- blogue de homenagem ao Professor Santana Castilho - uma retribuição (bem pequena) pelo muito que tem feito em defesa dos professores e da Escola Pública.
30/09/2020
O Medo
17/09/2020
O tribalismo e a cidadania
no Público
16/9/202
por Santana Castilho*
Quando tudo parece ter sido dito, é difícil voltar ao tema. Mas ficar calado poderia dar a ideia de que sou neutro. E não sou. Já vivi o suficiente para ver que o futuro das gerações jovens é manipulado por visões de grupos influentes, que actuam movidos por interesses minoritários. Por isso, acredito que viver supõe tomar partido e não ficar indiferente, em situações como aquela que agora se analisa. Não me proponho contraditar um ex-presidente da República, um ex-primeiro-ministro, o patriarca de Lisboa, bispos, imãs e políticos de renome. Proponho-me contraditar uma espécie de Inquisição nova, que ressuscita tribalismos antigos.
Olhemos para três dos argumentos mais usados:
- As políticas públicas de educação devem considerar o que os pais entendem que está certo ou errado para educar os seus filhos.
O unanimismo não é marca caracterizadora do currículo nacional. São inúmeras as vertentes em que as opiniões divergem. Assim sendo, segundo os defensores de tal ponto de vista, nenhuma disciplina devia ser obrigatória. Poder-se-ia organizar assim um sistema nacional de ensino?
Embora os pais tenham a tutela dos filhos até à sua emancipação, os filhos não são propriedade do Estado nem dos pais. Pais e filhos têm almas distintas e direito a formas de pensar e sentir diferentes.
Na escola laica da República há um currículo nacional que obriga a todos, meninos ou meninas em idade escolar, diferentes mas iguais. Naturalmente que poderemos discutir que autores são de leitura obrigatória num programa de Literatura ou discutir as narrativas oficiais do programa de História. Coisa diferente é aceitarmos que todos aqueles que não vejam os seus pontos de vista acolhidos tenham o direito a ver os filhos dispensados de frequentar determinadas disciplinas. Uma mãe que negue a existência do Holocausto não pode retirar o filho da frequência das aulas de História. Um pai criacionista não pode subtrair o filho ao estudo da teoria da evolução das espécies.
- Os pais têm direito de objecção de consciência relativamente à Cidadania e Desenvolvimento, porque abarca a educação sexual, competência exclusiva dos pais.
A objeção de consciência é um instituto jurídico de sociedades democráticas, invocável desde que não viole direitos de terceiros; invocável apenas pelo próprio e não por outros, em seu nome; invocável para matérias de complexidade extrema, que não para dirimir opiniões diferentes sobre conteúdos disciplinares.
A questão nuclear do dissenso é a educação sexual. Uns entendem-na como assunto a ser tratado na esfera familiar e outros como tema que deve ser abordado nas escolas. Não é fácil, nesta área, separar conteúdos ideológicos de matérias factuais. Mas importa registar que a objecção a que a educação sexual seja obrigatória é tardia, já que a lei que assim dispôs é de 2009.
- Cidadania e Desenvolvimento é uma disciplina de natureza ideológica.
A educação não pode, nem deve, ser absolutamente neutra. Como não pode, nem deve, ser doutrinária, senão naquilo que sejam as verdades cientificamente demonstradas. Mas não confundam os campos de análise para pedir que a axiologia seja substituída pelo álcool-gel da moda, asséptico e gelatinoso. Admito, até porque conheço casos, que houve abordagens inadequadas à idade e ao desenvolvimento psicológico dos alunos. Mas não os usem para corromper os propósitos formativos da disciplina. Não deve a escola abordar a violência doméstica, a sustentabilidade do planeta, a convivência democrática e o respeito por culturas diferentes da nossa? Ignoram os exorcistas da ideologia que toda a nossa vida em sociedade está obviamente marcada por escolhas ideológicas, a começar pela Constituição que nos rege?
Não deixa de ser curioso que os autores do manifesto com que se iniciou a polémica não se tenham distinguido anteriormente como críticos da evidente influência ideológica exercida pela igreja católica sobre ensino, ao longo dos tempos.
A cidadania é a alma colectiva que uma geração passa para a geração seguinte. Não visa impor o pensamento único mas tão-só conseguir que qualquer cidadão, concordando ou discordando, perceba e respeite o que o outro diz.
Se António Costa e Fernando Medina tivessem tido na escola a disciplina Cidadania e Desenvolvimento, talvez não se enlameassem hoje na comissão de honra de Luís Filipe Vieira.
*Professor do ensino superior
02/09/2020
Consequências carrascas
no Público
2 de Setembro de 2020
por Santana Castilho*
A opinião pública ocupou-se nos últimos dias com as críticas do primeiro-ministro à Ordem dos Médicos e com a sua visão restritiva sobre quem, numa democracia, pode ou não fiscalizar o Estado. Tudo a propósito do escabroso caso do lar de Reguengos, onde 18 pessoas morreram, abandonadas.
A mesma anomia cívica que permitiu Reguengos permite que, a poucos dias do início do ano lectivo, alunos, pais e professores saibam pouco sobre como ele irá decorrer. Aos solavancos, foi-se falando da logística da segurança sanitária. Mas das metodologias e dos recursos para fazer face à volatilidade da pandemia, pouco mais temos que recomendações didácticas ultrapassadas, previsíveis e limitantes, vertidas nas Orientações para a Recuperação e Consolidação das Aprendizagens ao Longo do Ano Lectivo de 2020/2021, 51 páginas de dilatação do ridículo e repositório de tratamentos infantilizados dos problemas que sobraram do ano anterior.
Há dias “pingou” que aulas em casa e condições especiais de avaliação serão opções para os alunos de risco, à semelhança do que se faz com os que sofrem de doença oncológica. Mas sendo os graus de risco muito variáveis, como se apressou a esclarecer a Ordem dos Médicos, era expectável que se conhecessem já normas mais específicas, designadamente uma lista das doenças crónicas que possam conferir a condição de aluno de risco. Aparentemente, a intenção é adaptar a estes alunos a portaria n.º 350-A/2017, que regula um regime especial de proteção aos jovens com doença oncológica e prevê, entre outras medidas, o apoio educativo individual no domicílio, pessoal ou através de meios informáticos de comunicação à distância. Diz a norma em apreço que a identificação da necessidade de medidas de apoio se efetua por iniciativa dos pais, dos serviços de saúde ou dos docentes, cabendo às escolas pô-las em prática, depois de cumpridas detalhadas formalidades de certificação e autorização. Neste quadro, não é aceitável que as autoridades da Educação e da Saúde não tenham, até hoje, conseguido estabelecer um quadro referencial preciso, que esclareça e tranquilize pais, professores e alunos, com as consequências carrascas que dessa falta possam advir.
Outra situação preocupante é a dos professores igualmente de risco, que a Fenprof disse serem 12000. Sobre eles já falou, salomonicamente, o secretário de Estado João Costa, sentenciando: “o trabalho dos professores é para fazer nas escolas; quem não estiver em condições de assumir o ensino presencial, que meta atestado e fique em casa”. Mas não nos disse que plano tem para a eventualidade de serem muitos, dos 12000 potenciais, a ficarem em casa. Preocupam-me as consequências carrascas que o adensar do problema pode deixar para os alunos. E preocupam-me as consequências carrascas de uma nova divisão na martirizada classe docente: é que já vi, com dor na alma, professores do público contra professores do privado, professores novos contra professores velhos e professores do quadro contra professores contratados; não gostaria de ver agora professores “sãos” contra professores doentes.
Em rigor, não se pode dizer que o Governo tenha um plano de respostas para contextos adversos, que vá além das regras triviais e, mesmo assim, “sempre que possível”. Mas pode-se dizer que, mais uma vez, a Educação lhe importou pouco.
Sobre o período que decorreu de Março passado até ao fim do ano escolar não se conhecem dados, que o Ministério da Educação deveria ter apurado, que permitam, com o rigor possível, medir a dimensão do prejuízo educativo para os alunos encerrados em casa. Apenas a Fenprof afirmou que mais de metade dos professores não conseguiu contactar os seus alunos nesse período.
Em matéria de Saúde, com cadência doentia, de hora a hora, sabemos todos os dias quantos novos infectados foram descobertos (ainda que não nos digam quantos deles estão realmente doentes), quantos estão internados, quantos estão entubados e quantos morreram. Abundam gráficos e charlas de especialistas e comentadores políticos sobre a descida dos indicadores económicos de toda a ordem e sobre a subida do desemprego em todas as áreas. Mas sobre Educação, só temos os miraculosos resultados dos exames, torpemente manipulados para dizer que já ficou tudo bem. Serão carrascas as consequências desta forma de fazer política.
*Professor do ensino superior