Santana Castilho *
Um decreto-lei do Governo, que altera as condições de financiamento das escolas privadas por parte do Estado, provocou uma onda de protestos e tomadas de posições públicas. Consideradas as responsabilidades dos protagonistas, a relevância da matéria em análise e o menor rigor de algumas afirmações apresentadas como factos, julgo pertinente acrescentar ao debate os argumentos que se seguem:
1. A Constituição da República fixa ao Estado (Artigo 75º) a obrigação de criar “uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população”. O DL 108/88 mandou que a referida rede se fosse desenvolvendo (Artigo 3º), começando por construir escolas em locais onde não existissem escolas privadas. Assim, o legislador protegeu, e bem, as escolas privadas já instaladas, numa lógica de economia de meios. Através de “contratos de associação”, o Estado tem vindo a pagar integralmente o custo do ensino que as escolas privadas ministram a alunos que habitam em zonas não cobertas pela rede pública. E continuou a pagar, desta vez mal, em zonas onde a rede pública foi chegando. É isto que está em causa. Penso que o Governo andou bem, propondo alterações que pecam por tardias. Poderemos discutir a forma. Mas o princípio é inatacável, embora desenterre polémicas velhas que importa esclarecer.
2. Joaquim Azevedo (“Público” de 26.11.10) considera as medidas em análise “fundadas numa mentira, imorais e profundamente injustas”. A mentira, sustenta o autor, reside na suposição de que o ensino privado estaria a absorver indevidamente o dinheiro escasso do Estado. E avança com a sua verdade: um aluno do ensino privado custa 4.200 euros por ano, enquanto um aluno do ensino público custa 5.200, citando a OCDE. Mas Joaquim Azevedo engana-se duas vezes. Engana-se porque a questão de fundo não está na comparação de custos. A questão de fundo é que o Estado não deve pagar a escolas privadas quando na mesma zona existem lugares disponíveis em escolas públicas. E volta a enganar-se quanto ao custo do aluno no ensino público, que está muito longe dos 5.200 euros. Passo a explicar. Os 5.200 euros apareceram propalados na imprensa, vá lá saber-se porquê, aquando da divulgação do estudo da OCDE, “Education at a Glance, 2010”. Mas a OCDE jamais os fixou. O que consta no documento (página 191 da versão inglesa) são 5.000 dólares para o básico e 7.000 para o secundário. Fazendo a média e convertendo em euros, chegamos a 4.500 euros por aluno e por ano. Mas os números da OCDE não expressam valores absolutos, como está bem explícito na publicação citada. Os números estão ponderados pela paridade do poder de compra, método usado em economia para eliminar as diferenças de níveis de preços entre os países e tornar mais fiáveis as comparações internacionais. Ora a aplicação deste método à situação portuguesa aumenta a expressão numérica do custo por aluno. Como os números usados pela OCDE se referem ao ano de 2007, há que ir ao respectivo Orçamento de Estado para os colher sem a tal ponderação. Vemos, assim, que foram despendidos 4.971,7 milhões de euros com 1.313.523 alunos. O que dá um custo médio por aluno e por ano de 3.785 euros. Bem longe dos 5.200 euros invocados por Joaquim Azevedo. E se os 4.200 que aponta como custo do privado estão certos, então a conclusão inverte o ónus da mentira: o custo do ensino privado é superior ao custo do ensino público.
3. Joaquim Azevedo apelou ao Presidente da República a propósito do que considerou ser “um insólito e inesperado ataque político e ideológico” e uma tentativa de destruição do ensino não estatal. Na inauguração do Colégio Pedro Arrupe, Cavaco Silva não fugiu a pronunciar-se sobre o conflito. Sugeriu que a atitude do Governo provocava instabilidade e defendeu a livre escolha das famílias e o alargamento da oferta educativa. Cavaco Silva foi imprudente. Joaquim Azevedo foi exagerado. Ambos deram um bom contributo para desenterrar fantasmas do passado.
A iniciativa do Governo visa apenas as escolas privadas que recebem subsídios do Estado. Esses subsídios foram, desde o início, concedidos com a condição de não haver oferta pública na mesma zona. O diploma do Governo derroga uma disposição da responsabilidade do então primeiro-ministro Cavaco Silva, que pretendia eternizar por décadas, bem ao estilo das ruinosas parcerias público – privadas actualmente em debate, o financiamento das escolas privadas (Artigo 5º do DL 108/88). Meter no mesmo saco todas as outras, independentes de financiamento do Estado, e falar de destruição do ensino não estatal é inaceitável.
Entendamo-nos. O sistema de ensino português tem dois subsistemas: um público, outro privado. Querer tornar os dois indiferenciáveis é uma subtileza para fazer implodir o princípio da responsabilidade pública no que toca ao ensino. Os cidadãos pagam impostos para custear funções do Estado. Uma dessas funções, acolhida constitucionalmente, é garantir ensino a todos. Quando pago impostos não estou a pagar o ensino dos meus filhos. Estou a pagar o ensino de todos. Se escolho depois uma escola privada, sou naturalmente responsável por essa escolha. O princípio da liberdade de escolha da escola por parte das famílias é um belo e desejável princípio. Mas para Cavaco Silva parece que só se realiza através de escolas privadas. E não é assim, ou não deveria ser assim. A autonomia e a diversidade podem tornar as públicas diferentes umas das outras. Assim tenhamos a coragem de ir por aí!
* Professor do ensino superior.
s.castilho@netcabo.pt
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