24/01/2018

O “Dia do Perfil dos Alunos” e o perfil do Governo

no Público
24 de Janeiro de 2017

por Santana Castilho*

Se há um “Dia Internacional da Comida Picante” (16 de Janeiro), um “Dia Mundial das Zonas Húmidas” (2 de Fevereiro), um “Dia do Engolidor de Espadas” (28 de Fevereiro), um “Dia Mundial da Higiene das Mãos” (5 de Maio), um “Dia Mundial do Mosquito” (20 de Agosto) e um “Dia Mundial do Pijama” (20 de Novembro), como esperámos tanto para enriquecer o arquivador da República com o “Dia do Perfil dos Alunos”?

A lacuna foi suprida a 15 de Janeiro transacto, com o glamour de uma festa muito moderna. No elenco principal brilharam Catarina Furtado, famosa apresentadora de espectáculos televisivos, e Fernando Santos, auspicioso treinador de futebol. O elenco secundário foi constituído por 323 “comunidades educativas” (designação do século XXI para aquilo a que os arcaicos da minha geração chamavam escolas).

Descido o pano deste Carnaval antecipado, arrisco o veredito da Quarta-feira de Cinzas.

No âmago da concepção que o secretário de Estado João Costa diz moderna está o logro de arrastar prosélitos acríticos para a criação do aluno novo, com um caudal de vacuidades que falharam há duas décadas. João Costa vem forjando a ilusão de que com iniciativas inferiores se obterão resultados superiores.

O modo como os alunos integram o que aprendem nas diferentes disciplinas foi objecto, na anterior experiência da denominada “gestão flexível do currículo”, de uma coreografia de actividades de “faz de conta” e de uma sobrecarga de burocracia escolar e procedimentos inúteis, que agora se repetem.

A riqueza de um sistema de ensino assenta na diversidade de soluções e não no centralismo de inquisidores pedagógicos. Qualquer suposto vanguardismo teórico ou qualquer preponderância de brigadas de bem-pensantes são elementos castradores da liberdade metodológica e da beleza de ensinar. Mas foi isso que se celebrou no “Dia do Perfil dos Alunos”, conseguido remake do “Dia do Luzito” ou do “Dia do Chefe de Quina”.

Não haverá, nunca, salutar transformação da educação pública sem real autonomia intelectual, pedagógica e profissional dos professores e das escolas. Não haverá, nunca, motivação intrínseca para a acção sem uma profunda descomplicação das leis e das normas, que personificam a burocracia sem sentido.

Mais que o perfil do aluno é importante reflectir sobre o perfil do Governo no que à Educação é identificável. Nesta área não são evidentes reflexos dos progressos económicos com que todos os dias o discurso oficial nos confronta. Os alunos tiritam com frio nas escolas porque não há dinheiro para ligar os aquecimentos. Muitos cursos profissionais estão subfinanciados. As negociações para a progressão na carreira docente são, antes, expedientes para retrocessos desrespeitadores do compromisso assinado com os sindicatos no passado dia 18 de Novembro de 2017. Eterniza-se a falta de pessoal auxiliar e evidencia-se, consequência persistente de tudo isto, a balcanização da classe docente, com o nascimento de facções hostis entre si, que não escondem lamentáveis ódios públicos, expostos nas redes sociais. Infelizmente, vejo defender o diferenciamento estatutário entre contratados e não contratados, professores do básico e professores do secundário, professores velhos e professores jovens.

Opressora e dominante, a burocracia disputa, hora a hora, o reduzido tempo que resta aos professores para ensinar. A última descoberta colocou as escolas num carreiro, vergadas à plataforma, mais uma, criada para recensear todos os docentes, registando, num desperdício escandalosamente redundante, todo o tipo de informação que lhes diz respeito, como se o monstro central não tivesse sucessivas bases de dados e registos biográficos sobre tudo o que respeita a todos, registos criminais incluídos. Estivesse eu errado e não teríamos essas sucessivas edições dos últimos anos sobre o “Perfil do Docente”, cheias de números, quadros e quadrinhos pica-miolos!

*Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

10/01/2018

O desagravo do pastel de bacalhau

no Público
10 de Janeiro de 2018

por Santana Castilho*

Fui à minha galeria de grotescos inscrever o despacho nº 11391, do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, publicado no D.R. de 28 de Dezembro do ano findo. O verbete anterior é de Abril de 2015 e regista que, em consultas compulsivas de saúde ocupacional, as mulheres tinham que apertar as mamas até esguicharem leite, se queriam continuar a ter reduções de horário para amamentação dos filhos. Concedo que, comparado com isto, o Ministério da Saúde melhorou. Agora, apenas decidiu proibir a venda de uma extensa lista de produtos em bares que funcionam em instalações suas.

Do cortejo imenso de carências e problemas do SNS, o iluminismo do Governo escolheu os malefícios dos rissóis e dos pastéis de bacalhau e, do ano saboroso, na proclamação do seu cardeal, o governo do PS retirou o gosto da mortadela e congéneres. Numa pressurosa lista de sinal bom, recomendam-se sandes de alface e cenoura ralada e fixa-se “a disponibilização obrigatória de água potável gratuita”, não passasse pelos neurónios politicamente desalinhados de algum comerciante disponibilizar versões de água com suspensões de coliformes de terceira geração.

No preâmbulo do despacho fala-se de promover hábitos alimentares saudáveis e capacitar os cidadãos para tomarem decisões informadas sobre a saúde. Mas daí ao índex das proibições foi apenas um parágrafo. O mesmo Governo que, contra a vontade dos pais e dos directores das escolas, proibiu o fim das concessões das empresas que servem refeições intragáveis às crianças sob sua tutela, impõe agora o fim da concessão dos fornecedores das empadas e chamuças que os adultos procuram. Uma coisa é condicionar a ingestão exagerada de refrigerantes e alimentos processados por crianças em crescimento, entregues aos cuidados do Estado, nas escolas. Outra é infantilizar adultos autónomos e colocar no índex um croquete (que até pode ter sido cozinhado no forno com carne biológica) ou uma taça de arroz doce. Uma coisa é proibir o que pode incomodar os outros. Outra coisa é impor o fundamentalismo castrador dos falsos moralistas. Uma coisa é prosseguir políticas que conduzam a escolhas informadas. Outra coisa é remover pequenos prazeres, semeando medos e complexos de culpa, que conduzem a depressões garantidas. O mesmo Estado que instituiu, e bem, o testamento vital, que num hospital permite, e bem, que se interrompa a gravidez e se prepara, e bem, para discutir a eutanásia, libertando-nos, enquanto indivíduos, de morais colectivas, não me permite que dentro das instalações do SNS coma uma patanisca?

Se a ASAE actuar e os pasteleiros resistirem, antecipo o nascimento de uma espécie de filogenia de secos e molhados. Como é sabido da Biologia, a filogenia de uma espécie é função de dados e evidências, sim, mas de interpretações, também. Donde a bizarria do texto permitir quatro sugestões, pro bono, que deixo aos resistentes:

- O pastel de nata, réu condenado neste processo, safar-se-á se for arguida a superveniência de duas condenações para o mesmo crime contra o colesterol. Com efeito, já enviado para a fogueira num período do despacho, pelo esqueleto de massa folhada, é reenviado, noutro, por ter as vísceras feitas de nata. Se em sede fiscal não se admite a dupla tributação, argua-se a nulidade, em processo culinário, desta dupla punição.

- Chamem o Bloco de Esquerda e peçam ajuda a Catarina Martins. A igualdade de género está ferida no despacho: as chamuças são nomeadas e proscritas, mas os torresmos foram protegidos.

- Também o princípio da igualdade é flagrantemente violado. O despacho deita abaixo as frigideiras de Braga (para quem não conheça, trata-se de um ex-libris gastronómico da cidade), mas deixa em pé as caralhotas de Almeirim.

- Proscritos que foram os jesuítas e os mil-folhas, levem ao forno reinventados maçons e novíssimos novecentos e noventa e nove-folhas.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)