18/09/2019

O que é esmagado, que se levante!

no Público
18/9/2018

por Santana Castilho*


O ano lectivo inicia-se com um sinal distintivo: o Ministério da Educação aprovou cerca de 50 projectos de inovação apresentados por agrupamentos de escolas ao abrigo da Portaria 181/2019, que lhes confere a possibilidade de ampliarem a celebrada flexibilidade curricular para além dos 25% já previstos para todas as escolas. Segundo o Jornal I, em Santo Tirso os alunos vão escolher as matérias e quando querem ser avaliados, em Cascais adoptaram a “Pedagogia do Amor”, algures em Braga vão desenvolver as “oito inteligências da criança” e em Torres Vedras andar de bicicleta passou a integrar o currículo. Digam-me se não é motivo para vermos António Costa aos saltinhos, num qualquer palco de comício eleitoral próximo!

Aquando da publicação da portaria supra referida, mobilizaram-se escolas, directores e professores para a cruzada da elaboração de Projetos-Piloto de Inovação Pedagógica (PPIP), que promovessem a reorganização curricular e redefinissem o calendário lectivo e os momentos de avaliação. Apesar disso, temos apenas 50 (6%) de um total de 813 agrupamentos, com iniciativas aprovadas, o que torna legítimo admitir a existência de um fosso entre o que entendem as escolas e o que queria o ministério. Com efeito, João Costa teve desde sempre um problema existencial de conflito ente a ideologia impositiva que o norteia e as recomendações do marketing político que o assessora. Ou seja, pôr as escolas e os seus directores a fazerem o que ele quer, mantendo nas homilias públicas a abertura caridosa e conciliar do prior do “eduquês” novo. A quadratura deste círculo terá sido conseguida pelo destino dado aos projectos que lhe chegaram: aprovados os que lhe adivinharam os desejos, recusados todos os outros; recompensados os prosélitos, penalizados os que se protegeram da babilónia do esvaziamento curricular. Viva a autonomia domesticadora de quem não recita o credo!

No desenvolvimento da matéria que chamou à primeira página sob as epígrafes a que me referi, o Jornal I aludia a “escolas que estão a revolucionar o ensino”. Sabendo que a promoção do sucesso a qualquer título foi o factor dominante da aprovação ou rejeição dos projectos experimentais de inovação, que irá acontecer no fim do ano? Teremos 94% de escolas “fracassadas” e 6% cintilando êxitos? Não, não teremos. Outrossim, repetir-se-ão resultados ditados pelas variáveis de sempre, as mais marcantes de natureza socioeconómica e exteriores à escola. Quanto ao que a escola pode fazer, não são “revoluções” miraculosas mas políticas adequadas que importam: que limpem o sistema de burocracias impensáveis, pela estupidez e inutilidade que significam; que removam o lixo normativo e substituam formulações prolixas por linguagem simples; que tornem coerentes e praticáveis os planos de estudo e os programas disciplinares, para termos currículos adequados; que dignifiquem e humanizem a profissão docente; que estabilizem a vida pessoal e familiar dos professores; que removam os obstáculos às aprendizagens dos alunos, com meios e materiais suficientes; que resolvam a indisciplina nas escolas.

Em Pedagogia está tudo descoberto, dito e escrito. Seria de bom senso substituirmos o vocábulo inovar por alterar. Não inovamos coisa nenhuma. Alteramos. A denominada flexibilidade curricular, construída a partir de uma absurda ideologia igualitarista, promissora de uma escola sem paredes, sem portas, sem turmas, sem aulas, sem horários, sem relógios, sem campainhas, sem testes, sem reprovações, onde os alunos aprendem brincando e a felicidade jorra dos bebedouros públicos, vem transformando o sistema de ensino numa coisa desconexa onde, a breve trecho, ninguém se entenderá. Responda-se com honestidade: pode o professor da nossa escola de massas praticar o ensino individualizado para que tendem as pedagogias construtivistas? Não, não pode!

O sistema de ensino tem demasiados actores vítimas de “normose”. A “normose” oblitera a vontade própria na medida em que se caracteriza pela imposição aos indivíduos de um conjunto de normas, conceitos, estereótipos e modos de pensar que os leva a adaptarem-se a um contexto, sem o questionar. Um “normótico” age esmagado por aquilo que lhe impõem, dispensando a análise racional e desistindo do contraditório. Que desejar-lhes? O que recomendou Bertolt Brecht: que se levantem!

*Professor do ensino superior

04/09/2019

Para os professores, com estima

no Público
4/9/2019

por Santana Castilho*

Não vejam nostalgia (embora por vezes vá parecer). Vejam o galope (que a escrita não traduz) a que o meu cérebro põe o meu coração, quando pensa no ano penoso que se inicia para tantos professores.

Poderia começar por recordar à sociedade desinteressada pelos seus professores números apurados por Raquel Varela: 22.000 usam medicação em demasia; 85% manifestam sinais de despersonalização; 47,8% apresentam sintomas preocupantes de exaustão emocional; 91% consideram que baixou o prestígio da profissão; 31% expressam desmotivação para ensinar; 85% referem que o Ministério da Educação não valoriza o seu trabalho; 80% sentem que diminuiu a sua autonomia e o seu poder de decisão.

Poderia perguntar a todos os políticos, que se aprestam a ir a votos, como conciliam a desconsideração e a exaustão assim expressas com as promessas que sempre fazem.

Poderia detalhar o perfil profissional oculto dos que deviam simplesmente ensinar e acabam psicólogos, assistentes sociais, funcionários administrativos, instrutores de processos disciplinares, mediadores parentais, vigilantes de recreios, socorristas e tudo o mais que um escabroso assédio laboral e moral lhes despeja em cima.

Poderia referir-me aos pequenos monstros saudosistas e populistas, que odeiam os professores e que vão saindo detrás das pedras onde se acocoraram há 45 anos.

Poderia falar de António Costa, para quem professor é “capital humano” que se arruma ano a ano, e do seu bem-sucedido esforço para limitar o direito à greve de várias classes profissionais, que teve nos professores o primeiro ensaio, num processo onde se ameaçou, impôs e proibiu, com artimanhas para causar medo e desmobilizar, tudo com a conivência de uma sociedade que se deixou manipular e virar contra aqueles a quem entrega os filhos durante mais tempo do que passa com eles.

Poderia citar o aumento do centralismo do Estado, promovido por um ministério que planta plataformas informáticas a eito, para vigiar e impor uma estranha quanto pérfida autonomia pedagógica.

Poderia dissertar sobre as decisões cruciais que têm vindo a ser tomadas por políticos pedagogistas, adolescentes e caprichosos, que dominam uma classe proletarizada, anestesiada e entretida com doutrinas que se sobrepõem facilmente à razão profunda.

Poderia narrar o trabalho obrigatório a que os professores estão sujeitos para decifrar e cumprir torrentes de solicitações asfixiantes, sob nomes pomposamente modernos mas substantivamente inúteis.

Poderia recordar os insultos e as agressões a que alguns pais e alunos sujeitam os professores, a coberto da passividade protectora do bom nome das instituições.

Poderia trazer-vos às lágrimas contando histórias (que um dia escreverei se sobreviver aos seus protagonistas) de professores-heróis que, generosa e silenciosamente, arrancaram pedaços de si para resgatar alunos perdidos por intermináveis desamparos de pais e do Estado.

Poderia traçar-vos perfis diferentes de tantos professores com quem me cruzei ao longo da vida: o professor-filósofo, o professor-mestre, o professor-rebelde, todos professores-professores, caracterizados pelo amor aos seus alunos.

Poderia, para homenagear todos, vivos e mortos, meus e de todos, evocar dois dos meus professores, já falecidos: ele, professor-família, que foi o primeiro de tantos que me ensinaram a ser professor; ela, professora-amor proibido, que transformou a minha adolescência, fadada para ser pobremente limitada, numa adolescência vivida sem limites.

Poderia perguntar-vos, olhos nos olhos e de coração apertado, que outros profissionais partem todos os anos para longe dos próprios filhos, para cuidar dos filhos dos outros, por pouco mais de mil euros de salário.

Este condicional repetido foi tão-só a figura retórica que me ocorreu para dizer a quem me ler porque abraço hoje, estreitamente, todos os professores que, pelo país fora e por estes dias, vão acolhendo com abraços as crianças e os jovens que retornam às escolas.

Dito isto, queridos professores, levantem-se do chão. Retomem a independência intelectual necessária para impedir que o acto pedagógico se transforme em prática administrativa ou obediência doutrinária e não confundam a verdadeira autonomia com uma dissimulada ditadura de metodologias, por mais “activas”, “democráticas” ou “de projecto” que se digam.

*Professor do ensino superior