23/12/2020

A política indecorosa de João Costa no confronto com Nuno Crato

no Público
23/12/2020

por Santana Castilho *

 

Os resultados do TIMMS, divulgados no início deste mês, confrontaram-nos com uma acentuada descida dos resultados dos alunos do 4º ano da escolaridade obrigatória, em Matemática. Numa escala de um a 1000, caímos da posição 541, em 2015, para a posição 525, apurada em 2019. E esta queda é tanto mais relevante se tivermos presente que, desde 1995, é a primeira vez que invertemos uma trajectória sempre crescente.

O secretário de Estado João Costa tem-se desdobrado em narrativas para culpar do desaire as políticas de Nuno Crato. Ora, concorde-se ou discorde-se delas, e eu discordei, muitas vezes com estrondo, essas políticas não impediram que, em 2015, se reforçassem as subidas anteriores (da posição 532 de 2011, passámos para a posição 541 em 2015). Estamos pois em presença de uma perversidade política e intelectual, que não pode passar sem censura.

Os alunos agora avaliados entraram no sistema educativo em 2015. Formalmente, estudaram até ao final do 1º ciclo sob a tutela das metas curriculares, introduzidas em 2013 por Nuno Crato. Formalmente, o “perfil dos alunos”, as “aprendizagens essenciais”, a “flexibilidade curricular” e demais ladainhas pedagógicas falhadas no passado e recuperadas pelo actual Governo, só foram generalizadas, a partir do 1º ano, em 2018/19. Mas, o deslassar da exigência e do rigor foram, desde o primeiro dia, a marca impressiva da actuação de João Costa, construtor primeiro da cultura de desvalorização da avaliação séria e útil dos alunos, que passou a ser proposta.

O TIMSS de 2019 testou alunos que fizeram o 1º ciclo, de 2015 a 2019, sob a égide de João Costa. O TIMSS de 2015 testou alunos que fizeram o 1º ciclo, de 2011 a 2015, sob a égide de Nuno Crato. Eram sobejamente conhecidas as visões pedagógicas diametralmente opostas de um e de outro. Foram agora conhecidos os resultados dos respectivos períodos, o de João Costa em contexto económico de crescimento, o de Nuno Crato em contexto económico de penúria. Ludibriar esses resultados, pintando um arco-íris no que ficou cinzento, é expediente lamentável da “piropedagogia” de João Costa, que removeu compromissos e responsabilidades, sob a bênção ignorante de Tiago Brandão Rodrigues.

Se pusermos de lado as diferentes matemáticas da análise da Matemática, mais do que a descida dos resultados deve preocupar-nos a subida das desigualdades, em correlação estreita com a menorização das orientações curriculares anteriores, a que nunca foi oposto novo modelo estruturado e coerente. Outrossim, fomos tendo um ambiente mais ou menos caótico no que toca à gestão do curriculum, com sinais que se excluíam uns aos outros, num crescendo da espiral de incertezas: os programas e as metas curriculares de Nuno Crato foram coexistindo com as orientações avulsas da Direcção-Geral de Educação; o folclore das “aprendizagens essenciais” e a brincadeira da “gestão flexível do curriculum” puseram cada um a divergir a gosto, sem que nenhum professor sério pudesse saber, em rigor, o que queriam que ele ensinasse, quer no ensino básico quer no secundário. O que o TIMMS de 2019 veio dizer aos futuristas do “perfil do aluno do século XXI” é que, por mais que ensaiem a falsificação da História, começaram a produzir jovens com menos conhecimentos e capacidades que os do século XX.

Já que João Costa aproveitou este ensejo para referir mudanças próximas, fica uma nota final.

No que toca ao ensino da Matemática, diz-me a evidência empírica que nos temos ocupado ora na escolha de conteúdos ora na análise de métodos, para cair, invariavelmente, no mesmo erro monolítico, qual seja o de desconsiderar constatações de há muito, a saber:

- Sendo certo que na terceira infância (6 aos 12 anos) as crianças começam a ser capazes de pensar com lógica, essa aquisição é gradual e a lógica de que podemos falar é predominantemente concreta.

- Só na adolescência (12 aos 20 anos) se começa a desenvolver, mais uma vez com um gradualismo que pedagogicamente não pode ser ignorado, a capacidade de pensar abstractamente.

- Uma espécie de capitalismo cognitivo vem cristalizando o debate, sempre que surgem desaires no ensino, em torno de receitas metodológicas superficiais, que nos afastam da consideração de razões mais profundas: políticas, sociais, económicas, direi mesmo, civilizacionais.

 

*Professor do ensino superior

 

09/12/2020

Há mais vida para lá do vírus

A pandemia está a ser bem aproveitada para alguns degradarem, ainda mais, o nosso débil Estado de direito, usando uma ideologia segundo a qual determinados fins justificam quaisquer meios, restringindo, com medidas administrativas de natureza policial, direitos fundamentais e banalizando o estado de emergência, que passou a estado de todos os dias. Com receio de que lhes chamem negacionistas, são poucos os que se insurgem contra esta nova forma de fazer política, sem debate público, assente em comunicação catastrofista e, tantas vezes, em pseudociência. Não podemos continuar a viver vergados pelo medo de morrer, adiando e evitando a vida, perdendo voz e liberdade. E se há área onde essa perda é notória, ela é a Educação.
 
No percurso político recente de António Costa há um traço indelével, de que o próprio parece esquecer-se: saído minoritário das eleições de 2019, preferiu a volatilidade da navegação à vista no parlamento a um acordo formal com a esquerda; sobranceiro e apesar dos apoios que dele ia recebendo, descartou, à direita, qualquer entendimento com o PSD; agora, que o BE se “pôs ao fresco”, como diz, a alternativa mais provável é o isolamento que o conduzirá ao fim, a seguir às presidenciais.
 
A aceitação da actuação incompetente do ministro da Educação, incapaz de regurgitar, mesmo de outrem, duas ideias com sentido sobre o tema, é reveladora do desprezo a que António Costa votou a pasta. Assim, as ignorâncias de Tiago são virtudes para Costa. A negação de medidas necessárias, de que têm sido vítimas alunos, professores e pais, são arrepiantes, mas não incomodam nem um nem outro. Exemplos?
 
- Como tem sido abundantemente referido, mas nada politicamente tratado, cerca de 58% dos professores dos quadros das escolas vão reformar-se até 2030, num universo docente onde 53% têm idades acima dos 50 anos e apenas 1,1% abaixo dos 35.
 
Que fez o Governo para revalorizar a carreira docente, para acabar com a precaridade dos professores contratados, para disciplinar os cortes abjectos nos descontos para a segurança social e nas contagens de tempo de serviço, para introduzir justiça nos concursos e na avaliação do desempenho, para corrigir o roubo do tempo de serviço e demais injustiças salariais? Nada, excepção feita a vinculações insuficientes.
 
- Fundamentalmente por dificuldades de substituição de docentes em baixa médica ou de outros que se aposentaram, o que origina horários temporários ou incompletos, teremos cerca de 30 mil alunos sem aulas a algumas disciplinas, a poucos dias do fim do primeiro período lectivo. Que faz o Governo? Vai “adaptar” os exames à situação.
 
- O Relatório Anual de Segurança Interna, relativo ao ano de 2019, diz que as forças de segurança registaram, no âmbito do programa Escola Segura, 5.250 ocorrências, das quais 63% foram de natureza criminal. Particularizando, destacam-se 11 ameaças de bomba, 57 incidentes de porte de arma, 192 de posse ou consumo de drogas, 1.359 ofensas à integridade física e 119 ofensas sexuais. Que fez o Governo? Ignorou e escondeu.
 
- A proibição chocantemente arbitrária do ensino à distância a 30 de Novembro e 7 de Dezembro nas escolas privadas defendeu quem, de que doença? Descobriu o Governo que o vírus se propaga por fibra óptica?
 
- Embora a investigação existente já o dissesse, foi a realidade recentemente vivida que provou aquilo que muitos afirmaram logo que chegou a decisão de encerrar as escolas: o ensino à distância nunca poderá equivaler-se ao presencial. O papel das máquinas e das tecnologias jamais será comparável à interacção humana de um bom professor com os seus alunos. Com efeito, para que nos servem as tecnologias, se não lhes juntarmos uma humanidade que lhes dê sentido? Não foram só os mais novos, porque mais dependentes, que ficaram para trás. Foram também os cronicamente marcados pelo insucesso e os socialmente mais desfavorecidos que viram aumentar as cíclicas distâncias. E ainda que o ministério da Educação não se tenha preocupado com o fenómeno, houve quem procurasse quantificar os danos e alertasse para as repercussões alarmantes na própria economia que uma geração pior preparada faz esperar (The Economic Impacts of Learning Losses. Eric HanusheK e Ludger Woessmann. OCDE, Setembro de 2020). E que fez o Governo? Escondeu-se atrás do rotundo fiasco do programa de recuperação das aprendizagens.
 
 
In "Público" de 9.12.20

 

11/11/2020

Foi Simão Bacamarte a musa inspiradora?

Corro o risco de os absolutistas do mainstream me chamarem negacionista, por vir expor dúvidas sobre as recentes medidas disfuncionais de combate à pandemia. Mas numa sociedade democrática é livre o direito de nos expressarmos. Muitas vezes, a opinião dos outros provoca-me dor. Mas jamais me passou pela cabeça curar a minha dor calando-os, excepção feita quando o que defendem abalroa os princípios constitucionais e éticos que nos regem.
 
O entendimento entre Marcelo, Costa e aqueles que na AR lhes deram cobertura para decretar o estado de emergência tem uma leitura política óbvia: para eles, a Constituição é um estorvo. A preocupante situação da saúde pública não justifica que o Presidente da República proteja a inépcia do Governo com uma questionável interpretação da Constituição. Não há estado de emergência a título preventivo. O estado de emergência responde, não prevê. Não há estado de emergência light. O estado de emergência é um instrumento constitucional sério e profundo. Este estado de emergência dividiu o país entre os que aprovam ou reprovam, afastando-nos, como convém ao Governo, do escrutínio sobre a ausência de planeamento e de medidas eficazes para evitar a propagação da pandemia. À boa maneira ardilosa de António Costa fazer política, este estado de emergência põe nas costas dos cidadãos a responsabilidade pela disseminação de uma pandemia, cujos efeitos se agigantam face à debilidade para que os sucessivos governos foram atirando o SNS e os demais sistemas sociais de protecção dos mais pobres, de que a ocupação de mais de mil camas em hospitais por parte de pessoas com alta clínica mas sem casa nem família para as acolher é vergonhoso exemplo.
 
A ruptura do SNS não é de agora. Vem de trás, do ir além da troika do PSD e das cativações do Ronaldo das finanças, do PS. E quando se prepara a partição dos milhares de milhões que vão chegar da UE, de que se ocupam as estratégias? Da Educação? Da Saúde? Da Justiça? Não! Do hidrogénio verde, da alta velocidade, da digitalização e demais modernidades. Porque quanto menos críticas e educadas forem as massas, melhor. Porque quem tem poder económico escolhe e paga os melhores cuidados médicos. E porque quanto mais lenta for a justiça mais protegida fica a promiscuidade entre a política e os negócios.
 
O recolher obrigatório exprime a preponderância da política para consumo mediático sobre a racionalidade e aquilo que a ciência já sabe do vírus. Expõe o desespero e o desnorte de quem se deslumbrou com a toleima do “milagre português” e não soube utilizar os meses de acalmia para preparar a defesa de uma previsível segunda vaga, pensando agora que vai dominar a curva epidémica a toque de corneta.
 
Um famoso gráfico colorido da DGS diz que o factor “ familiar/coabitante” tem um potencial de 68% nos contágios novos. E prendem-nos em casa a partir da uma da tarde de sábados e domingos? Que nos permitissem, ao menos, ir andar de metro ou de comboio na linha de Sintra, com potencial zero nas conclusões da colorida DGS. O recolher às 23:00 vai impedir os perigosos jantares familiares? Sendo perniciosos os ajuntamentos nocturnos dos jovens ao ar livre, serão pacíficas as esperadas concentrações de consumidores nas grandes superfícies, durante as manhãs de sábados e domingos? Como e onde foi apurado que os passeios de sábado e domingo à tarde ou a ida às compras ou aos ginásios nos mesmos períodos são a origem dos contágios? Se a medida visa as grandes festas, não seria mais adequado tiro certeiro, que não bazuca sem sentido? Se o recolher obrigatório nos protege dos contágios, porque é que onde ele é total e permanente (estabelecimento prisional de Tires) se regista o maior surto apurado numa só instituição (148 casos)? Ou porque é que 1047 idosos morreram em recolhimento obrigatório, em lares de má memória? 
 
Entretanto, há nas escolas portuguesas professores de turmas enviadas para quarentena que continuam a leccionar outras turmas. Há professores que tiveram contactos com alunos infectados, mas não foram testados. Há professores que continuaram a leccionar durante o tempo em que aguardaram o resultado de um teste, que se revelou positivo.
 
A lógica destas medidas é uma paródia burlesca, que decreta certezas com base em incertezas. Terá sido Simão Bacamarte a musa inspiradora de António Costa?
 
In "Público" de 11.11.20

 

28/10/2020

Pau não mata vírus

no Público

28/10/2020

por Santana Castilho*

Vivemos numa sociedade desorientada entre a histeria e o desleixo, perdida no meio de um amontoado de pequenas razões incoerentes, governada por gente que pouco se importa com os danos que o medo impõe. A epifania da liberdade de Abril vai-se diluindo no seio de uma sociedade autoritária, onde, graças ao medo, os cidadãos trocam liberdade por segurança aparente e aceitam que se combata o vírus de pau na mão.

As regras opressoras, o controlo dos direitos individuais, a vigilância intrusiva e os abusos do Estado, consentidos por uma cidadania enfraquecida, vão-nos aproximando de novos autoritarismos, com aparência de democracia. Basta que atentemos em acontecimentos recentes:

- A ideia de nos obrigar a instalar a StayAway Covid era absurda e violadora das mais elementares liberdades. Por isso caiu, como um pesadelo. Mas jamais cairá o que ela revelou sobre a boçalidade política de quem tentou impô-la com recurso à intrusão policial.

- A PSP, diligente a responder à denúncia de um bufo anónimo, entrou na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, interrompeu uma aula e, à porta da sala escancarada para ventilação, multou um professor por, durante uma palestra de quatro horas e meia, ter retirado, por momentos, a máscara que usava. Esclareça-se que os 20 alunos presentes estavam a mais de cinco metros de distância do docente e de costas viradas para ele, atentos a outro professor, que fazia tradução simultânea para inglês. Acresce que o multado falava para um monitor porque, em rigor, se dirigia a 240 alunos que seguiam a aula via net.

- A distopia Orwelliana do 1984 aportou à Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa em 2020, ano da graça do Sars-cov-2, sob forma de vigilância omnipresente: coleiras identificadoras em todos os circulantes e seguranças a controlar e delatar quem infrinja as normas sanitárias. Um sistema por pontos sociais, à chinesa, pode levar os prevaricadores à presença do Grande Irmão, desde que não usem uma máscara limpa e seca no campus universitário.

- Do que recentemente aconteceu numa escola de Rio de Mouro, em Sintra, onde um aluno foi suspenso das aulas por, segundo o próprio, ter partilhado o lanche com um colega que "tinha fome e não comia nada desde a manhã", retive o desmentido da directora, que ao aluno se referiu assim: “Está numa turma onde não conhece ninguém, pelo que no intervalo procura a companhia de colegas de outras turmas, seus colegas do ano passado, algo que este ano tem que ser rigorosamente evitado, mas que ele já ignorou por diversas vezes e por diversas vezes foi alertado. Também foi já alertado para que quando comesse, sem máscara, claro, deveria afastar-se do grupo, algo que ele repetidamente ignora”.

Mais que a espuma das razões discutidas nas redes sociais (aluno generoso versus aluno desobediente) interessa-me o sentido profundo da justiça que a directora aplicou. Terá o aluno de 12 anos entendido a razão pela qual o acto de partilhar é agora punido? Para que quer uma directora a consciência (está numa turma onde não conhece ninguém …) se já tem um regulamento?

Vejo demasiadas escolas mais preocupadas com máscaras, medidas sanitárias e regras, que com aqueles que as têm de cumprir e fazer cumprir. Com as suas perdas emocionais. Com as suas ansiedades. Com o esmagamento dos padrões de vida democrática. Com o mal-estar colectivo. Afinal, com aquilo que uma escola deve ser e ensinar, particularmente num momento de retorno de múltiplos impulsos autoritários que, a propósito da “guerra” ao vírus, abrem caminho para o êxito de agendas indesejáveis. Gradualmente, o absurdo e a anormalidade vão sendo adoptados como o “novo normal”, por uma sociedade domesticada pelo medo e pela perda do senso comum.

A hipocrisia abunda e enoja: festas com dezenas de jovens são apontadas como focos de contágio, enquanto de milhares de passageiros amontoados às horas de ponta nos meios de transporte se diz não haver indício de surtos; pune-se uma criança que partilha um sumo com colegas, mas celebra-se a singeleza do presidente da República, que divide com outra uma bola de Berlim; proíbem-se uns, inconstitucionalmente, de visitarem os seus mortos, quando outros, aos milhares e sem respeito pelas regras vigentes, se amontoam em Portimão para ver a Fórmula 1 e são abençoados pela engraçada Dra. Graça.

*Professor do ensino superior

 

14/10/2020

Assim, falhamos a vida!

Assim, falhamos a vida!

Santana Castilho*

Pouco após a abertura do presente ano-lectivo, foi tornado público o quinto dos seis volumes que dissecam os resultados do PISA 2018. Do documento (Políticas Eficazes, Escolas de Sucesso) retira-se que as referências menos positivas sobre Portugal decorrem, não do desempenho dos alunos e professores, mas das decisões políticas tomadas (falta de equidade, falta de pessoal não docente, insuficiência de equipamentos informáticos e inexistência de acesso rápido à internet).

No atípico ano-lectivo anterior, o chamado ensino à distância, que mais não foi que um conjunto de iniciativas de emergência para acompanhar os alunos, resultou reconhecidamente ineficaz como processo de aprendizagem, particularmente no que respeita aos mais novos: já porque é pedagogicamente inadequado a tal faixa etária, já porque depende de meios tecnológicos que não existem na maioria das escolas. Apesar disto, quando a 18 de Maio o Governo decidiu reabrir as aulas presenciais das disciplinas nucleares de acesso ao ensino superior, fê-lo, erradamente, não para recuperar os atrasos dos mais novos, mas para salvar o ritual dos exames do secundário, escancarando portas a um segundo erro. Com efeito, ficou de rastos a credibilidade dos exames, que perderam toda a lógica estrutural a favor de um caricato livre arbítrio dos examinados, viciando a equidade de entrada no ensino superior (classificadores obrigados a classificar todas as respostas a todas as perguntas opcionais e a escolherem as melhores, sem coerência de critérios, resultou numa escandalosa inflação das notas de entrada).

O que aconteceu nos últimos meses deveria ter-nos levado a refletir sobre múltiplos aspectos da política de ensino, justificando o início de uma mudança necessária. Mas, ao invés disso, as cinco semanas iniciais do presente ano-lectivo, prestes a findar e ditas de recuperação, são, antes, de acumulação. De acumulação de perda de aprendizagens, por falta de professores nas escolas. De facto, logo no começo do ano, faltam professores para lugares que desde o início não foram preenchidos e para lugares entretanto resultantes da apresentação de atestados médicos. A subdiretora-geral da Educação, numa conferência recentemente promovida pelo Conselho Nacional de Educação, disse, e bem, que “não tem havido investimento, nem qualquer trabalho nesta área para inverter a situação”.

Do mesmo passo, as preocupações sanitárias dominantes nos estabelecimentos de ensino, cerceando o direito a brincar, reconhecido na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, esqueceram que os seres que pretendem proteger são crianças e jovens em pleno processo de desenvolvimento, onde etapas queimadas são etapas não recuperáveis. Protege-los proibindo-os de serem crianças foi e está a ser insano.

Notícias vindas a público simulam o que acontecerá a um professor com 32 anos de descontos, que venha a optar pela pré-reforma aos 55 anos, concluindo que ficará com 750 euros mensais durante 11 anos e meio, tempo necessário para atingir a idade legal da reforma. O exercício parte do pressuposto, teoricamente possível, mas na prática errado, de que esse professor estaria no 9º escalão da carreira, quando a maioria está muito longe de tal nível, devido aos conhecidos estrangulamentos administrativos, e por tal razão só poderá contar com cerca de 500/600 euros mensais. Ora semelhante ponto de partida é indigno para começo de conversa e tem um duplo significado: que o Governo despreza a educação e os professores e António Costa é cada vez mais gestor de influências e manobras, que gestor de problemas. Lembremo-nos, a propósito, da recente não-recondução do presidente do Tribunal de Contas, persistente irritante de António Costa desde as dissonâncias à volta do fundo Revita, do episódio do conveniente afastamento de Joana Marques Vidal ou da manipulação em curso no Conselho Geral Independente da RTP.

Ser professor hoje é tarefa árdua, maioritariamente desempenhada por uma classe envelhecida e cansada, que justificaria um reconhecimento e uma valorização social que não existem. Para os poucos que restam jovens, não há carreira que lhes permita construírem projectos de vida familiar, enquanto a sociedade lhes pede que sejam os obreiros principais dos projectos de vida dos alunos que ensinam.

Assim, falhamos a vida!

*Professor do ensino superior

 in Público, 14/10/2020