24/09/2014

O absurdo de um matemático de ética trôpega

no Público,
24 Setembro de 2014

por Santana Castilho *

O absurdo de um matemático de ética trôpega



Na véspera da data fixada para o início do ano lectivo faltavam nas escolas cerca de 3.500 professores. Estes docentes podiam e deviam ter sido colocados a tempo de participarem nos trabalhos preparatórios do ano que se ia iniciar. Mas assim não foi, por incúria do Ministério da Educação e Ciência. Na mesma altura começou, reiteradamente, a ser denunciado o erro que está na origem da ordenação dos docentes que concorreram à Bolsa de Contratação de Escola, processo através do qual os estabelecimentos de ensino com contratos de autonomia ou estatuto TEIP (Território Educativo de Intervenção Prioritária) poderiam contratar os professores em falta. A ordenação em causa foi feita através da média aritmética obtida pela consideração de duas notações ponderadas: a classificação profissional dos candidatos e a sua avaliação curricular. Só que o ministério cometeu um erro básico, inaceitável, daqueles que nenhuma contrição, por mais beata ou pública que seja, lava: somou, sem prévia conversão a uma mesma escala, duas grandezas expressas em escalas bem diferentes. Assim como se, no altar do absurdo, um aluno bronco somasse velocidade com toucinho e apresentasse o resultado em farófias. Mas este é, tão-só, o aspecto mais gritante de um conjunto de outros que atropelam a lei ou expõem a imbecilidade de quem os permitiu. Alguns exemplos, para fundamentar: três professores colocados na mesma escola para preencherem um lugar que nunca foi manifestado; professores do quadro retirados do concurso de mobilidade interna, sabe-se lá por quem, que agora não têm vínculo a escola alguma; ignorância discricionária de pedidos de renovação de contratos; cursos de curtíssima duração e duvidosa qualidade que podem valer mais que décadas de experiência lectiva; fórmulas e subcritérios subtraídos ao conhecimento de quem concorre; contactos feitos ao sábado e domingo à noite, para telefones pessoais de directores, com ultimatos para que fornecessem, num prazo de duas horas, dados de que poderia depender a vida profissional de milhares de professores. 
Com professores, directores e escolas em polvorosa e abundantes protestos públicos de pais e autarcas, o país testemunhou um ministro em negação, autocontente e ufano por ter um ano a “arrancar com normalidade”, aparentemente inconsciente ante o desastre e doentiamente alheio ao desrespeito, que personificou, pelos cidadãos, particularmente pelos muitos professores desempregados, cuja vida gratuitamente destroçou. Este ministro, na noite anterior ao cínico pedido de desculpa, ainda negava o erro. Este ministro ignorou os pareceres da Associação de Professores de Matemática e da Sociedade Portuguesa de Matemática, a que outrora presidiu e usou para criticar o que agora faz, que classificaram o processo como opaco, ilegal e injusto. Este ministro só afivelou um ar sofrido para reconhecer o erro que todos já tinham visto quando no parlamento, depois de tentar resistir, acabou vergado à pressão justa de alguns deputados. Merece crédito? Merece que aceitemos a sua desculpa? Não! Porque no momento em que a pediu, a ética trôpega por que se pauta borrou irrecuperavelmente o que já era pífio: “ Estão a assistir a uma coisa que não é comum na História, que é um ministro chegar ao parlamento e reconhecer a responsabilidade por uma não compatibilidade de escalas e um ministro assumir que o assunto vai ser corrigido”, disse, sem se enxergar, sem a mínima noção de que o maquiavelismo bacoco que acabava de usar afastaria qualquer resíduo de tolerância por parte dos que o ouviam. Valesse a moral, emergisse uma réstia de ética do pântano em que esbraceja e já teria cruzado a porta pequena de saída de um mandato de vergonha, que só acrescentou novos problemas aos velhos, já resolvidos, por ele recuperados em retrocesso inimaginável.

Que resta, depois disto? Reparar o possível. Mas o que chega não favorece o prognóstico. O secretário de Estado Casanova de Almeida reitera o que Crato disse, isto é, que nenhum dos professores beneficiados pelo erro será prejudicado. Ora a questão é bem mais que deixar no lugar quem já lá está, juntando outro, que devia estar. Trata-se de um erro sistemático, que origina injustiças em cascata. Não é um mais outro. São muitos mais pelo meio e a projecção que qualquer colocação indevida tem nas posições relativas de concursos futuros. E insistem os governantes em desvalorizar o problema porque, dizem, afecta 1% dos professores de que as escolas necessitam. Persistem pois num dolo de comunicação e na má-fé. Porque escondem que falamos de um universo de 40.000 professores e um terço de todas as escolas do país. Sejam politicamente honestos, por uma vez: anulem o concurso e partam do zero, publicando novas listas, que respeitem a lei e a matemática elementar; promovam a divulgação, por grupo de recrutamento, escola a escola, dos subcritérios utilizados; prevejam a possibilidade de corrigir candidaturas, porque ficam conhecidas variáveis que antes foram omitidas. É demorado? Então usem como critério único a graduação profissional dos candidatos. Mudem a disposição legal que o impede, como tantas vezes já fizerem para fins bem menos justificados. 

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

10/09/2014

O Estado Novo e o estado a que isto chegou

no Público,
10 de Setembro de 2014

por Santana Castilho *

O Estado Novo e o estado a que isto chegou 

Pese tudo o que de mau os mais velhos viveram sob as políticas do Estado Novo, é inegável que até ele, Estado Novo, percebeu que era imperioso melhorar as fronteiras deploráveis do analfabetismo de então. Porque, até ele, Estado Novo, aceitou como inevitável o papel que a Educação tem no progresso humano. 

Stiglitz, Nobel da Economia de 2001, foi peremptório quando afirmou que a Educação é vital para o êxito das sociedades e que cortar em Educação é agravar as desigualdades sociais (O Preço da Desigualdade, Bertrand, 2013). Vai iniciar-se o ano-lectivo de 2014-15. Teremos (já estamos a ter) um desfile banal dos mesmíssimos problemas de processo e de vergonha, que dissimulará uma verdade tão inconveniente como indesmentível: em três anos deste Governo, a Educação regrediu como nunca aconteceu, mesmo em pleno Estado Novo. 

As famílias portuguesas, esmagadas com um empobrecimento executado com tanta desumanidade quanta a ignorância que o decidiu, (é ver o reconhecimento do erro que começa a ganhar eco no seio dos meios de decisão europeia) viram o esforço com o custo da educação dos filhos subir exponencialmente, na razão inversa da redução do esforço do Estado. E isso irá esmagá-las ainda mais quando os filhos que abandonaram os cursos de formação superior entrarem no difícil e fechado mercado de trabalho. Porquê? Porque na faixa etária dos 25 aos 34 anos, tomando por referência o salário médio de quem tem formação secundária, se verifica que um activo empregado apenas com o ensino básico tem um salário médio 25% mais baixo, enquanto o salário médio dos trabalhadores com licenciatura é 46,3% mais alto (Education at a Glance 2013, OCDE). 

A discussão que antecipou a recente aprovação de mais um orçamento rectificativo permitiu percebermos que, enquanto o Estado foi recordista a arrecadar receita proveniente de impostos, voltou a crescer a sua despesa primária (expressa antes de juros de dívida ou medidas extraordinárias). Mas, no mundo da Educação e da Ciência, impressiona a regularidade e a persistência implacável dos cortes. Traduzidos em termos reais, os números relativos aos orçamentos de Estado de 2012, 2013 e 2014 demonstram que este governo retirou 1.751,6 milhões de euros ao financiamento do ensino pré-escolar, básico e secundário (- 25,7%) e 401,2 milhões de euros ao financiamento do ensino superior e ciência (-16,1%). Se apertarmos a malha da análise e descermos às acções que particularizam os gastos, percebemos melhor o desrespeito com que o Governo trata os cidadãos: a educação especial, onde se incluem as crianças portadoras de deficiências, reduziu 15.3%; a educação e formação de adultos, 38,6%; os complementos educativos, no sector não superior, 47,6%; os serviços de apoio no ensino superior, 68,8%. 

Não são precisos altos recursos intelectuais ou capacidade especial para decifrar a linguagem hermética dos relatórios das contas públicas para percebermos de que é feito o coração de quem governa. É uma evidência que esta forma de tratar a Educação, junta à chaga do desemprego, está a gerar um gravíssimo desenquadramento social dos mais débeis, infelizmente a maioria dos portugueses, depois do varrimento selectivo da classe média. Até o Estado Novo, repito, compreendeu o papel social da Educação, quando a ruptura o começou a ameaçar. Marcello Caetano chamou Veiga Simão, um homem de rasgo. Passos Coelho foi buscar Nuno Crato, uma coisa de trago. Marcello Caetano tentou abrir o futuro. Passos Coelho fechou-o. A Constituição assumiu a universalidade do ensino como veículo fundamental da criação de um Estado moderno. Passos só não derrogou essa universalidade porque existe um Tribunal Constitucional. Mas Crato encarregou-se de a iludir por via administrativa e financeira. 

Por mais que os jihadistas do neoliberalismo tenham, durante os últimos três anos, tentado convencer os portugueses de que a direcção e intervenção do Estado nos sectores vitais da vida em sociedade trava a liberdade, mostram os factos da história deste curto período que não há desenvolvimento social quando a política caminha nesse sentido. Foi essa orientação que trouxe a escola pública para onde está no início de mais um ano-lectivo: alvo de descredibilização sistematicamente programada, vítima de uma ignóbil estigmatização da profissão de professor. Tudo orquestrado e executado por quem, constitucionalmente, devia defender e promover uma e outros. 

Está tudo a postos para o início de mais um ano em escolas de dimensão infra-humana, que se assemelham cada vez mais a cadeias de montagem: pedagogia vergada à econometria, arautos de estatísticas hipócritas nos comandos, burocratas de interesses privados mercantilizando o ensino, governantes ensimesmados em delírios de sucesso e de infantilização eterna. 

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)