27/05/2020

Saem por cima os que actuam por baixo

no Público
27/05/2020

por Santana Castilho*


1. No meu último artigo, manifestei receio sobre a possibilidade de se “normalizar” a solução improvisada para entreter alunos afastados da escola, a que, impropriamente, chamaram ensino a distância. Em tempo de confinamento drástico, essa solução foi um instrumento para preservar uma actividade mínima de ensino, cumprida com espírito de missão e contornando dificuldades múltiplas. Entretanto, este “ensino a distância”, de emergência, começa agora a ser sugerido como alternativa. Se a ideia colher, revelar-se-á perversa por tender, no limite, a substituir professores de corpo e alma por assistentes digitais, sem sindicatos, sem greves e com enormes vantagens económicas para o empregador, no que toca a custos operacionais.

Para o êxito da coisa terá contribuído a vertente “telescola”, protagonizada por professores do século XXI, aparentemente prosélitos das pedagogias não directivas e opositores das aulas magistrais. Cantam rap, dançam zumba e prestam-se a demonstrar as suas metodologias inovadoras nos programas de Cristina Ferreira e de Manuel Luís Goucha.

Para quem bate palmas, pouco importam a pobreza de muitas abordagens e os erros científicos. Vi uma aula de Português dominada pela leitura soletrada de um PowerPoint medíocre, onde Camões foi apresentado como coisa menor. Numa aula de História, a propósito do Renascimento, o astrónomo Nicolau Copérnico, polaco, foi associado a Itália. A Polónia, cuja origem vem do século X, foi citada como criada após a Primeira Guerra Mundial. A embaixada da Polónia protestou. Numa aula de Ciências Naturais, os transgénicos foram apontados como perigosos para a saúde e foi feita uma referência ao “uso inadequado de hormonas de crescimento nas explorações pecuárias”, quando, na verdade, as hormonas de crescimento estão proibidas para tal fim, no espaço europeu. O biólogo Pedro Fevereiro, presidente do Centro de Informação de Biotecnologia, antigo Bastonário da Ordem dos Biólogos e ex-membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, reagiu publicamente, dizendo que o que foi ensinado está errado, do ponto de vista científico, e constituiu doutrina, que não ciência. Por outro lado, numa outra aula, o sobreiro foi apresentado como árvore de folha caduca, quando é sabido que as folhas do sobreiro não caem no inverno.

Sob o pretexto das medidas sanitárias e explorando a lógica do medo, o ensino remoto vai, assim, fazendo o seu caminho, ante professores passivos e incapazes de criticarem e combaterem aquilo de que se arrependerão futuramente. A apologia das vantagens do ensino remoto ameaça transformá-lo no modelo pedagógico dominante. Isso, nas condições actuais de menorização social do professor, implica enfraquecer e degradar ainda mais a profissionalidade docente, que é o fundamento anímico para a existência da Escola.

Sem liderança sábia, são os impulsos casuísticos que determinam o caminho. Ninguém sabe para onde iremos no próximo ano lectivo.


2. As alterações anunciadas aos exames nacionais retiraram-lhes a validade como instrumento de relativização das classificações das escolas e garante de cumprimento universal de um curriculum nacional. Com efeito, com perguntas opcionais e com a possibilidade de responder a tudo, para que os classificadores, obrigados a classificar todas as respostas, escolham as melhores, desaparece a fiabilidade do exercício e a equidade dos resultados. Qual é a validade de um exame, cuja lógica estrutural cedeu o passo, em grande parte, ao livre arbítrio do examinado?


3. Independentemente de quem ganhou e quem perdeu, o espectáculo ridiculamente pequenino em que se envolveram Costa, Marcelo e Centeno, a propósito do Novo Banco, enlameou a dignidade do Estado.

Num dia, ao dizer que Costa tinha estado “muito bem” no Novo Banco, Marcelo pronunciou-se sobre o diferendo Costa/Centeno. No dia seguinte, em nota publicada no site da presidência, Marcelo escreveu que o Presidente da República não tinha de se pronunciar sobre isso. Entretanto, depois da lamentável cena na AR, António Costa reafirmou a confiança num ministro que condenou a arrastar-se no Governo e no Eurogrupo até sair (quando o orçamento rectificativo for apresentado e a agenda europeia o autorizar).

Belos exemplos de hipocrisia em tempos de pandemia: saem “por cima” os que actuam “por baixo”.

*Professor do ensino superior

13/05/2020

A nova ordem sanitária e o policiamento da vida colectiva

no Público, 13/05/2020

por Santana Castilho*


A declaração de calamidade não suspende, muito menos suprime, direitos laborais, sociais e políticos. Nem, nunca, estes direitos prejudicaram o combate à covid-19. Prejudicariam, isso sim, o curso da propagação da pandemia do medo, em que os principais responsáveis políticos se empenharam, arrastando, com pouca ponderação, 1,3 milhões de trabalhadores para o lay-off, 170 mil independentes para a penúria e 55 mil para a sopa dos pobres.

O ambiente em que vivemos desde 3 de Maio é manifestamente inconstitucional, porque pretende suspender direitos fundamentais por uma decisão unilateral do Governo. Com efeito, a situação de calamidade colhe o seu suporte legal numa lei ordinária da AR (Lei n.º 27/2006), que não permite limitar o exercício desses direitos senão de forma temporária determinada e apenas em zonas claramente definidas do território nacional (Art.º 21º, nº 1, b) da citada lei).

Mas uma grande parte dos portugueses, resignada, deprimida pela campanha da promoção do medo a que foi submetida, parece querer aceitar em silêncio a limitação administrativa dos seus direitos. Vive-se, assim, numa cidadania apenas simbólica, tutelada pela polícia e pela Direcção-Geral da Saúde, que têm agora o monopólio do espaço público. Sente-se, assim, a opressão de uma espécie de religião do confinamento, que nos empurra, em rebanho, para a neurose colectiva. A retórica fascizante que a serve permitiu a António Costa armar-se em intérprete de um certo interesse superior, “diga a Constituição o que diga” e a um comandante da GNR recordar-nos o “dever de cada um ser o polícia de si próprio.” E, apesar de os cientistas do mainstream terem concluído que a quase totalidade das contaminações ocorreu em espaços fechados (habitações, lares e instituições de saúde), prepara-se agora o reforço das contínuas operações da PSP, da GNR e da Polícia Marítima, chamando “fuzileiros e artilheiros” (ministro do Ambiente dixit) para controlarem os perigosos areais. As medidas em estudo, refere a imprensa, admitem cercas, torniquetes, sensores, drones, vigilância privada, marcas na areia para espetar as sombrinhas e cordas para delimitar a separação entre banhistas. Por este caminho, ainda vamos ver um ajuste directo para amestrar carapaus, que vigiarão o distanciamento dentro de água.

À salvação pelo grande confinamento e pela ditadura sanitária, opõe-se uma racionalidade ponderada para combater o vírus, coexistindo com ele por via da imunidade adquirida. Trata-se da dicotomia entre um risco de infecção, probabilísticamente baixo, e uma morte lenta, mas certa, por catástrofe económica, psíquica e social, sem precedentes.


2. A casa dos professores e a casa dos alunos cederam a sua natureza privada a uma certa lógica totalitária, que o fetichismo do ensino à distância impôs. O impropriamente chamado ensino à distância invadiu a vida privada e familiar dos docentes, misturando perigosamente vida profissional e vida pessoal. Sem resistência, inebriada por essa estranha união nacional contra a covid-19, uma parte significativa dos professores alistou-se em jornadas de trabalho sem limite e disponibilizou-se para trabalhar a todo o momento, respondendo a todas as solicitações. É prudente reflectir sobre o que está a acontecer e separar águas.

Uma coisa é uma metodologia sólida, coerente e tecnicamente complexa de ensino a distância (maioritariamente destinado a populações adultas e definitivamente vedado a algumas áreas temáticas), outra coisa é uma solução improvisada e precária (para entreter crianças e jovens afastados da escola). Não discernir sobre a diferença entre estes conceitos pode conduzir a entusiasmos para “normalizar”, no futuro, o que agora é meramente instrumental, pobre e casuístico.

Custa-me ver que se aceite tão facilmente trocar relações pessoais por relações digitais, admitindo que a profissionalidade docente possa prescindir do contacto social e da empatia humana. Como se um colectivo de pessoas pudesse ser substituído por um colectivo de computadores, sem perda de humanidade. Tecnólogos e tecnocratas não entendem que a interacção pedagógica exige presença. Professores e alunos sabem e sentem isso. Agora, mais que nunca, interiorizaram, certamente, que uma aula tem múltiplos papeis sociais, que nenhuma máquina substitui.

*Professor do ensino superior