27/10/2021

Uma democracia de mercado


no Público

27/10/2021

por Santana Castilho*

 

1. Decide-se hoje, pelo menos formalmente, o destino do OE. O cenário oferecido aos servos fiscais, a que chamam cidadãos, resume-se assim: governo e oposição, imprestáveis para empreender reformas sérias, digladiam-se numa romaria orçamental, com tácticas casuísticas e o mesmo objectivo estratégico: ter poder para, numa democracia de mercado, repartir benefícios pelos prosélitos mais próximos; um Estado tentacular, aprisionado por esta lógica e por escritórios de advogados, que assiste impávido à degradação da provisão pública dos serviços de saúde, educação e justiça; um presidente que, em nome da estabilidade podre que o obceca, nos sopra liminarmente, a cada passo, a velha máxima de Thatcher: there is no alternative.

São evidentes os sinais do autoritarismo monolítico de António Costa, cada vez mais fixado na afirmação do seu poder e na imposição de ideias de controlo e supervisão da sociedade. Conseguirá ele, no último minuto, fazer aprovar mais um OE? Créditos de flexibilidade de cintura, não lhe faltam. Entre outros, basta que recordemos o sorriso cínico com que deu a volta ao resultado das eleições que perdeu, ante um político que vinha de quatro anos de distribuição de miséria pelo país; a facilidade com que, depois de considerar o Bloco de Esquerda uma “inutilidade total”, o utilizou para ser poder; a volatilidade que usou para passar do eurocepticismo (saudou a eleição de Tsipras como um sinal de mudança na Europa) para o federalismo (quando lhe foi conveniente, alinhou rápido com as propostas de Macron); a ligeireza com que, depois de perorar na oposição contra “os falcões de Berlim”, bajulou, no governo, a senhora Merkel.

Ou estará antes no papel de escorpião, pronto para ferrar de morte o OE, porque não resiste ao chamamento para presidente do Conselho da Europa, em Julho de 2022? É que, como bem lembrou Ana Gomes, tem e recusa a solução: acabar com a caducidade da contratação colectiva.  

2. De passo síncrono com a diminuição da natalidade e o envelhecimento da população, acentuou-se em Portugal o abismo entre o litoral, sobrepovoado, e o interior, desertificado; enveredámos por um desenvolvimento agrícola de monoculturas intensivas, que depauperam solos e reservas de água; continuamos um país desindustrializado, fortemente dependente da importação de bens, a que outros acrescentaram valor; regredimos nos resultados da Educação; assistimos à degradação continuada da Justiça; numa palavra, permitimos, mansos, a imposição de um colete-de-forças ideológico em múltiplas áreas da vida colectiva.

Muitos, respeitáveis, dizem que não há racismo em Portugal. Detenham-se nos comentários que pululam nas redes sociais. Encontrarão, mais do que racismo, ódio. Ódio profundo dirigido ao outro, seja branco, preto ou amarelo, estigmatizando todos pelos comportamentos de alguns. Demasiados oprimidos, aí, odeiam mais o outro que o opressor e mostram-se inaptos, sequer, para identificar quem os faz pobres e oprimidos. Muitos deles, sem se darem conta, porque alienados, viram simples colaboracionistas, quando assumem as mesmíssimas práticas e dialéticas que julgam estar a combater. De alma profundamente dorida, vejo isso, até, nas caixas de comentários dos professores.

À medida que envelheço, os problemas que não podem ser solucionados cientificamente, mas que são fundacionais de uma visão personalista da vida, vão ocupando o meu espaço reflexivo em detrimento daqueles que resolvo com o conhecimento acumulado. Assim, quando olho para a corrente política que procura dominar o ensino, sinto-me em sentido contrário: eles fixados nas competências, que resolvem problemas (do sistema económico); eu preocupado com os modos diferentes de ver o mundo (para que cada um o entenda).

A pressão que o utilitarismo e o consumismo, as medidas e os números exercem sobre os que pensam é tal, que muitos acabam desistindo da Filosofia, da História e da Literatura e aceitam acriticamente o império da Estatística.

Oxalá esta crise pudesse, pelo menos, despertar políticos e pedagogos para a necessidade de produzir pensamento sobre processos de melhorar a qualidade de vida das populações, recuperando o equilíbrio entre as prerrogativas do Estado e as liberdades fundamentais dos cidadãos.

*Professor do ensino superior

 

14/10/2021

Retorno ao livro único e nacionalização das crianças de três anos?


no Público

13 de Outubro de 2021

por Santana Castilho

 

O homem que apoiou a criação de estruturas salazaristas de controlo do pensamento e da informação e iniciativas de supervisão moral da sociedade teve a deselegância de dizer a um deputado que não o autorizava a fazer juízos morais a seu respeito, porque o deputado não o conhecia de lado nenhum. O feudalismo deste raciocínio indigna qualquer cidadão livre e torna necessário lembrar a António Costa que toda a gente o conhece, e demasiadas vezes pelas piores razões.

António Costa reagiu à intervenção de Coelho Lima com a arrogância de quem não tolera que o contestem. Com a irritabilidade à flor da pele, tentou mostrar que, a quem manda, não se fazem perguntas incómodas. Porque não preciso da autorização dele para o considerar empenhado em impor chavões ideológicos sem fundamentação, endereço-lhe as perguntas em título e passo aos argumentos que as sustentam.

1. O Plano de Recuperação e Resiliência prevê gastar 73,5 milhões de euros para produzir recursos educativos digitais para todas as disciplinas do básico e secundário. Sucede que esses recursos já existem, para a maioria delas. É o que se retira da execução do Projeto-Piloto de Desmaterialização de Manuais Escolares (24 instituições, 187 turmas e 3755 alunos), coordenado pela Direção-Geral da Educação, com forte envolvimento dos grupos editoriais que, de há muito, vêm produzindo manuais e outros recursos digitais, de reconhecida qualidade. Com efeito, no quadro da monitorização do programa, designadamente na experiência que o próprio ME promoveu em nove escolas, em 2020/21, com manuais digitais já existentes, não vi reportada qualquer falta de recursos, que não a falta de meios informáticos (computadores e acesso à Net). Acresce que a Região Autónoma da Madeira já vai no terceiro ano de utilização total de manuais digitais (todos os alunos do 5º ano em 2019/20, todos os do 5º e 6º em 2020/21 e todos os do 5º, 6º e 7º anos em 2021/22) e também não identificou qualquer falta de recursos, assim como vários colégios com uso 100% digital. Qual é a ideia? Secar a edição privada e impor uma plataforma única, do Estado?

2. O Governo anunciou a intenção de tornar obrigatória a escolaridade a partir dos três anos. Se a medida colher, estaremos a estender ao pré- escolar o seu desígnio para a escola pública: ser um simples depósito de alunos durante o tempo de trabalho dos pais. Se a medida colher, estaremos a implodir a natureza intrínseca do pré-escolar, porque o sistema cederá, definitivamente, à pressão que já se verifica para antecipar aprendizagens formais, reguladas e tipificadas. Ora o aspecto mais importante da educação pré-escolar não é a preparação das crianças para os programas de ensino que as esperam no básico. É antes um tempo e um espaço para crescerem naturalmente, brincando, adquirirem capacidades neuro-motoras e sociais, envolvendo-se em actividades sensoriais, reguladoras de emoções, tanto mais relevantes quanto cada vez é mais escasso o tempo em que interagem com a respectiva família. Essas capacidades têm um valor intrínseco, por si só e para tudo o que virão a ser as crianças, bem mais importante que qualquer intencionalidade preparatória do ensino formal.

É desejável criar condições para que as cerca de 18 mil crianças, que estão fora do pré-escolar, o possam integrar? Obviamente que sim. Mas sem tornar isso obrigatório e com fundamento pedagógico, que não por razões assistencialistas.

Combate-se a pobreza apoiando as famílias, mas não retirando coercivamente os filhos às famílias. Dito de outro modo: o combate à pobreza e o apoio às famílias e à natalidade são vitais e necessários. Mas o direito das crianças ao desenvolvimento próprio de cada fase do seu crescimento não pode ser subalternizado em nome desse combate e desses apoios. As famílias devem ter a última palavra sobre os cuidados que preferem (ou podem) dar aos filhos. O Estado deve criar os recursos para acolher todos os que não permanecerem no seio da família. E, neste caso, falamos de todos, que não apenas a partir dos três anos. Ou estamos a fingir que ignoramos a insuficiência da rede pública de creches, situação dramática para os pais que trabalham e não podem pagar o acolhimento dos filhos na rede privada?

*Professor do ensino superior