24/06/2020

As perguntas urgentes do momento


O Programa de Estabilização Económica e Social destinou 400 milhões de euros para comprar computadores, garantir a conectividade das escolas à Internet, adquirir licenças de software, financiar um programa de formação digital dos docentes e incrementar a produção de novos recursos digitais.
Sendo necessária, a modernização digital não resolve o problema de fundo da Educação em 2020/2021, que requererá mais professores, mais assistentes operacionais e mais técnicos especializados. O que é crítico na profissão docente é a dimensão humana. A destreza manipulatória das tecnologias é necessária e extremamente útil, desde que submetida à tutela daquela dimensão, primeira e fundamental. Perdê-la, no vórtice do deslumbramento tecnológico, é perder a dignidade profissional. A Google e a Microsoft respondem pelos dividendos que distribuem aos accionistas. Os professores respondem pela humanidade que acrescentam aos seus alunos.
 
Por outro lado, o Orçamento Suplementar, que foi apresentado como o instrumento de investimento público para responder à pandemia, não sinaliza um só euro para financiar medidas compensatórias das aprendizagens perdidas pelo corte de um terço das aulas presenciais previstas, nem faz uma única referência à escola pública e às necessidades acrescidas do próximo ano lectivo. 
 
Vários estudos internacionais, de análise de impacto, que começam agora a ser conhecidos, traçam uma visão funesta das consequências do encerramento das escolas, extrapolando para o campo da mobilidade social e do desenvolvimento económico das famílias e dos países aquilo que a psicologia do desenvolvimento apurou há muito: enquanto há aquisições não realizadas que podem ser recuperadas, há outras que se perdem para sempre, quando não ocorrem em tempos próprios do desenvolvimento das crianças (pré-escolar e primeiros anos do ensino básico). Sem escola física, que aproxima, não há educação. Com escola remota, que afasta, há desumanização.
 
Por cá, um inquérito aplicado pela Fenprof apurou que esse encerramento agravou as conhecidas desigualdades entre os estudantes e que, até meados de Maio, mais de metade dos professores não conseguiu contactar com todos os seus alunos. Neste quadro, seria imperioso, ouvindo as escolas e os professores, conhecer os números que caracterizam os meses de fecho (com quantos alunos as escolas não conseguiram manter qualquer contacto, quantos e onde deram novas matérias e quantos e onde foram apenas entretidos), desenhar programas de recuperação e planear adequadamente (acomodando medidas sanitárias e intervenções metodológicas especiais) o próximo ano lectivo.
 
Com o défice de qualificações que temos, é penoso ver o manso curvar ao destino, em vez de estarmos activamente a responder às perguntas urgentes do momento:
 
- Se uma nova vaga do vírus aparecer em Setembro, vai o país voltar a fechar as escolas? Como lidar com a doença, que tudo indica se tornará endémica, mantendo o funcionamento do sistema de ensino? Que planos de contingência estão previstos para responder a um eventual aumento de contágios, sem voltar a encerrar as escolas? Que formas de actuação alternativas estão pensadas para responder à imprevisibilidade da situação em que vivemos? Está em preparação um instrumento de aposentação dos professores, que justificadamente integrem os grupos de alto risco e não queiram voltar à escola?
 
- A duração do próximo ano lectivo será aumentada, para prover planos de recuperação? A pertinência desta pergunta resulta de se ter criado um problema, que não pode ser iludido: durante o encerramento das escolas, uns alunos avançaram, outros não; se nada for feito de suplementar, quando todos se reagruparem, para que uns recuperem, outros terão de parar. 
 
- Haverá redução do número de alunos por turma, por razões de distanciamento físico? Serão, por isso, e para assistir aos alunos com mais dificuldades, contratados mais professores? Haverá professores suficientes? Haverá instalações suficientes? Como utilizar, numa lógica de complementaridade, os recursos tecnológicos disponíveis? 
 
- Como vamos minorar os desastrosos efeitos, sobre alunos com necessidades educativas especiais e suas famílias, de tantos meses de afastamento dos apoios de proximidade? Que implicações ocorreram no equilíbrio emocional e na saúde mental destes alunos?
 
In "Público" de 24.6.20

10/06/2020

A pandemia do medo e o ensino mediado por máquinas

no Público
10 de Junho de 2020

por Santana Castilho


1. Em nome de uma obsessiva protecção sanitária, sob o seu próprio e colaborante consentimento, reconheça-se, o cidadão comum foi, primeiro pelo “estado de emergência”, depois pela “situação de calamidade”, simplesmente afastado das decisões que lhe invadiram a vida, nos detalhes mais ínfimos, até nas suas próprias relações pessoais. Fomos voluntariamente prisioneiros das determinações de um Governo, que foi por sua vez prisioneiro das determinações de Costa e Marcelo. Da democracia restou o nome, que perdeu a alma quando atirou milhares para a valeta social do desemprego, do lay-off e do trabalho sem direitos, para alimentar uma conveniente pandemia do medo. 

Do confinamento prudente (que as chocantes imagens de Itália apressaram), visando precaver o eventual colapso dos hospitais, passámos para um confinamento imprudente, que fez colapsar a vida. Tudo sem debate, tudo recuperando a TINA (There Is No Alternative) de má memória. O terceiro poder totalitário de que falou Jean Ziegler (Les Nouveaux Maîtres du Monde, 2002) é agora o medo propalado em mantras televisivos constantes, que reduziram a vida do país à COVID-19 e que não dão voz aos especialistas que consideram epidemiologicamente insensatas muitas das medidas tomadas. 

Até a própria designação de “afastamento social”, para um óbvio afastamento físico, foi um acto falhado. Porque o que se pretendeu foi uma nova ordem excludente, foi o isolamento, a diminuição da sociabilidade, do encontro cara a cara, que alimentaria as emoções e dificultaria a captura das pessoas pela lógica do virtual, da automação e da robotização do trabalho e do ensino. 


2. A aplicação dos fundos que aí virão suporia um debate participado e a audição das instituições mais qualificadas em cada área. Em vez disso, António Costa preferiu retomar o despotismo esclarecido, escolhendo em segredo Costa e Silva. Não está em causa a pessoa de Costa e Silva, com os seus reconhecidos méritos e competência. Estão em causa os métodos do primeiro-ministro. Está em causa a desqualificação do Governo e da Oposição. 

Há dias, António Costa anunciou 400 milhões para combater as desigualdades que o ensino online evidenciou (adquirir computadores, conectividade e licenças de software, capacitar professores e desmaterializar manuais escolares). Vendedores de computadores, Porto Editora e Leya são claros e imediatos beneficiários. Em que medida o serão alunos e escolas, depende da coerência dos correlatos programas educativos. Quanto a professores, se os não libertarem das cargas brutas de trabalho burocrático sem sentido, não há “capacitação” que substitua a disponibilidade necessária para fazer uso didáctico de tais recursos. 

Do mesmo passo, seria bom que António Costa tivesse reconhecido que foram os professores portugueses que pagaram do seu bolso a utilização dos recursos materiais de que necessitaram para participar no ensino de emergência que o Governo decretou, circunstância que não pode ser mantida no futuro. Com efeito, o Código do Trabalho, que na matéria é válido para os trabalhadores com vínculo público, dispõe que os instrumentos necessários ao uso das tecnologias de informação e de comunicação, em ambiente de trabalho, devem ser fornecidos pelo empregador, por cuja conta correm, ainda, todas as demais despesas a esse trabalho inerentes. 

Para uns, a pandemia evidenciou a necessidade do ensino a distância. Para mim reiterou o que já sabia: o artificialismo deste tipo de ensino; que não há ensino sem escola física, sem aprendizagem viva, sem interacção presencial professor/aluno. Os recursos tecnológicos complementam mas não substituem as aulas presenciais. Podem tornar a interação professor/aluno mais dinâmica, mas nunca a podem dispensar. 

O elogio que o ministro da Educação fez ao B-learning (uma mistura de aulas virtuais com aulas presenciais) justifica uma vigilância atenta. Podemos estar ante uma subtil tentativa para aliviar o peso da massa salarial no sistema de ensino, cavalgando a onda da restruturação de vários sectores da economia, que se seguirá. Numa eventual “normalização” do ensino online, cada professor corre o risco de ser transformado em mercadoria/produto, facilmente descartável ante o enganador brilho das máquinas. 

*Professor do ensino superior