24/11/2021

Dar murro em ponta de faca

 

no Público,
24 de Novembro de 2021
 
por Santana Castilho

 

António Costa, em entrevista de 8 de Novembro à RTP, usou uma metáfora sobre a função da maçaneta e da fechadura, recorrendo ao seu conhecido comportamento político ardiloso: referiu não querer abrir feridas, mas esfaqueou repetidas vezes o PCP e o BE; quando rodou a maçaneta para deixar entrar o PSD e foi confrontado com a rejeição anterior, logo esclareceu que esse preconceito exorcista só se aplicou ao governo que vai cair; e, finalmente, permitiu concluir que se o PS não tiver maioria absoluta, um novo bloco central será possível. 

O homem que vê maçanetas onde outros só divisam fechaduras, enclausurou a Educação atrás das grades do retrocesso. A metáfora que melhor define o que fez nesta área é esta: dar murro em ponta de faca. 

As políticas educacionais destes dois governos do PS, personificadas por um ministro escandalosamente incompetente, são um poço de incongruências impostas por caudais normativos nunca vistos, paradoxalmente produzidos em nome da autonomia e da flexibilidade, perante, de um lado, escolas e professores reverenciais a quem manda e, do outro, escolas e professores exasperados, mas incapazes de dizer um não audível e consequente. É aqui que estamos, com a sociedade, distraída e passiva, a descobrir agora o que há muito se sabia e muitos foram denunciando: não há professores suficientes e o pior está para vir. Porque os salários indignos, já de si baixos (em início de carreira pouco acima do ordenado mínimo), perderam quase 30% do poder de compra nos últimos 12 anos. Porque temos professores com horários precários que pagam, literalmente, para trabalhar, suportando despesas (deslocações e rendas de segunda casa, longe da família) na esperança de reunirem condições para entrar nos quadros. Porque, de acordo com o Registo de Alunos Inscritos e Diplomados do Ensino Superior (Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência), o número de jovens que se candidatam a cursos de formação de professores sofreu uma quebra de mais de 70% nos últimos 15 anos. Porque, em resumo e em consequência do anterior, segundo um estudo promovido pelo próprio ME, o ensino público português tem um grave problema: recrutar, nos próximos dez anos, 34.508 novos docentes. 

O caos começou a ser desenhado pela proletarização dos professores, que Maria de Lurdes Rodrigues promoveu, em nome de uma eficácia ignorante, Nuno Crato continuou e António Costa e o seu mandarim Tiago apuraram, juntando-lhe precariedade e desprezo. 

Quando a OCDE referiu que a “Escola a Tempo Inteiro” é assistência social e não é educação, mais não fez que reiterar o que eu e outros fomos dizendo ao longo dos tempos. Quando a OCDE reconhecer que as políticas seguidas sob a epígrafe da “Educação para o Século XXI” não passaram de actos propagandísticos vazios de resultados, já estarão amarelecidos os papéis onde tantos denunciaram atempadamente o logro. 

A estratégia que agora se propõe é o retorno aos anos oitenta, ou seja, permitir que qualquer diplomado, sem a mínima preparação profissional específica, possa ser professor. Quando os eventuais candidatos virem o salário e as condições de trabalho, a exigência ainda descerá mais, como já hoje se verifica nalgumas zonas do país e nas disciplinas mais problemáticas (Geografia, Filosofia, Inglês, Português, Francês, Física e Química e Informática). Por mais que puxasse pela cabeça, este ministro só podia decidir assim: abaixo de zero. 

Se querem começar a resolver a falta de professores, comecem por lhes devolver o prestígio perdido (só 9,1% dos professores em serviço consideram que a sociedade os valoriza). Protejam-nos, com medidas eficazes, da violência a que estão sujeitos. Poupem-nos à burocracia inútil, que os escraviza. Mudem as regras de acesso aos quadros e de progressão na carreira. Paguem salários justos. Incentivem o exercício da docência no interior do país. 

Se não reagirmos com vigor, opondo sensatez ao delírio, em breve, tudo o que durante décadas se construiu, com o esforço de todos, vencendo tantas turbulências de percurso, irá ruir. Porque a cura anunciada (qualquer a dar aulas) é mais perniciosa que a doença (falta de professores qualificados). 

A pergunta que vai pedir a resposta dos portugueses, particularmente dos professores, é esta: quem trouxe a Educação a este estado, pode continuar a governar? 

 

*Professor do ensino superior

10/11/2021

A saúde mental das crianças e dos jovens

no Público

10/11/2021

por Santana Castilho

 

Boa parte da sociedade parece ter hoje dificuldade em manter contacto com a realidade. O medo, quanta vezes irracional, foi transformado em virtude e a obediência a regras tornou-se, socialmente, mais importante que o questionamento racional sobre a legitimidade e a validade científica dessas regras. Poderemos falar de uma certa psicose de massas, provocada pelo fomento do medo que a pandemia da covid-19 originou? Pelo menos, muitos especialistas em saúde mental assim o sugerem. 

Um relatório da Unicef sobre impacto da covid-19 na saúde mental de crianças e jovens, citado por Sara Johnson (The Guardian, 5.10.21) revela que um em cada cinco jovens de 15 a 24 anos, em todo o mundo, sofre de depressão, com receios extremos sobre o futuro e a família. 

Segundo o Royal College of Psychiatrists (https://www.rcpsych.ac.uk/), no Reino Unido, 16% das crianças com idades entre 5 e 16 anos foram diagnosticadas com transtorno mental em 2020. Por outro lado, aumentaram 29%, entre Abril de 2019 e Abril de 2021, os primeiros diagnósticos de psicose, assumindo-se que a pandemia tem graves reflexos na saúde mental da população (Helen Pidd,The Guardian, 20.10.21). 

Mark McDonald, psiquiatra especialista em crianças e adolescentes, afirmou que os americanos estão afectados por “uma psicose delirante”, provocada pelo medo induzido pela pandemia da covid-19. Isto apesar de as mortes verificadas representarem 0,002% na faixa etária dos 10 anos e 0,01% na de 25 anos (S.G. Cheah, Evie Magazine, 22.12.20). 

Nicola Davis (The Guardian, 8.10.21), citando estudos de vários cientistas, escreve que os episódios de ansiedade e depressão em todo o mundo aumentaram dramaticamente em 2020, com uma estimativa de acréscimo de 76 milhões de casos de ansiedade e 53 milhões de casos de transtorno depressivo, sendo que as mulheres e os jovens têm maior probabilidade de ser afetados do que os homens e os idosos. 

Num oportuno trabalho de reportagem (Público, 6.11.21) aborda-se o tema da saúde mental dos nossos alunos e o que lá se lê não nos deixa tranquilos. Numa reflexão sobre os impactos da covid-19 na saúde mental das crianças e dos jovens (DN, 1.11.21), o psicólogo Alfredo Leite afirma que “o suicídio é a principal causa de morte em crianças e jovens adultos em Portugal". 

Os problemas de saúde mental podem ser devastadores para o futuro das nossas crianças e adolescentes e exigem, por isso, intervenções rápidas. Não estão apenas em causa os preocupantes novos casos de depressão e ansiedade (um dos traumas que se vê referido na literatura sobre a matéria foi a ideia transmitida às crianças de que poderiam, por simples proximidade, fazer adoecer os pais ou os avós), mas também o agravamento dos casos dos alunos com necessidades educativas especiais, cujas rotinas de apoio especializado, terapia e socialização foram brutalmente interrompidas e permanecem longe de ser recuperadas. Numa palavra, não é saudável que as crianças cresçam podendo pensar que são perigosas para os cuidadores e que estes podem também ser perigosos para a saúde delas. Na equação de relativização dos prós e contras das medidas de saúde pública, a saúde mental e a imperiosa necessidade de a proteger não foram consideradas, já que os estudos produzidos indicam como primeira causa da depressão das crianças a desconexão que elas sentem em relação aos amigos e à própria família. O crescimento saudável das crianças e a segurança vital de que necessitam não dispensam o contacto físico e a intimidade emocional. As decisões que as possam pôr em risco não podem ser decretadas por políticos, ouvidos apenas epidemiologistas e virologistas. Devem incluir a pronúncia de psicólogos, psiquiatras e pedagogos. 

Ciente embora da desproporção comparativa, as estratégias actuais para direcionar o pânico instalado na sociedade para determinados objectivos fazem lembrar o que a História nos reporta sobre idêntico modo utilizado pelas classes dominantes, em período de crises epidémicas e mudança social, que culminaria com a criação do Tribunal do Santo Ofício. A sociedade do futuro não pode ser uma sociedade desprovida das liberdades civis anteriormente conquistadas, muito menos uma sociedade em que poucos controlem e dominem os outros, impondo-lhes uma visão distorcida de segurança e bem-estar, desprovida de humanidade. 

*Professor do ensino superior

27/10/2021

Uma democracia de mercado


no Público

27/10/2021

por Santana Castilho*

 

1. Decide-se hoje, pelo menos formalmente, o destino do OE. O cenário oferecido aos servos fiscais, a que chamam cidadãos, resume-se assim: governo e oposição, imprestáveis para empreender reformas sérias, digladiam-se numa romaria orçamental, com tácticas casuísticas e o mesmo objectivo estratégico: ter poder para, numa democracia de mercado, repartir benefícios pelos prosélitos mais próximos; um Estado tentacular, aprisionado por esta lógica e por escritórios de advogados, que assiste impávido à degradação da provisão pública dos serviços de saúde, educação e justiça; um presidente que, em nome da estabilidade podre que o obceca, nos sopra liminarmente, a cada passo, a velha máxima de Thatcher: there is no alternative.

São evidentes os sinais do autoritarismo monolítico de António Costa, cada vez mais fixado na afirmação do seu poder e na imposição de ideias de controlo e supervisão da sociedade. Conseguirá ele, no último minuto, fazer aprovar mais um OE? Créditos de flexibilidade de cintura, não lhe faltam. Entre outros, basta que recordemos o sorriso cínico com que deu a volta ao resultado das eleições que perdeu, ante um político que vinha de quatro anos de distribuição de miséria pelo país; a facilidade com que, depois de considerar o Bloco de Esquerda uma “inutilidade total”, o utilizou para ser poder; a volatilidade que usou para passar do eurocepticismo (saudou a eleição de Tsipras como um sinal de mudança na Europa) para o federalismo (quando lhe foi conveniente, alinhou rápido com as propostas de Macron); a ligeireza com que, depois de perorar na oposição contra “os falcões de Berlim”, bajulou, no governo, a senhora Merkel.

Ou estará antes no papel de escorpião, pronto para ferrar de morte o OE, porque não resiste ao chamamento para presidente do Conselho da Europa, em Julho de 2022? É que, como bem lembrou Ana Gomes, tem e recusa a solução: acabar com a caducidade da contratação colectiva.  

2. De passo síncrono com a diminuição da natalidade e o envelhecimento da população, acentuou-se em Portugal o abismo entre o litoral, sobrepovoado, e o interior, desertificado; enveredámos por um desenvolvimento agrícola de monoculturas intensivas, que depauperam solos e reservas de água; continuamos um país desindustrializado, fortemente dependente da importação de bens, a que outros acrescentaram valor; regredimos nos resultados da Educação; assistimos à degradação continuada da Justiça; numa palavra, permitimos, mansos, a imposição de um colete-de-forças ideológico em múltiplas áreas da vida colectiva.

Muitos, respeitáveis, dizem que não há racismo em Portugal. Detenham-se nos comentários que pululam nas redes sociais. Encontrarão, mais do que racismo, ódio. Ódio profundo dirigido ao outro, seja branco, preto ou amarelo, estigmatizando todos pelos comportamentos de alguns. Demasiados oprimidos, aí, odeiam mais o outro que o opressor e mostram-se inaptos, sequer, para identificar quem os faz pobres e oprimidos. Muitos deles, sem se darem conta, porque alienados, viram simples colaboracionistas, quando assumem as mesmíssimas práticas e dialéticas que julgam estar a combater. De alma profundamente dorida, vejo isso, até, nas caixas de comentários dos professores.

À medida que envelheço, os problemas que não podem ser solucionados cientificamente, mas que são fundacionais de uma visão personalista da vida, vão ocupando o meu espaço reflexivo em detrimento daqueles que resolvo com o conhecimento acumulado. Assim, quando olho para a corrente política que procura dominar o ensino, sinto-me em sentido contrário: eles fixados nas competências, que resolvem problemas (do sistema económico); eu preocupado com os modos diferentes de ver o mundo (para que cada um o entenda).

A pressão que o utilitarismo e o consumismo, as medidas e os números exercem sobre os que pensam é tal, que muitos acabam desistindo da Filosofia, da História e da Literatura e aceitam acriticamente o império da Estatística.

Oxalá esta crise pudesse, pelo menos, despertar políticos e pedagogos para a necessidade de produzir pensamento sobre processos de melhorar a qualidade de vida das populações, recuperando o equilíbrio entre as prerrogativas do Estado e as liberdades fundamentais dos cidadãos.

*Professor do ensino superior

 

14/10/2021

Retorno ao livro único e nacionalização das crianças de três anos?


no Público

13 de Outubro de 2021

por Santana Castilho

 

O homem que apoiou a criação de estruturas salazaristas de controlo do pensamento e da informação e iniciativas de supervisão moral da sociedade teve a deselegância de dizer a um deputado que não o autorizava a fazer juízos morais a seu respeito, porque o deputado não o conhecia de lado nenhum. O feudalismo deste raciocínio indigna qualquer cidadão livre e torna necessário lembrar a António Costa que toda a gente o conhece, e demasiadas vezes pelas piores razões.

António Costa reagiu à intervenção de Coelho Lima com a arrogância de quem não tolera que o contestem. Com a irritabilidade à flor da pele, tentou mostrar que, a quem manda, não se fazem perguntas incómodas. Porque não preciso da autorização dele para o considerar empenhado em impor chavões ideológicos sem fundamentação, endereço-lhe as perguntas em título e passo aos argumentos que as sustentam.

1. O Plano de Recuperação e Resiliência prevê gastar 73,5 milhões de euros para produzir recursos educativos digitais para todas as disciplinas do básico e secundário. Sucede que esses recursos já existem, para a maioria delas. É o que se retira da execução do Projeto-Piloto de Desmaterialização de Manuais Escolares (24 instituições, 187 turmas e 3755 alunos), coordenado pela Direção-Geral da Educação, com forte envolvimento dos grupos editoriais que, de há muito, vêm produzindo manuais e outros recursos digitais, de reconhecida qualidade. Com efeito, no quadro da monitorização do programa, designadamente na experiência que o próprio ME promoveu em nove escolas, em 2020/21, com manuais digitais já existentes, não vi reportada qualquer falta de recursos, que não a falta de meios informáticos (computadores e acesso à Net). Acresce que a Região Autónoma da Madeira já vai no terceiro ano de utilização total de manuais digitais (todos os alunos do 5º ano em 2019/20, todos os do 5º e 6º em 2020/21 e todos os do 5º, 6º e 7º anos em 2021/22) e também não identificou qualquer falta de recursos, assim como vários colégios com uso 100% digital. Qual é a ideia? Secar a edição privada e impor uma plataforma única, do Estado?

2. O Governo anunciou a intenção de tornar obrigatória a escolaridade a partir dos três anos. Se a medida colher, estaremos a estender ao pré- escolar o seu desígnio para a escola pública: ser um simples depósito de alunos durante o tempo de trabalho dos pais. Se a medida colher, estaremos a implodir a natureza intrínseca do pré-escolar, porque o sistema cederá, definitivamente, à pressão que já se verifica para antecipar aprendizagens formais, reguladas e tipificadas. Ora o aspecto mais importante da educação pré-escolar não é a preparação das crianças para os programas de ensino que as esperam no básico. É antes um tempo e um espaço para crescerem naturalmente, brincando, adquirirem capacidades neuro-motoras e sociais, envolvendo-se em actividades sensoriais, reguladoras de emoções, tanto mais relevantes quanto cada vez é mais escasso o tempo em que interagem com a respectiva família. Essas capacidades têm um valor intrínseco, por si só e para tudo o que virão a ser as crianças, bem mais importante que qualquer intencionalidade preparatória do ensino formal.

É desejável criar condições para que as cerca de 18 mil crianças, que estão fora do pré-escolar, o possam integrar? Obviamente que sim. Mas sem tornar isso obrigatório e com fundamento pedagógico, que não por razões assistencialistas.

Combate-se a pobreza apoiando as famílias, mas não retirando coercivamente os filhos às famílias. Dito de outro modo: o combate à pobreza e o apoio às famílias e à natalidade são vitais e necessários. Mas o direito das crianças ao desenvolvimento próprio de cada fase do seu crescimento não pode ser subalternizado em nome desse combate e desses apoios. As famílias devem ter a última palavra sobre os cuidados que preferem (ou podem) dar aos filhos. O Estado deve criar os recursos para acolher todos os que não permanecerem no seio da família. E, neste caso, falamos de todos, que não apenas a partir dos três anos. Ou estamos a fingir que ignoramos a insuficiência da rede pública de creches, situação dramática para os pais que trabalham e não podem pagar o acolhimento dos filhos na rede privada?

*Professor do ensino superior

 

29/09/2021

É mau atirar números ao ar, sem explicação


no Público

29/9/2021

por Santana Castilho*

Numa recente entrevista concedida à  Lusa, o ministro da Educação referiu-se a um “aumento brutal”, de mais de 30%, da despesa anual média por aluno, nos últimos seis anos: 4.700 euros em 2015, versus 6.200, agora. Quase simultaneamente, a OCDE atribuía a Portugal, no seu clássico Education at a Glance, um custo por aluno, em 2018, da ordem dos 8.512 euros, cujo valor mais elevado se explica pela utilização da taxa de paridade de poder de compra.

Não sei se o ministro tentou justificar a sub-orçamentação da despesa com pessoal, de que a Unidade Técnica de Apoio Orçamental implicitamente o acusou. Sei é que, gabando o custo de 6.200 euros por aluno nas escolas públicas, ressuscitou uma guerra ideológica adormecida e desnecessária. Com efeito, a divulgação deste valor, sem contextualização nem explicações, logo motivou a natural comparação dos custos por aluno nos ensinos privado e público e a retoma da questão, tudo menos linear, da liberdade de escolha das escolas.

A Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo veio, imediatamente, pedir o aumento do valor pago pelo Estado, por turma, em contratos de associação (estudantes que frequentam o privado por falta de oferta no público), fixado em cerca de 3.700 euros/aluno, com o argumento, compreensível, de que aquele valor se mantém inalterado desde 2015, enquanto o custo dos alunos da rede pública subiu 30%. E o CDS aproveitou a onda e retomou a defesa do cheque-ensino. Estas posições merecem apreciação.

Para que a comparação faça sentido, é importante perceber a estrutura dos respectivos custos, isto é, aquilo que o Estado paga e aquilo de que o privado não se ocupa.  O custo que o ministro atirou ao ar, levianamente porque não explicado, foi obtido dividindo o orçamento total da Educação pelo número de alunos. Mas nesse orçamento estão incluídas as despesas com um considerável número de professores pertencentes aos quadros do ME, mas que prestam serviço noutras instituições, com o descongelamento das carreiras, concretizado em 2018, com a Acção Social Escolar, designadamente milhares de refeições gratuitas, com as unidades de ensino estruturado, que se ocupam do ensino dos alunos cegos, surdos, autistas e demais necessidades educativas especiais, com as AEC, com manuais e computadores gratuitos, com o funcionamento dos serviços centrais e regionais do ME e com o financiamento de parte do próprio ensino particular (contratos de associação e de patrocínio e contratos com instituições particulares de solidariedade social).

Compreende-se agora por que o valor parece tão alto? E isto para não falar na queda demográfica (menos 160.000 alunos entre os anos lectivos de 2015/16 e 2019/20), que também o ajuda a explicar. E isto para não falar que, em percentagem do PIB, entre 2015 e 2020, o crescimento não é de 30%, mas de 17%. E isto para não falar que, no ano imediatamente anterior à pandemia, 2019, o esforço com a Educação foi 3,5% do PIB, o mais baixo desde 1987. Tudo, “detalhes”, que um ministro responsável deveria ter referido, antes de atirar números ao ar. 

Por outro lado, a retoma do discurso sobre a liberdade de escolha das escolas é uma subtileza para iludir o princípio da responsabilidade pública no que toca ao ensino. Porque, constitucionalmente, a escola pública é uma obrigação do Estado, enquanto a privada é uma liberdade dos particulares. O direito à Educação, que o Estado deve proteger, não cabe na lógica económica da simples prestação de serviços. A liberdade de escolha que o cheque-ensino proporcionaria não pode ser dissociada de variáveis que ultrapassam a questão ideológica e perverteriam de imediato o seu fundamento. Com efeito, 80% dos estabelecimentos de ensino privado situam-se nas grandes cidades e no litoral, nos concelhos com os maiores índices de desenvolvimento. Onde ficaria a liberdade de escolha fora dessas zonas?

O que ficou dito não contraria as apreciações, que considero justas, feitas a propósito da queda dos resultados do ensino público. O diagnóstico do IAVE, de Janeiro deste ano, concluiu que metade dos alunos dos 3º, 6º e 9º anos patenteavam dificuldades elementares a leitura, matemática e ciências e o TIMSS do ano passado confrontou-nos com a primeira regressão num percurso de melhorias desde 1995.

*Professor do ensino superior

 

15/09/2021

A responsabilidade de proteger não justifica a supressão das liberdades


Santana Castilho*

Com o pensamento em dois grandes portugueses, que nos deixaram ao mesmo tempo: Jorge Sampaio e Manuel Patrício.

Recordámos há quatro dias um 11 de Setembro, o do World Trade Center. Ficou esquecido um outro 11 de Setembro, o do Chile, de 1973.

O que Bush iniciou a 11 de Setembro de 2001 e outros continuaram, em nome do combate ao terrorismo, é um percurso que não serviu a paz, desprezou liberdades e democracia e ampliou o terror que inicialmente queria combater. Mostra a realidade que ao terror inorgânico se somou o terror de Estado, com milhões de mortos e refugiados e a legalização da violação de direitos humanos fundamentais. Mostra a realidade que a responsabilidade dos estados protegerem os seus cidadãos se exerceu trocando liberdade por aparente segurança e permitindo que os senhores da guerra se afirmassem, no campo político, como simples sugadores de fragilidades, usadas para controlar os recursos energéticos e as riquezas dos outros.

Muito do que sempre foi determinante para influenciar o comportamento das pessoas, e impor ideias hegemónicas idênticas às que serviram todos os projectos imperiais, resultou do aproveitamento das emoções causadas por fenómenos de impacto global. Para obstar a tal processo, a democracia precisa do empenho dos cidadãos por causas e as causas precisam de razões demonstradas. A ausência da demonstração da razão afasta o empenho, abre portas à debilidade da democracia e permite que ideias erradas se imponham, varrendo tudo o que resta de um estar geral abúlico. Porque mais do que as agressões ao nosso modo de viver, são os actos com que lhes respondemos que mudam o mundo.­

Interrogo-me continuadamente sobre se é o medo que gera a indiferença perante o racional ou se é essa indiferença que favorece a instalação do medo. Seja como for, vejo hoje muita indiferença e demasiado medo, particularmente no campo da saúde, onde é visível a utilização do pânico causado pela pandemia para retirar direitos e liberdades e reprimir, com a imprópria designação de negacionismo, tudo o que questione o discurso politicamente correcto, por mais fundamentados e cientificamente sérios que sejam os argumentos que se lhe opõem.

Há ano e meio que assisto à tomada de medidas por parte da maioria dos governos do mundo, que não logram obter os resultados que prometeram. Há ano e meio que assisto, em nome da emergência pandémica, a uma sucessão de medidas frequentemente contraditórias, ilógicas e ineficazes, limitadoras de direitos e liberdades, mas genericamente aceites pela sociedade como os crentes aceitam os dogmas das religiões. Há ano e meio que assisto à promoção de cientistas, pagos a ouro pela indústria farmacêutica, a uma espécie de sacerdotes infalíveis, enquanto outros, com créditos científicos bem mais sólidos e eticamente impolutos, são destratados como hereges e queimados na novel inquisição da opinião pública, vigiada e censurada. Dir-se-ia que à pandemia da covid-19 se juntou uma pandemia de fideísmo, que leva a maioria a acreditar agora em políticos que lhes mentiram toda a vida.

No regresso das nossas crianças às creches e à escola, e apesar de se ler na imprensa que 99% dos seus cuidadores estão vacinados, a Direcção- Geral da Saúde não foi sensível a vários estudos que identificam atrasos no desenvolvimento dos mais pequenos, atribuíveis à ausência da interacção fundamental com o rosto dos adultos, cobertos por máscaras.

Muitas das crianças que estão a ser violentadas na escola por regras sem sentido, serão enviadas para restauro muitas vezes ao longo da vida. Porque, embora não o manifestem de modo a que os adultos o entendam, mais do que nunca sentem-se assustadas na escola. Porque os perigos sanitários a que as poupamos são nada quando cotejados com os custos garantidos dos défices motores, mentais e emocionais que estamos a infligir ao seu desenvolvimento são. E não há vacinas que as protejam das chagas deixadas pela imobilidade forçada, pelos recreios livres suprimidos e pela habituação à inexpressividade de rostos mascarados dentro das quatro paredes das salas, onde passam a maior parte da vida que lhes estamos a roubar. Tantos constrangimentos e tantos isolamentos só podem fazer mal, mais mal do que aquele que evita uma escola tão protectora, mas tão pouco amigável.

*Professor do ensino superior

no Público, 15/9/2021