25/05/2022

O pensamento deplorável do ministro da Educação


no Público

25/5/2022

por Santana Castilho*

 

A entrevista que João Costa deu ao Expresso da passada semana é um desfile de imprecisões, manipulações e falsidades. É um apontar de dedo a outrem, como se ele não fosse corresponsável pelos danos que a Educação sofreu nos últimos seis anos.

Perguntado sobre se o ministério não teria acordado tarde para o problema da falta de professores, João Costa respondeu que “esta equipa chegou e começou a tomar medidas, como permitir completar horários…”. Ora “esta equipa” é ele e outro, que promoveram as iniciativas trapalhonas, transbordantes de ilegalidades, que abordei no meu último artigo, para ultrapassar as maldades perpetradas pelas duas equipas anteriores … de que ele foi parte integrante. Querem maior cinismo e manipulação? E logo a seguir gabou-se de ter feito “um recenseamento do problema”. Como assim? Se há coisa que não falta são recenseamentos sucessivos, feitos por muitos, há anos e em areópagos diversos.

Mais à frente, confrontaram-no com a ideia de que a docência é pouco valorizada e perguntaram-lhe como se recupera o prestígio perdido. Não respondeu e optou, hipocritamente, por contribuir ainda mais para a degradação em análise, dizendo que “a formação [dos professores] tem de ser reconfigurada” porque “foram formados para serem professores de bons alunos”. E para que ficasse bem explícita a enormidade da acusação que acabava de fazer, complementou-a assim: “Era como formar médicos para verem só pessoas saudáveis”.

Naturalmente que a remuneração dos professores foi abordada. E o que é que está implícito na resposta e na metáfora (“… a carreira esteve parada muitos anos e só descongelou em 2018…”) que o ministro usou para referir o roubo do tempo de serviço com que foi conivente? Que um salário de 1000 euros no início da carreira ou de 1400 a meio não são maus, quiçá mais do que merecem professores impreparados para lidar com os problemas sociais das escolas e dos alunos, impreparação que levianamente lhes atribuiu no decurso da entrevista.

Surpreenderam-me estes nacos de pensamento do ministro? Não, porque já recentemente, na Sala do Senado, na sessão nacional do Ensino Básico do Parlamento Jovem, se havia referido a uma escola como espaço de silêncio e a um ensino que visa formar "enciclopédias com pernas". Como se tais clichés pudessem caracterizar a escola e o trabalho dos professores que, em má hora, passou a tutelar. Como se a sua missão fosse vilipendiar professores diante de uma assembleia de alunos. Simplesmente sórdida tal intervenção!

E não ainda porque, numa abordagem meramente administrativa, igualmente recente, relativa à revisão do regime de mobilidade dos professores doentes, o Ministério da Educação propôs um sistema por quotas e quis que a graduação profissional fosse critério de desempate. Na prática, queria isto dizer que as doenças passariam a ter a gravidade indexada ao tempo de serviço. Eu sei que foram apenas propostas e que já foram abandonadas. Mas foram feitas e por isso ficaram sujeitas à crítica pública. Sobretudo porque indiciaram uma pulsão por comportamentos humanamente inaceitáveis e eticamente relevantes, de quem quer chegar a fins sem olhar a meios.

Em resumo, umas vezes em modo explícito, outras em registo cínico, este homem não se tem poupado a esforços para cavar um fosso entre os interesses dos alunos e os interesses dos professores. Mas é em defesa dos primeiros, apenas divergentes dos interesses dos professores na escola anticonhecimento científico, beata e patética que criou, que se prepara para desregular, ainda mais, a vida dos segundos.

Com despudor, difundiu a “verdade” que melhor desculpa as suas responsabilidades anteriores e melhor serve os seus interesses futuros. Com arrogância, escolheu começar funções ofendendo os professores.

Quantas voltas já terá Baden-Powell dado no túmulo, ante um seguidor deste calibre?

*Professor do ensino superior

 

12/05/2022

Uma urgência não justifica uma canalhice


no Público

11/5/2022

por Santana Castilho*

 

Os governos do PS não foram os únicos a falhar na gestão dos professores. Mas foram os que mais mal infligiram à classe e os primeiros promotores das medidas que causaram a falta de docentes. O actual ministro age agora como se a situação o tivesse colhido de surpresa, como se não fosse por ela parcialmente responsável, há seis anos. Subliminarmente, tenta apresentá-la como algo não previsível, uma emergência a que é preciso acudir com medidas de excepção.

Para salvar o fim de um ano marcado por milhares de alunos sem professores, João Costa anunciou que iria revogar as penalizações aplicadas a cerca de 5 mil docentes, que recusaram os lugares que lhes foram atribuídos em concurso, para que pudessem voltar a concorrer a horários incompletos, que seriam convertidos em horários completos e anuais. Por defensável e positiva que fosse, face aos milhares de alunos sem aulas nesta altura do ano, a medida em análise só colheria se acompanhada, em nome da justiça mínima, de outra que compensasse os professores que aceitaram contratos de poucas horas, para acumular tempo de serviço, sujeitando-se às regras antigas. E teria sempre que ser concretizada por alteração do quadro legal que rege os concursos, que não por proclamação ministerial, em ambiente de bagunça normativa. Com efeito, quando João Costa anunciou a medida, circunscreveu-a às regiões mais críticas. Quando a DGAE a transmitiu às escolas, já ia generalizada a todos os lugares postos a concurso. Com efeito, o e-mail dirigido aos docentes pela DGAE, par além de não ter qualquer valor legal, é uma missiva trapalhona, que cita passagens inexistentes de um DL, que só seria aplicável se tivesse sido alterado.

Esta medida discricionária veio deturpar completamente o concurso feito por milhares de professores contratados, que teriam concorrido com opções bem diferentes no momento da manifestação das suas preferências iniciais. Os professores colocados antes da RR32 ficaram, a partir de agora, inaceitavelmente prejudicados: em remuneração e em tempo de serviço. Um professor menos graduado, que tenha rejeitado um lugar antes da RR32, pode, a partir de agora, beneficiar de vantagens futuras, que não estão ao alcance de outro, mais graduado, que aceitou uma colocação miserável, para não ser penalizado. 

Que dizer aos professores prisioneiros de horários de substituição, não transformáveis em horários anuais, que fizeram opções no âmbito de um quadro legal, que agora muda, ilegalmente, sem os compensar?

Que dizer a docentes colocados desde o início do ano lectivo em horários incompletos, e que assim continuarão, quando quem ontem aceitou um horário de seis horas o tem convertido em completo? Que sentirão estes docentes, cujo tempo de serviço não conta no quadro da “norma-travão”? Que dizer aos directores, proibidos de completarem os horários dos primeiros, agora coagidos a completarem os horários dos segundos? Que pensarão os detentores de horários inferiores a 16 horas, vítimas continuadas da anacrónica contabilização do tempo para a segurança social?

De início, só os detentores de colocações obtidas até ao começo das aulas, em horários completos, poderiam ver a sua colocação renovada no ano seguinte. Agora, o ministério está a preparar-se para permitir que os horários incompletos, convertidos em completos a partir da RR32, possam permitir a renovação da colocação dos seus titulares. Como dizer a um professor contratado com 19 horas, antes da RR32, que não poderá ter o seu contrato automaticamente renovado no próximo ano, quando um colega, que agora aceitou um horário de seis horas, administrativamente convertidas em 22, pode ver o seu contrato renovado automaticamente? Que conceito de justiça suporta os atropelos que daqui resultam?

Confrontado com tudo isto no Parlamento, João Costa respondeu: “Não nos preocupa que as regras sejam diferentes. O que interessa é que alunos tenham aulas”. Como se uma urgência justificasse uma canalhice.

O que a Reserva de Recrutamento 32 expôs é um padrão comportamental de trapalhice e iniquidade. O que o escuteiro/ministro promoveu é inaceitável: o céu para os ungidos da 32, o inferno para os colocados nos oito meses anteriores. Tivéssemos uma classe profissional com uma réstia de união e o dito voltaria, em breve, no dizer do próprio, à praia dele: os lobitos.

*Professor do ensino superior