22/12/2021

Pelo fim dos diáconos da distopia pedagógica


no Público

22/12/2021

por Santana Castilho*

 

 A 16 de Janeiro “abre” a campanha eleitoral para as legislativas de 30. Desejo muito que os programas partidários expressem as suas propostas com clareza, porque a situação actual do sistema de ensino é preocupante. Aqueles que generosamente me têm lido ao longo dos tempos terão presentes os problemas que fui equacionando. De entre tantos, é imperioso que os partidos digam agora, pelo menos, o que tencionam fazer para varrer a carga de burocracia controladora que se abateu sobre as escolas e sobre os professores; que medidas propõem para acudir à falta de professores, designadamente para reconhecer a importância social que lhes é devida; se sim ou não tencionam rever o estatuto da carreira docente, particularmente os instrumentos de avaliação do desempenho; se substituirão o modelo de gestão das escolas e de organização de toda a rede escolar; se introduzirão ordem e coerência em todo o edifício curricular; como encaram a autonomia das escolas e a municipalização da educação; que estratégia reservam para obstar à indisciplina que grassa nas escolas; se acham, sim ou não, necessário rever a Lei de Bases do Sistema Educativo; se tencionam universalizar todo o pré-escolar até à entrada no básico; se aceitam reduzir o número de alunos por turma e fixar o máximo de alunos por professor.

A regressão é evidente e só o ministro a não vê. Com milhares de alunos continuadamente sem aulas, estamos a voltar ao ambiente dos primeiros anos da democracia, quando a explosão da procura de educação nos confrontou com a falta de professores qualificados.

O cenário de falta grave de professores começou a ser apresentado por muitos, de há muito. Os do terreno identificaram-no cedo. Os da baixa política descobriram-no agora, de grande que ficou, enquanto ao longo dos últimos seis anos o ignoraram sistematicamente, com inépcia. Com efeito, foi neste quadro que surgiu uma caricata task-force, constituída por membros das direcções-gerais (Direção-Geral de Estabelecimentos de Ensino e Direção-Geral da Administração Escolar), que de há muito existem para, entre outras funções, obstar a que o problema surgisse. Se por hipótese os destinos da Educação continuarem entregues aos mesmos depois de 30 de Janeiro, não me admirarei de ver os fins a terraplanar os meios, prescindindo o sistema das habilitações definidas para leccionar, aumentando o número de alunos por turma, abolindo as reduções devidas à idade e, no limite, abolindo mesmo a componente não lectiva dos horários docentes.

Há seis anos que venho denunciando os sinais da distopia pedagógica que o PS abraçou, particularmente a ideia dissimulada de que são os alunos que devem orientar a sua educação, mediante metodologias de descoberta, e não os professores, segundo o tradicional ensino directo. As normas que presidem hoje à avaliação dos alunos estão vocacionadas para valorizar qualquer coisa que eles aprendam, por irrelevante que seja, depreciando em absoluto o que não aprenderam e deviam ter aprendido. E os diáconos destas doutrinas avaliativas têm propalado bem a mensagem, em autênticos guias espirituais de “boas práticas” docentes.

Naturalmente que o ambiente em que a sociedade portuguesa está mergulhada favorece a atitude prevalecente no Ministério da Educação, qual seja a de negar a realidade, em vez de acolher as propostas que ajudariam à solução dos problemas. Com efeito, anestesiados pelo medo, vamos esquecendo a gravidade de vivermos há quase dois anos em verdadeiro estado de excepção, com direitos e liberdades drasticamente limitados. Primeiro foi um estado de emergência prorrogado durante meses, ao arrepio grosseiro da sua constitucional natureza extraordinária e temporariamente limitada. Agora são simples resoluções do Conselho de Ministros que, cilindrando o normal funcionamento do Estado de direito, anunciam fins (sucessivamente falhados) para justificar o uso de quaisquer meios. Cumulativamente, a pouco mais de um mês das eleições, com a Assembleia da República dissolvida, aprovam-se diplomas que estabelecem estratégias nacionais de actuação futura. Sim, o fomento do medo vem tornando a sociedade num objecto totalmente dependente do poder político e coercivo que António Costa sobre ela exerce.

*Professor do ensino superior

 

08/12/2021

O que poucos decidem que Portugal seja é o que Portugal é

 


no Público

8 de Dezembro de 2021

por Santana Castilho*

O aumento continuado das responsabilidades e exigências que caem sobre os professores, devido à acentuada transferência para eles de funções sociais que pertenciam anteriormente à comunidade social e às famílias, sem as necessárias adaptações organizacionais compensatórias, tornou extremamente penoso o exercício da profissão. Dizer que a profissão docente está em crise passou, assim, a lugar-comum, sendo que as respectivas condições de trabalho (violência, esgotamento físico e psicológico) são as causas que mais contribuem para o acentuar dessa crise. E dentro delas, o peso da burocracia ocupa, talvez, o lugar cimeiro. Quantos cidadãos terão uma noção aproximada da quantidade de planos e relatórios inúteis que os professores são obrigados a produzir, com enorme prejuízo da sua responsabilidade primeira, que é ensinar? Muito longe de ser exaustivo, porque há mesmo muito mais, deixo um pequeno registo exemplificativo: Plano Anual de Actividades (PAA); Plano Plurianual de Actividades (PPA); Projecto Educativo de Agrupamento (PEA); Plano de Acção Estratégica (PAE), no quadro do Programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar (PNPSE); Plano de Ação para o Desenvolvimento Digital da Escola (PADDE); Projecto Curricular de Turma (PCT); Plano de Turma (PT); Plano Educativo Individual (PEI); Plano de Melhoria (PM); Plano de Recuperação de Aprendizagens (PRA); Relatório Técnico-Pedagógico (RTP); Relatório Individual das Provas de Aferição (RIPA); Relatório de Escola das Provas de Aferição (REPA); Relatório Crítico do Director de Turma (RCDT); Relatório Final de Execução de Actividades (RFEA). A última desta torrente pútrida de toleimas foi a moda da filosofia “Ubuntu”, alma mater de mais um plano: o Plano 21|23 Escola+. Cansados com esta amostra? Imaginem os professores, com a totalidade!

A malícia política que semeou obstáculos no trajecto profissional dos professores exprime bem a falta de decoro a que chegámos: cerca de cinco mil docentes, apesar de terem cumprido todas as exigências estatutárias (avaliação positiva, com observação directa de aulas, quando exigida, e formação contínua cumprida) estão impedidos de progredir aos 5.º e 7.º escalões, graças à existência das famigeradas quotas administrativas, que o Governo discricionariamente fixou. Muitos destes, por terem menções classificativas máximas, estariam a salvo do primeiro expediente arbitrário. Então, criou-se um segundo, mais miserável que o primeiro: em cada escola, só um limitado número de professores pode ter nota máxima; assim, concluído o processo, a classificação de muitos é aviltantemente reduzida, para cumprir a vontade de sucessivas pilecas políticas. Do mesmo passo, e na sequência da subtracção de vários anos de serviço efectivamente cumprido, temos hoje outros milhares de professores que já deveriam estar em escalões muito acima daqueles em que se encontram. Naturalmente que daqui resulta uma injusta penalização remuneratória, designadamente com considerável impacto negativo no cálculo das suas pensões de aposentação.

As análises que muitos fazem sobre a situação descrita, alegando que “nem todos podem chegar a generais”, ignoram que, enquanto são gritantemente diferentes as funções de um soldado e de um general, as funções de um professor do 1º escalão são exactamente iguais às funções de outro, do 10º. Fica assim actual, 120 anos depois, o que Eça de Queirós escreveu: “o que um pequeno número de jornalistas, de políticos, de banqueiros, de mundanos decide no Chiado que Portugal seja, é o que Portugal é.”

Faz-se muito e do melhor no sistema nacional de ensino. Infelizmente, sem o apoio de quem o governa. A dedicação, a entrega e o amor aos alunos são o apanágio dominante do espírito de missão da maioria dos professores. Apesar disso, são alvo de ataques sucessivos, como se a culpa do que corre mal lhes pudesse ser imputada.

Os professores estão saturados da natureza arrogante deste Governo, da incompetência do ministro da Educação, de obedecer à anormalidade normal, a ordens e modas imbecis, vindas ora do autoritarismo central, ora do caciquismo local. O sistema colapsará se não se alterarem drasticamente as políticas educativas.

*Professor do ensino superior