29/09/2021

É mau atirar números ao ar, sem explicação


no Público

29/9/2021

por Santana Castilho*

Numa recente entrevista concedida à  Lusa, o ministro da Educação referiu-se a um “aumento brutal”, de mais de 30%, da despesa anual média por aluno, nos últimos seis anos: 4.700 euros em 2015, versus 6.200, agora. Quase simultaneamente, a OCDE atribuía a Portugal, no seu clássico Education at a Glance, um custo por aluno, em 2018, da ordem dos 8.512 euros, cujo valor mais elevado se explica pela utilização da taxa de paridade de poder de compra.

Não sei se o ministro tentou justificar a sub-orçamentação da despesa com pessoal, de que a Unidade Técnica de Apoio Orçamental implicitamente o acusou. Sei é que, gabando o custo de 6.200 euros por aluno nas escolas públicas, ressuscitou uma guerra ideológica adormecida e desnecessária. Com efeito, a divulgação deste valor, sem contextualização nem explicações, logo motivou a natural comparação dos custos por aluno nos ensinos privado e público e a retoma da questão, tudo menos linear, da liberdade de escolha das escolas.

A Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo veio, imediatamente, pedir o aumento do valor pago pelo Estado, por turma, em contratos de associação (estudantes que frequentam o privado por falta de oferta no público), fixado em cerca de 3.700 euros/aluno, com o argumento, compreensível, de que aquele valor se mantém inalterado desde 2015, enquanto o custo dos alunos da rede pública subiu 30%. E o CDS aproveitou a onda e retomou a defesa do cheque-ensino. Estas posições merecem apreciação.

Para que a comparação faça sentido, é importante perceber a estrutura dos respectivos custos, isto é, aquilo que o Estado paga e aquilo de que o privado não se ocupa.  O custo que o ministro atirou ao ar, levianamente porque não explicado, foi obtido dividindo o orçamento total da Educação pelo número de alunos. Mas nesse orçamento estão incluídas as despesas com um considerável número de professores pertencentes aos quadros do ME, mas que prestam serviço noutras instituições, com o descongelamento das carreiras, concretizado em 2018, com a Acção Social Escolar, designadamente milhares de refeições gratuitas, com as unidades de ensino estruturado, que se ocupam do ensino dos alunos cegos, surdos, autistas e demais necessidades educativas especiais, com as AEC, com manuais e computadores gratuitos, com o funcionamento dos serviços centrais e regionais do ME e com o financiamento de parte do próprio ensino particular (contratos de associação e de patrocínio e contratos com instituições particulares de solidariedade social).

Compreende-se agora por que o valor parece tão alto? E isto para não falar na queda demográfica (menos 160.000 alunos entre os anos lectivos de 2015/16 e 2019/20), que também o ajuda a explicar. E isto para não falar que, em percentagem do PIB, entre 2015 e 2020, o crescimento não é de 30%, mas de 17%. E isto para não falar que, no ano imediatamente anterior à pandemia, 2019, o esforço com a Educação foi 3,5% do PIB, o mais baixo desde 1987. Tudo, “detalhes”, que um ministro responsável deveria ter referido, antes de atirar números ao ar. 

Por outro lado, a retoma do discurso sobre a liberdade de escolha das escolas é uma subtileza para iludir o princípio da responsabilidade pública no que toca ao ensino. Porque, constitucionalmente, a escola pública é uma obrigação do Estado, enquanto a privada é uma liberdade dos particulares. O direito à Educação, que o Estado deve proteger, não cabe na lógica económica da simples prestação de serviços. A liberdade de escolha que o cheque-ensino proporcionaria não pode ser dissociada de variáveis que ultrapassam a questão ideológica e perverteriam de imediato o seu fundamento. Com efeito, 80% dos estabelecimentos de ensino privado situam-se nas grandes cidades e no litoral, nos concelhos com os maiores índices de desenvolvimento. Onde ficaria a liberdade de escolha fora dessas zonas?

O que ficou dito não contraria as apreciações, que considero justas, feitas a propósito da queda dos resultados do ensino público. O diagnóstico do IAVE, de Janeiro deste ano, concluiu que metade dos alunos dos 3º, 6º e 9º anos patenteavam dificuldades elementares a leitura, matemática e ciências e o TIMSS do ano passado confrontou-nos com a primeira regressão num percurso de melhorias desde 1995.

*Professor do ensino superior

 

15/09/2021

A responsabilidade de proteger não justifica a supressão das liberdades


Santana Castilho*

Com o pensamento em dois grandes portugueses, que nos deixaram ao mesmo tempo: Jorge Sampaio e Manuel Patrício.

Recordámos há quatro dias um 11 de Setembro, o do World Trade Center. Ficou esquecido um outro 11 de Setembro, o do Chile, de 1973.

O que Bush iniciou a 11 de Setembro de 2001 e outros continuaram, em nome do combate ao terrorismo, é um percurso que não serviu a paz, desprezou liberdades e democracia e ampliou o terror que inicialmente queria combater. Mostra a realidade que ao terror inorgânico se somou o terror de Estado, com milhões de mortos e refugiados e a legalização da violação de direitos humanos fundamentais. Mostra a realidade que a responsabilidade dos estados protegerem os seus cidadãos se exerceu trocando liberdade por aparente segurança e permitindo que os senhores da guerra se afirmassem, no campo político, como simples sugadores de fragilidades, usadas para controlar os recursos energéticos e as riquezas dos outros.

Muito do que sempre foi determinante para influenciar o comportamento das pessoas, e impor ideias hegemónicas idênticas às que serviram todos os projectos imperiais, resultou do aproveitamento das emoções causadas por fenómenos de impacto global. Para obstar a tal processo, a democracia precisa do empenho dos cidadãos por causas e as causas precisam de razões demonstradas. A ausência da demonstração da razão afasta o empenho, abre portas à debilidade da democracia e permite que ideias erradas se imponham, varrendo tudo o que resta de um estar geral abúlico. Porque mais do que as agressões ao nosso modo de viver, são os actos com que lhes respondemos que mudam o mundo.­

Interrogo-me continuadamente sobre se é o medo que gera a indiferença perante o racional ou se é essa indiferença que favorece a instalação do medo. Seja como for, vejo hoje muita indiferença e demasiado medo, particularmente no campo da saúde, onde é visível a utilização do pânico causado pela pandemia para retirar direitos e liberdades e reprimir, com a imprópria designação de negacionismo, tudo o que questione o discurso politicamente correcto, por mais fundamentados e cientificamente sérios que sejam os argumentos que se lhe opõem.

Há ano e meio que assisto à tomada de medidas por parte da maioria dos governos do mundo, que não logram obter os resultados que prometeram. Há ano e meio que assisto, em nome da emergência pandémica, a uma sucessão de medidas frequentemente contraditórias, ilógicas e ineficazes, limitadoras de direitos e liberdades, mas genericamente aceites pela sociedade como os crentes aceitam os dogmas das religiões. Há ano e meio que assisto à promoção de cientistas, pagos a ouro pela indústria farmacêutica, a uma espécie de sacerdotes infalíveis, enquanto outros, com créditos científicos bem mais sólidos e eticamente impolutos, são destratados como hereges e queimados na novel inquisição da opinião pública, vigiada e censurada. Dir-se-ia que à pandemia da covid-19 se juntou uma pandemia de fideísmo, que leva a maioria a acreditar agora em políticos que lhes mentiram toda a vida.

No regresso das nossas crianças às creches e à escola, e apesar de se ler na imprensa que 99% dos seus cuidadores estão vacinados, a Direcção- Geral da Saúde não foi sensível a vários estudos que identificam atrasos no desenvolvimento dos mais pequenos, atribuíveis à ausência da interacção fundamental com o rosto dos adultos, cobertos por máscaras.

Muitas das crianças que estão a ser violentadas na escola por regras sem sentido, serão enviadas para restauro muitas vezes ao longo da vida. Porque, embora não o manifestem de modo a que os adultos o entendam, mais do que nunca sentem-se assustadas na escola. Porque os perigos sanitários a que as poupamos são nada quando cotejados com os custos garantidos dos défices motores, mentais e emocionais que estamos a infligir ao seu desenvolvimento são. E não há vacinas que as protejam das chagas deixadas pela imobilidade forçada, pelos recreios livres suprimidos e pela habituação à inexpressividade de rostos mascarados dentro das quatro paredes das salas, onde passam a maior parte da vida que lhes estamos a roubar. Tantos constrangimentos e tantos isolamentos só podem fazer mal, mais mal do que aquele que evita uma escola tão protectora, mas tão pouco amigável.

*Professor do ensino superior

no Público, 15/9/2021

 

01/09/2021

A equação da saúde não se resolve proibindo o presunto

 


no Público

1 de Setembro de 2021

por Santana Castilho*

Entre 14 e 17 deste mês, todas as escolas deverão iniciar um ano lectivo que, esperamos, seja menos atribulado que os anteriores, permitindo concentração nos grandes problemas do sistema de ensino. Neste quadro, o Despacho n.º 8127/2021, que introduziu muitas restrições à venda de produtos alimentares pelos bares escolares, merece análise.

Embora assinada por um político que é linguista, a prosa do despacho é pobre e a construção frásica usada é descuidada. Por exemplo, o que serão “refrescos em pó”? Algumas proibições são questionáveis, mesmo no âmbito nutricional. Com efeito, estão no mesmo nível uma empada de carne, cozinhada no forno, ou um chocolate negro com baixo teor de açúcar, e snacks carregados de gorduras trans, sal e estabilizadores químicos. Será razoável? Por outro lado, importaria distinguir produtos cujo consumo habitual é desaconselhado mas que, sem risco de maior, podem ser consumidos uma ou outra vez, pelo prazer que lhes está associado, de outros produtos fortemente prejudiciais. Mas, acima de tudo, são a pedagogia e a política subjacentes que suscitam múltiplas perplexidades.

Nesta matéria, a proibição drástica não favorece a tomada de boas opções por parte dos alunos, particularmente quando se assume em confronto evidente com realidades paralelas, ali à mão: tudo o que é agora proibido vender na escola está autorizado e pode ser comprado em locais múltiplos, ao lado da escola. Antecipo que com estas orientações apodreçam a couve roxa ripada, as infusões de ervas e o requeijão nos bares das escolas e aumentem as vendas das bolas de Berlim e da coca-cola nos cafés da vizinhança. Estas medidas terão efeito nos alunos do escalão A da acção social. Os outros comprarão fora, pagando mais, o que a escola proíbe.

É crucial saber como comunicar com os jovens adolescentes para os levar a aderir a princípios, nutricionais ou outros. Em contexto pedagógico, boas intenções técnicas podem ser adulteradas por estratégias de actuação conducentes a resultados finais que se afastarão do desejado. Para perdurarem bons hábitos alimentares, o que é vital é proporcionar aos jovens um conhecimento sólido sobre a composição dos alimentos e as interacções que têm com a fisiologia humana. O grande problema não é banir na escola. O grande problema é educar na escola e na família, de modo a induzir comportamentos informados e saudáveis, que persistam vida fora e se transmitam de geração em geração. Parece-me irreal querer mudar paradigmas culturais alimentares pela proibição.

É redutor pensar que o comer mal radica na simples adesão à fast food. Muitas crianças comem mal porque em casa não há dinheiro para comer melhor ou não há mesmo dinheiro para comer, seja o que for. E dando de barato que as refeições servidas nos refeitórios escolares têm os valores nutricionais das tabelas, não é verdade que a sua qualidade deixa muito a desejar? Seria possível esperar mais de um preço médio por refeição que não chega aos dois euros e, mesmo assim, deixa apetecíveis lucros às empresas de catering? Não é verdade que os alunos que podem fogem dos refeitórios escolares? Que tal voltar às cozinheiras e à confecção das refeições na própria escola? É hipócrita o Governo decidir como decidiu e nada fazer quanto à qualidade da alimentação servida nos refeitórios.

A obesidade de crianças e jovens é um problema sério em Portugal, cujas causas não se esgotam na alimentação. À alimentação soma-se o menosprezo da Educação Física e desportos na escola e a crescente introdução precoce da parafernália informática na vida das crianças. Se houvesse uma preocupação genuína de combate à obesidade e ao sedentarismo das crianças, não as submetíamos a horários escolares que lhes roubam a juventude, obrigando-as a permanecer sentadas todo o dia dentro de uma sala de aula. E estudaríamos o modo de reorganizar a vida laboral dos pais, de forma a poderem acompanhar os filhos quanto a hábitos e comportamentos activos e saudáveis. O que temos é uma inversão de responsabilidades patrocinada pelo Estado: do mesmo passo, atribuem-se cada vez mais funções, que não lhe cabem, à Escola e desresponsabilizam-se os pais de obrigações primárias na educação dos filhos.

A equação da saúde não se resolve proibindo o presunto.

*Professor do ensino superior