23/11/2011

“Bunga-bunga” governamental

in Público, 23/11/2011

por Santana Castilho

Vão chegar mais oito mil milhões de euros. Para uns, são fruto do sucesso da execução do acordo com a troika. Para outros são um degrau na escada descendente da fatalidade que nos marca. Olhando para fora e para dentro, entendo melhor os segundos. 

A austeridade fez implodir num ápice, pela via eleitoral, os governos de três países: Irlanda, Portugal e Espanha. E aliada à necessidade de tranquilizar os mercados, testou, poupando o tempo e a maçada da ida às urnas, sem protestos visíveis e com êxito, o caminho perigoso de substituir sem votos os de outros dois: Grécia e Itália. Papademos, o chefe do executivo grego, veio do Banco Central Europeu e da Comissão Trilateral, de David Rockefeller. Tem por isso a confiança dos mercados. Monti, que chefia o governo italiano, conquistou-a enquanto comissário europeu. Ambos passaram pelo Goldman Sachs, como convém. Passos, obedecendo à troika e bajulando Merkel, esforça-se por merecê-la. Nenhum dos três tem, porém, legitimidade democrática para governar. Os dois primeiros por construção. Passos, por acção. Porque tudo o que prometeu e usou para ser eleito pôs de lado e incumpriu. Porque a política, como forma de melhorar a vida dos cidadãos, não é paradigma que o entusiasme. 

As desilusões e as evidências têm um efeito acumulativo, que afasta a esperança: vi, vezes suficientes, intervenções presidenciais que preteriram o direito dos cidadãos em benefício do desvario do poder; estou ferrado por sucessivas interpretações de juízes do Tribunal Constitucional, doutos que eles sejam, leigo que eu sou, mais concordantes com os interesses das áreas políticas que os indigitaram que com a Constituição que deviam defender; não confio num Parlamento que à saciedade já provou jogar um jogo e não servir um povo, votando como lhe ordenam. Tudo visto, a Democracia e o Estado de Direito estão em licença sabática. Resta que a quarta República lhe ponha cobro. Porque a mãe de todas as crises é a crise de um regime podre. De um regime de contabilistas, manobrado por maçons, irmãos da “Opus Dei” e jogadores da “opus money”. 

A fixação na contabilidade única está a gerar uma espécie de “bunga-bunga” governamental. O ministro da economia ainda consulta as resmas de gráficos e tabelas que trouxe do Canadá para decidir se caímos para os serviços, se retornamos às batatas e ao mar, ou se voltamos a esgravatar as entranhas da terra à procura de ferro, ouro, gás e petróleo. Com saudades de Manuel Pinho, vaticinou que “2012 vai certamente marcar o fim da crise”. O ministro das finanças faz com a banca a quadratura do círculo: aceita-lhe o liberalismo quando toca a especular e corre a protegê-la quando o jogo dá para o torto. Mantendo esfíngica serenidade, contenta-se com o anúncio da gestão da emergência: mais impostos, mais desemprego, mais afundamento da economia, mais cortes salariais, mais recuo das funções do Estado. Na educação não superior, um trio de múmias governantes afunda o futuro e soçobra incapaz ao CAPI, à ANC, ao PTE, às TIC, às AEC, ao PIEC, PIEF e PREMAC, aos EFA e aos CNO, siglas que não traduzo a bem da sanidade mental dos leitores, mas que designam parte da teia de esquemas e burocracias que não desenredam e tolhem a gestão das escolas. O ministro da pasta admitiu agora fechar escolas independentemente do número de alunos (até aqui o indicador era menos de 21) e disse estar “ a prever encerrar uma parte substancial das mais de 400 que sobraram” (aquelas cujo fim suspendeu no início do mandato). De resto, o corte na educação é tão colossal que nos devolve, em percentagem do PIB, ao clube dos subdesenvolvidos. Exceptuam-se, por crescerem, as verbas para o ensino privado e para as direcções-regionais de educação, cuja extinção foi anunciada, pasme-se. Face a fortes restrições orçamentais, centenas de alunos de comunidades emigrantes estão sem aulas de Português. O Governo pretende suprimir os cursos ministrados fora dos horários escolares. Se se consumar a iniciativa, porque é esta modalidade a mais frequentada, estaremos perante o quase desaparecimento do ensino da língua materna aos luso-descendentes. Só na Europa, estima-se que já tenham sido afectados metade dos cerca de 50 mil estudantes que existiam há um ano. O secretário de Estado do emprego contou no Parlamento uma anedota que fez rir os mais sorumbáticos: disse que o salário mínimo nacional (485 euros mensais) não é baixo. O secretário de Estado do desporto e da juventude, num assomo de patriotismo, convidou os jovens a zarparem do solo pátrio. O secretário de Estado da administração pública anunciou a intenção de mexer nas tabelas salariais dos funcionários públicos. O ministro Gaspar desmentiu-o e chamou-o de especulador público. 

Simbólicas e absolutas são, afinal, as palavras mágicas que o governante do discurso a 33 rotações soletrou ao retornado de Vancouver, perguntando-lhe, dizem, qual das três não entendia: não há dinheiro! As mesmas que amocharam, conformada, parte da sociedade. Mas que começam a levantar outra parte, que rejeita a suspensão instrumental da Constituição e gritará nas ruas, amanhã, que não aceita o confisco de salários para que o Estado devolva a alguns o que perderam em especulações fracassadas e reponha no balanço da divida o que outros, impunemente, roubaram. Eis o óbvio moral que os ditadores de circunstância fingem não entender, esmagando direitos constitucionais e civilizacionais que tomam por privilégios e ignorando, quando não decretando novos, os verdadeiros privilégios. 

s.castilho@netcabo.pt

09/11/2011

O desígnio de Crato é cortar

Público, 9/11/2011

Santana Castilho *


Nuno Crato encheu de nada e de cortes três páginas deste jornal. Lê-lo a 31 de Outubro traveste-lhe a graça para Nuno Cortes. Quando não identifica medidas para cortar, responde que não sabe. Nuno Nada, tão-pouco destoava para sua nova graça. Que desgraça!

Tirando o desígnio de castrar, despedir e poupar, não há na entrevista a mais ligeira ideia consistente sobre Educação. Perguntado sobre como se vai cumprir a escolaridade obrigatória até aos 18 anos, responde com profundidade: “Está tudo em aberto”. Interrogado sobre a verdadeira grandeza da redução orçamental, riposta com rigor: “Depende do quadro que se leia”. Questionado sobre o número de professores estritamente necessário, que antes havia invocado, é preciso: “É um bocado menos do que temos hoje. Não consigo quantificar”. Solicitado a esclarecer o objectivo que propõe para um novo modelo de financiamento do ensino superior, que acabara de preconizar, repete-se: “Está tudo em aberto”. À insistência dos entrevistadores, que querem conhecer os critérios a incluir no tal modelo, responde filosoficamente: “Vamos pensar nisso”. Quando lhe perguntam se já começou a pagar as bolsas de estudo, é negativamente claro: “ Ainda não”. Quando lhe perguntam se tem ideia de quantos alunos perdem o direito à bolsa, é claro, negativamente: “Ainda não”. 

“Estamos a estudar”, “estamos a ver”, “estamos a identificar”, “temos de ver” “temos que pensar” e “vamos ter de repensar” são fragmentos frásicos abundantes na entrevista, que ilustram a vacuidade predominante. Mas há passagens concretas, que patenteiam impreparação, ignorância e manipulação da realidade. Passo a fundamentar. 

Comecemos pela impreparação. Nuno Crato confessa que era inconsciente, quando crítico do anterior poder. Para tentar estabelecer coerência entre o que dizia e o que agora faz, afirma-se fiel aos seus princípios de sempre e deixa implícito que os actos que pratica, que contradizem tais princípios, são ditados por uma realidade que desconhecia. É uma quadratura do círculo, donde emerge impreparação crassa. Vista do lado do crítico, o ministro fica sem crédito. Vista do lado do ministro, o crítico virou a casaca. A seriedade mínima conclui pela implosão recíproca. 

Passemos à ignorância, com dois exemplos. No primeiro caso, é deprimente constatar o desconhecimento do ministro sobre a gestão do currículo do ensino básico. Nuno Crato assevera que poupou, com a supressão do Estudo Acompanhado, 15 milhões de euros no 2º ciclo e 17 no 3º. Afirma, preto no branco, que “ o Estudo Acompanhado era dado por dois professores no 2º ciclo”. Ora o que todos sabemos é que o Estudo Acompanhado continua a existir para o 2º ciclo e é acompanhado pelos mesmíssimos dois professores. Termos em que uma supressão que não existiu, senão na mente capta do ministro, não pode originar 15 milhões de poupança, senão nas virtuais contas deste economista, especialista em Matemática e arauto do rigor. No segundo caso, é embaraçoso ver Nuno Crato referir que a escolaridade obrigatória é de nove anos. Pena que um assessor não tenha tido a oportunidade de o esclarecer que já é de 12.

Vejamos agora a manipulação da realidade, também com dois, de vários exemplos possíveis:

1. Nuno Crato deixa cair, com ar dramático: «Quase metade (46,7 por cento) do pessoal da administração central está no Ministério da Educação. É um valor extraordinário. Isso significa que as reduções têm de ser, em grande parte, em pessoal e que têm de se reflectir na educação.» Mas não justifica seja o que for. A Educação tem cerca de dois milhões de utentes directos. Como se comparam estes números com os outros serviços públicos? Como se comparam estes números com dados internacionais? Como se enquadram estes números no que ele, como definidor das politicas educativas, quer do sistema? Sobre isso disse nada. 

2. Nuno Crato branqueia o quadro da Parque Escolar, qual copista do surrealismo. Revela-se um verdadeiro artista. Diz que a dotação do Orçamento de Estado de 2012 para aquele monstro é zero. E mostra como chega a este zero. Explica, com candura, que mandou “prolongar as obras por mais tempo, de forma a não concentrar todos os custos neste ano”. Esclarece, qual vestal, que 95 milhões de euros são receitas próprias da Parque Escolar, como se não soubéssemos todos que resultam da saloia engenharia financeira que obrigou, por decreto, as escolas a pagar-lhe rendas, que saem, obviamente, do Orçamento do Estado para 2012. E acrescenta que 80 milhões virão de endividamento ao Banco Europeu de Investimento, que não serão pagos pelo condomínio do meu prédio, digo eu. Brilhante. Em linha com o sofisma clássico: “Todo o cavalo raro é caro. Um cavalo barato é raro. Logo, um cavalo caro é barato!” 

Se subsistissem dúvidas sobre o papel de Crato neste Governo, esta entrevista dissipou-as. Do que disse não se extrai uma única ideia estruturada sobre qualquer dos níveis de ensino que tutela. Crato é apenas um dos economistas do Governo que, da Economia, só aproveitam a contabilidade. Sobre as desreguladas e criminosas actividades especulativas, que são do domínio público, não se lhes ouve uma palavra. Mas são lestos a condenar o sector público. E fazem-no de modo a que os gastos com a educação, com a saúde e com a justiça, naturalmente não isentos de erros, sejam apontados como responsáveis únicos pela descida ao inferno das finanças e da economia nacionais.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)