, o problema de uma taxa que queremos reduzir, mas sim o problema de qualidade das aprendizagens e de justiça social que precisamos de resolver”. 

O engenho ensaísta do secretário de Estado antecipou uma probabilidade inovadora: a taxa pode aumentar mas o insucesso diminuir. É uma questão de reescrever o que entendemos por qualidade das aprendizagens. E a caneta pedagógica é ele que a tem.


4. A secretária de Estado Alexandra Leitão, em representação do Governo, assumiu o compromisso de negociar com os sindicatos o modelo da recomposição da carreira dos professores, tendo por referência o actual estatuto, por forma a ser possível a recuperação do tempo de serviço. No exercício negocial em curso, o ministério da Educação divulgou números falsos sobre as correspondentes implicações financeiras, com o óbvio intuito de iludir a opinião pública. Este procedimento é próprio de aldrabões. Apesar de deselegantes, há momentos em que determinadas palavras têm que ser usadas.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

13/12/2017

Se houvesse ministro da Educação …

no Público
13 de Dezembro de 2017

por Santana Castilho*

1. Em 25 de Agosto passado, muitos professores do quadro foram colocados a centenas de quilómetros da residência. A 6 de Setembro, outros menos graduados profissionalmente ficaram com os lugares dos primeiros. Seguiram-se acções em tribunal, declarações e manobras políticas e pronunciaram-se os importantes: Presidente da República, Primeiro-Ministro e Provedor de Justiça. Foram sensibilizados todos os grupos parlamentares e fizeram-se eficazes manifestações de rua. Quase quatro meses volvidos, os ludibriados são apenas candidatos ao novo ludíbrio de um ilegítimo e inútil concurso extraordinário. Houvesse ministro da Educação e isto nunca teria acontecido.

2. Os professores do ensino artístico especializado foram sempre objecto de tratamento segregador em sede de contratação e carreiras. Em vez de lhes aplicar a legislação que regula o exercício profissional dos outros professores, a tutela considera-os como técnicos especializados.

Lendo o actual projecto de decreto-lei para regular a contratação dos professores do ensino artístico, parecem claras duas intenções: institucionalizar a desigualdade entre estes docentes e os das outras áreas e conferir aos directores das respectivas escolas um poder discricionário e não sindicável para decidirem quem contratam. Trata-se de retomar, em permanência, uma espécie de bolsa de contratação de escola, que legitime a falta de habilitação exigível para se ser professor. Houvesse ministro da Educação e não seria assim.

3. Os direitos a licença sabática e a equiparação a bolseiro desapareceram. Cada vez mais, o ministério da Educação conta menos na definição das políticas que influenciam a carreira dos docentes. Neste momento, está à margem dos critérios que estabelecerão o nível de estrangulamento à progressão aos 5º e 7º escalões. Ano a ano, com todo o poder discricionário à mão, é o ministério das Finanças que quer decidir. Nem percentagens mínimas aceita fixar. Houvesse ministro da Educação e o estatuto da carreira docente não se teria transformado em estatuto de deveres, apenas.

4. Para o secretário de Estado João Costa, a descida dos resultados no PIRLS é da responsabilidade das políticas de Nuno Crato. Para Nuno Crato, as políticas facilitistas de João Costa não serão alheias ao facto.

Quem me lê sabe como, continuadamente, tenho considerado absurda a ideia de tudo querer medir e submeter ao crivo omnipresente dos testes padronizados. A Educação não é uma ciência exacta. Nem sequer é uma ciência. É uma actividade, talvez a mais nobre, de intervenção social, que recorre a muitas ciências e está sujeita a muitas contingências e variáveis. Só políticos menores ousam estabelecer uma relação de causa única entre resultados e um só processo político. Como se as múltiplas outras variáveis se retirassem, simplesmente, ante a sua genialidade.

Nesta polémica, Nuno Crato e João Costa convergem na asneira e divergem na fé. Um pontificou entregue às metas. O outro comunga no altar das competências. Ambos se têm por sacerdotes pedagógicos de um só dogma. Um já passou e o outro vai passar sem perceberem para que servem os professores. Sem perceberem que não se reforma sem implicar os professores. Sem perceberem que não se melhora o desempenho dos alunos piorando as condições de trabalho dos professores. Houvesse ministro da Educação e esta guerra de alecrim e manjerona teria sido substituída pela análise, possível e séria, dos resultados do PIRLS.

5. O país não tem dúvidas sobre a qualidade inaceitável da alimentação que muitas escolas servem às crianças. Pais, professores e muitos directores desejam que as escolas voltem a ter serviços autónomos para confeccionarem as refeições. O Bloco de Esquerda apresentou na AR um projecto de resolução para o permitir. O PS aliou-se ao PSD e ao CDS para o impedir. Argumento maior? O custo da rescisão dos contratos com as respectivas empresas. Houvesse ministro da Educação e não teríamos lagartas passeantes e frango cru chinês nos pratos das nossas crianças.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)