19/07/2023

Uma carcaça em decomposição

Uma carcaça em decomposição
Brevemente, teremos António Costa a transformar uma carcaça em decomposição numa educação e numa escola pública que não existem. Antecipo-me ao contraditório a propósito do debate sobre o Estado da Nação para deixar aqui factos recentes, que degradaram ainda mais o sistema de ensino.
 
Já são cinco os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa que decretaram ilegais os serviços mínimos com que o ministro da Educação anulou as greves dos professores. Numa administração pública decente, este acontecimento teria consequências. Mas, na piolheira em que se movem, ministro e directores colaboracionistas não mexeram uma palha para anular, no mínimo ainda possível, as injustiças que cometeram. São as vítimas que têm de porfiar pela retirada das faltas injustificadas e pelo arquivamento dos processos disciplinares instaurados. 
 
Um projecto de decreto-lei volta a baixar as habilitações necessárias para se ser professor, ainda que só nos casos de contratação pelas escolas. Assim, o mínimo exigível aos licenciados pós-Bolonha para dar aulas de Matemática, História, Filosofia, Geografia, Matemática, e Informática baixa de 120 para 90 créditos ECTS (Sistema Europeu de Transferência e Acumulação de Créditos). Recordo que uma licenciatura corresponde a 180 ECTS. Em vez de aumentar os incentivos para fazer retornar à docência milhares de professores que a abandonaram, apesar de terem habilitação profissional completa, o Governo escolheu a via mais fácil: desqualificou a profissão, reduzindo os requisitos. 
 
A Portaria 190-A/2023 expressa a visão do Governo relativamente à primeira infância: as creches vão poder funcionar noites adentro, ao fim-de-semana, com mais duas crianças por sala, nas salas destinadas a crianças até aos dois anos, e … em contentores. Sim, leu bem: em contentores. “Melhorar a conciliação entre trabalho, vida pessoal e familiar”, “garantir igualdade de oportunidades no trabalho entre mulheres e homens” e fixar que “o horário de funcionamento da creche deve ser o adequado às necessidades dos pais ou de quem exerça as responsabilidades parentais” são nacos de prosa, citados do texto da portaria, que exprimem bem a preocupação do Governo: tudo dispor para que a “produtividade” do “capital humano” não seja perturbada. Qualquer referência aos direitos das crianças, começando pela perniciosa prática de passarem os primeiros anos de vida entregues a cuidadores outros que não os pais naturais, uma simples menção a uma intencionalidade política de ampliar direitos de maternidade e de paternidade, reduzindo, por exemplo, o tempo de trabalho dos progenitores, ou de reforçar o número de trabalhadores, como resposta ao aumento do número de crianças por sala, estão olimpicamente excluídas do texto legal. As escassas palavras que se referem às crianças, porque acompanhadas de decisões visando apenas a protecção do trabalho, são pura hipocrisia.
 
A inclusão de um razoável número de perguntas de escolha múltipla na prova de Português do 9º ano e no exame do secundário não deve passar sem reparo. Um teste de escolha múltipla pode medir com rigor. Mas perguntas desgarradas não irão além da lógica do Totoloto e da “raspadinha”. Um teste de escolha múltipla bem construído supõe uma bateria de perguntas, que interagem e se validam ou invalidam em cascata. Não é um jogo de azar. Mas um teste de escolha múltipla, muito menos perguntas avulso e desconexas, será sempre impróprio para verificar se um aluno é capaz de exprimir uma ideia original, reproduzir de forma compreensível as ideias dos outros e usar com correcção o código de escrita, falemos de ortografia, sintaxe ou semântica. Admitir que a grandeza da nossa língua possa ser espartilhada por jogos de azar é um triste e redondo disparate. Maior ainda quando o primeiro responsável é catedrático de Linguística.
 
Na prova final de Matemática do 9º ano, numa escala em que o valor mínimo é 0% de respostas certas e o máximo é 100%, a média nacional ficou-se nos 43%, cifra que expressa uma regressão aos indicadores de há dez anos. Não chegaram ao limiar do nível positivo 58% dos alunos. Num universo de 94500 provas realizadas no continente, 9527 alunos obtiveram resultados situados no intervalo 0 a 10%. Houve 3131 alunos que não acertaram uma só resposta. Em resumo, um fracasso que nenhuma justificação pode esconder.
 
In "Público de 19.7.23

 

05/07/2023

Vamos continuar assim?

no Público

5 de Julho de 2023

por Santana Castilho*

 

O ano letivo que terminou foi tudo menos normal no que toca às aprendizagens que ficaram para trás. Os alunos mais penalizados pela turbulência que o caracterizou são os mesmos que pouco ou nada aprenderam durante os anos de pandemia, aqueles cujo futuro depende em exclusivo do que a escola pública lhes possa dar. E sem pôr fim ao conflito entre os professores e o ministro da Educação não haverá paz no próximo ano letivo, muito menos educação para todos.

A pandemia, a perda de aulas por falta de professores e a irregularidade de funcionamento trazida à escola pelos conflitos laborais, face mais visível das desastrosas políticas de Educação em curso, fizeram crescer o mercado das explicações, de que resultou um acentuado aumento das persistentes desigualdades de oportunidades entre alunos. Segundo disse à Renascença o presidente do Conselho Nacional de Educação, cerca de 200 mil estudantes, isto é, metade dos alunos do ensino secundário em Portugal, têm explicações, cujos custos, naturalmente, são suportados pelas famílias. Vamos continuar assim?

Nos últimos dias foi notícia uma decisão que nos deveria fazer reflectir: o governo sueco, que há 15 anos iniciou um processo de digitalização da educação, vai regressar ao ensino baseado em livros de papel. Os meios tradicionais de ensino vão substituir os ecrãs e os quadros digitais. Motivo? A acentuada diminuição das capacidades de leitura, escrita e expressão das crianças suecas, que o contacto demasiado precoce com a digitalização provocou.

A introdução das tecnologias informáticas nas escolas deve ser progressiva e nunca alheia à produção científica das neurociências, quanto às suas influências no desenvolvimento neuronal dos alunos dos primeiros anos de escolaridade.

Entre nós, a imbecilização das práticas pedagógicas, com destaque para a digitalização da educação, feita à bruta e precipitadamente, está a transformar os nossos jovens em seres cada vez menos pensantes e reflexivos, em simples sorvedores passivos e acríticos de tudo aquilo que os ecrãs lhes apresentam. Claro que o fenómeno tem responsáveis adultos: pais e professores comodistas, manipulados por uma legião de promotores de ideologias perniciosas, apresentadas como pedagogias modernas. Vamos continuar assim?

É urgente que a denominada sociedade civil desperte para o sombrio que mancha a paisagem humana das nossas escolas: preocupantes sinais de violência na relação entre alunos e no seu relacionamento com professores e funcionários; esgotamento físico e psíquico do corpo docente, vergado pelo grotesco burocrático de tarefas inúteis; êxodo precoce dos professores mais experientes; clima de luta insana por uma carreira sem futuro, donde se esvaíram a cooperação e a confiança que cimentavam a comunidade humana dos docentes; uma organização curricular que confunde um quadro de formação global, pacificamente aceite pelo senso pedagógico comum como determinante para as restantes aprendizagens, com as chamadas “aprendizagens essenciais”, que querem equiparar o que não é equiparável, em sede de currículo. Vamos continuar assim?

 

Desde Dezembro que o S.TO.P. não faz outra coisa que não seja convocar greves por tempo indeterminado, com resultados praticamente nulos e nenhuma mobilização crescente visível, que apenas contribuíram para vulgarizar, banalizar e descaracterizar um instrumento sério de luta dos trabalhadores. Agora, decretou mais uma greve às avaliações, até 15 de Julho. No quadro político que todos conhecemos, designadamente o impacto dos serviços mínimos vigentes, espera o S.TO.P., realisticamente, que a sua iniciativa tenha algum resultado prático? Aliás, por que razão nunca o S.TO.P. apresentou à opinião pública o número dos grevistas que conseguiu mobilizar, referidos a termos circunstanciais precisos?

De uma relevância inicial, galvanizadora de vontades e disponibilidades, o S.TO.P. rapidamente passou a alinhar com as mesmas rotinas que sempre criticou nas outras organizações sindicais, a denegar na actuação o que propalou na retórica promocional, numa palavra, a deixar que a seriedade (se alguma vez a teve) desse lugar ao habitual folclore protestativo, que não dignifica a classe. A desilusão a que o S.TO.P. me conduziu teve o tamanho da ilusão que inicialmente me provocou. Vamos continuar assim?

*Professor do ensino superior