22/01/2020

Assim vamos

Santana Castilho·
22 de janeiro de 2020


1. O ministro da Educação esteve mais de cinco horas no Parlamento, qual louvaminhas de vacuidades, a defender "o mais robusto" orçamento que já apresentou. Em síntese, diz o Governo que vai rever o modelo de recrutamento de professores, estudar a hipótese de substituir aulas por outras actividades para os que tenham mais de 60 anos, considerar a criação de incentivos para determinados grupos de recrutamento, alargar ao 2.º ciclo do ensino básico a malfadada “escola a tempo inteiro”, rever a portaria de rácios funcionários/alunos e promover uma nova geração de “contratos locais de segurança”.

O que se pode dizer sobre o orçamento para a Educação varia segundo o que tomarmos por comparação. O seu valor tem aumentado ano após ano do governo PS, depois de uma década em que foi reduzido em 12%? Sim, mas ainda está aquém da expressão que tinha antes da troika e, por referência ao PIB, os três últimos orçamentos são os piores desde que aderimos ao euro. Admitiram-se cerca de 5500 novos funcionários? Sim! Mas esses devem ser comparados com os 24000 que saíram de 2011 a 2015.

Da lista vasta de promessas não cumpridas pelo governo do PS, este orçamento retoma a universalização da educação pré-escolar a partir dos três anos. Porém, pelo andar das negociações, não me surpreenderá que medidas protectoras de cães e gatos se sobreponham a medidas protectoras de crianças que teimam em não nascer.


2. Agora, aulas de português podem ser dadas por professores de inglês, francês, alemão ou espanhol, de geografia por professores de história e de informática não importa por quem, desde que tenha frequentado uma qualquer acção de formação sobre a matéria. Ora o problema não se resolve com uma “nota” manifestamente ilegal e desqualificante da classe e da escola pública. Em vez de criarem condições para que profissionais com habilitação (que os há) aceitem os lugares vagos, os responsáveis puxaram pela cabeça e actuaram segundo a ideologia grunha para a Educação do século XXI (que todos passem sabendo o que souberem, desde que a escola os guarde a tempo inteiro, para que os pais trabalhem cada vez mais, ganhando cada vez menos).


3. A imprensa afanou-se a noticiar que 45000 docentes foram promovidos em 2019 e que mais de 6000 atingiram o topo da carreira, graças ao milagre do descongelamento e recuperação de tempo de serviço. Providencial ênfase dada a promoções que, tivesse a lei vigente sido aplicada, se deveriam ter verificado em 2011, mas servem agora para branquear a provocação de uma proposta de aumentos de 0,3%, para salários estagnados há 10 anos.


4. António Lacerda, secretário de Estado da Saúde, receitou chá e bolos para combater os agressores dos médicos. Do entender meloso do governante depreende-se mesmo que se as paredes das salas de espera dos hospitais forem pintadas de rosa, talvez se diluam os níveis de tensão. Razão tem o governante para reflectir com tamanha profundidade, porque professores, médicos, enfermeiros e assistentes operacionais viraram sacos de pancada de agressores que ficam livres, com simples termo de identidade e residência. Entretanto, a mulher que agrediu uma procuradora e uma juíza foi imediatamente presa e assim continuará até ser julgada. Será que este exemplo passará a servir de modelo para situações similares de outros exercícios profissionais? Será que a mão pesada que se ergueu para proteger a integridade física de juízes e procuradores passará a proteger o ventre das professoras grávidas agredidas no seu local de trabalho?


5. Na reabertura da oficina da Comboios de Portugal, António Costa disse ter o sonho de passarmos a fazer parte do clube dos produtores de comboios e que, para tal, o país tem de ser “persistente e não voltar a cometer erros que no passado foram cometidos”. Ao sonho, o primeiro-ministro parece ter acrescentado o remorso, que poderia ter explicitado melhor. É que a Sorefame foi totalmente extinta em 2001, era António Costa ministro no Governo de António Guterres. Para os mais novos, recordo que a Sorefame foi uma das maiores empresas portuguesas que, há mais de 40 anos, nos fez entrar no clube dos construtores de comboios.

In Público de 22.1.20

https://www.facebook.com/notes/santana-castilho/assim-vamos/2899396930110599/

08/01/2020

O presidente do Camões espirrou. Santinho!

Ao abrigo da Lei da Imprensa, o presidente do Camões, que é também diplomata de carreira, escreveu ao director do Público acusando-me de “incorrecções e deturpações”, a propósito do meu artigo sobre o ensino do português no estrangeiro. Ficam as sete “correcções” do presidente e as minhas respostas. Porém, antes de passar à substância da questão, declaro que esta disputa epistolar acaba aqui, porque não estou disponível para polemizar com pessoas que falam do que não sabem, só por terem papel timbrado à mão.
1. Sobre a dimensão da rede.
No Despacho n.º 6859/2019 constam, precisamente como referi no artigo, os 277 professores que trabalham na Europa. Se lhes somarmos os 24, igualmente considerados no meu artigo, que lecionam na África do Sul, Namíbia e Suazilândia, teremos 301. Mas o presidente do Camões veio dizer que são 317. Porquê? Porque, atropelando a norma de só serem contabilizados para o efeito horários completos, contou mais 16 horários incompletos.
2. Sobre a aplicação da taxa apenas ao “ensino paralelo” e os acordos bilaterais.
No artigo, eu escrevi que o processo de cobrança é iníquo porque, se os filhos dos emigrantes têm as aulas em conjunto com alunos dos países de acolhimento, ficam isentos. Onde está a incorrecção que o presidente do Camões viu? Ele diz o mesmo que eu digo. Eu sou claro. Ele complica. Entendamo-nos:
Há situações em que as aulas integram alunos estrangeiros que querem aprender português e alunos portugueses emigrados (ensino integrado ou complementar). São cursos integrados nos horários de escolas públicas dos respectivos países, que interditam qualquer tipo de pagamento por parte dos pais. Quando a propina foi criada, o Camões tentou cobrá-la a estes alunos portugueses emigrados. Só que as autoridades escolares locais reagiram, dizendo que se Portugal fizesse isso teria de prescindir das salas disponibilizadas gratuitamente pelos estados de acolhimento. O anterior secretário de Estado, José Cesário, chegou a afirmar que a propina seria para todos, mesmo que acabassem os acordos bilaterais. Mas não acabaram. Foi então que se criou a iniquidade que denunciei no artigo. Com efeito, em todas as outras situações, em que o cenário descrito não se verifica e os filhos dos emigrantes têm as suas aulas de modo isolado (ensino designado por “ensino paralelo”), Portugal cobra uma taxa por aluno. Termos em que tudo o que escrevi está certo e o presidente do Camões apenas o confirmou, acrescentando ruído.
3. Sobre as reduções das taxas e a inclusão de um manual.
Mais uma vez o presidente do Camões confirma o que escrevi, quando disse ter sido instituída a obrigatoriedade de os emigrantes pagarem 100 euros anuais, para os filhos fruírem do direito constitucional de aprenderem português como língua materna. Não há incorrecção ou deturpação. Eventuais reduções não derrogam a obrigatoriedade. Juntar um manual escolar, um saquinho de gomas ou um pindo Ronaldo, não alteraria a substância do que afirmo: foi instituída uma taxa de 100 euros, vergonhosa e inconstitucional.
4. Sobre a garantia de nenhum aluno ter sido expulso na Suíça por falta de pagamento da taxa.
Tenho em meu poder a ordem escrita dada na Suíça: até ao fim do ano civil de 2019, os encarregados de educação tinham de fazer prova do pagamento ou os filhos seriam expulsos das aulas depois das férias. Escreveu o presidente do Camões, a 2 de Janeiro, que nenhum aluno foi expulso de um curso na Suíça. Ou escreveu com má-fé (se a data limite para fazer prova era 31 de Dezembro e os alunos estavam ainda em férias a 2 de Janeiro, não poderia ter efeito a ordem, senão no regresso às aulas, como está expresso no documento) ou ignora o que determinaram os serviços que tutela.
5. Sobre a transformação do ensino em “português como língua estrangeira” e sobre o conceito “língua de herança”.
Nada há no que escrevi a este título que permita, em sede de Lei de Imprensa, invocar o direito de rectificação. O presidente do Camões confunde velocidade com toucinho. As considerações que faz são de âmbito pedagógico e didáctico. Embora dispense lições de pedagogia ou didáctica ministradas por um embaixador com formação jurídica, que nunca deu uma aula, poderia contraditar-me em polémica académica. Se o tivesse feito, ser-me-ia fácil demonstrar, pela análise da produção escrita do Camões e dos manuais que patrocina, que sim, que desapareceu a vertente “língua materna” para dar lugar à vertente “língua estrangeira”. Mas se há algo passível de correcção é o uso da expressão “língua de herança “, treta terminológica, como tantas inventadas pelos “pedabobos” que tomaram de assalto o nosso sistema de ensino. Enxergue-se o presidente do Camões:
O Regime Jurídico do EPE [D-L nº 165/2006, de 11 de Agosto, art.º 4º, nº1, a)] consagra, apenas, as seguintes vertentes do ensino e aprendizagem da língua portuguesa: língua materna e não materna, língua segunda e língua estrangeira. A referência a outra modalidade, não prevista nos textos legais, o denominado “português língua de herança” é uma diletância que lhe está vedada, enquanto presidente do Camões.
6. Sobre a imposição de exames.
O presidente do Camões tresleu as simples três linhas que escrevi sobre a matéria. Eu sei que o processo é voluntário. Mas não digo que o Camões impôs que todos se sujeitem ao processo. Digo é que aqueles que se sujeitam ao processo têm, obrigatoriamente, exame na lógica de “português para estrangeiros”. Eu não escrevi que o Camões impôs exames de português para estrangeiros no “Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas”, como ele disse. Felizmente para todos os europeus, o presidente do Camões não poderia impor nada em sede de uma decisão da Europa. O que eu escrevi é que os exames que ele impôs têm por norte aquele quadro, que é coisa bem diferente. A não captação da diferença compreender-se-ia se partisse de um diplomado pelas “Novas Oportunidades”. Mas é inaceitável no presidente do Camões.
7. Sobre a criação de grupos de aprendizagem conjunta.
Mais uma vez, o presidente do Camões não rectifica o que escrevi. Confirma e acrescenta uma explicação que remete para a caldeirada pedagógica que defende: alunos de seis anos misturados com alunos de 16. E omite que os invocados “níveis de proficiência” não impedem que um aluno de 6 anos, que fale português escorreito, por ser sempre considerado em “iniciação”, vá parar a um grupo onde tem colegas de 16 anos, com conhecimento quase nulo de português.
O presidente do Camões sucumbiu à endemia de catarro das formigas e espirrou. Santinho!
A pintura mal-amanhada que fez da acção do Camões saltou à primeira raspadela. Veio por lã, vai tosquiado.
In “Público” de 8.1.20