19/09/2018

Três notícias convenientes

no Público
9/09/2018

por Santana Castilho

No dia 7 de Setembro, o ministro da Educação reuniu-se com um conjunto de organizações sindicais de professores. Depois dessa reunião inútil, o Governo decidiu, unilateralmente, apagar mais de seis anos e meio ao tempo de trabalho efectivamente prestado pelos docentes. À decisão, a que, para cúmulo, chamou “bonificação”, oponho um argumento legal, inscrito na Lei do OE para 2018 (artigo 19º), e dois argumentos, um de natureza ética, mínima, e outro de índole democrática, máxima, a saber: compromisso assumido pelo Governo em 2017 e a resolução da AR, votada por maioria. Que a hipocrisia e a tendência para a traição de António Costa os ignore, não me surpreende, porque é sinal persistente do seu carácter. Que a opinião pública se deixe tão facilmente contaminar pela barragem de falsas notícias, que tão a propósito vieram a público na mesma altura, causa-me uma enorme perplexidade. Será possível que uma sociedade, que confia os seus filhos aos professores durante 12 anos, aceite vê-los serem humilhados de modo tão soez? Poderão pessoas com particular responsabilidade, pelo acesso que têm aos meios de comunicação, deduzir e concluir de modo tão ligeiro e falso sobre a vida profissional daqueles que lhes ensinam os filhos? 

Pretendo neste artigo contraditar o colonialismo noticioso, conveniente mas desavisado, de quantos repetem conclusões parciais e superficiais de relatórios que não analisaram criticamente ou sequer leram, tomando por párias sociais os que ousam resistir à tirania política. 

A primeira notícia conveniente tinha por título: “mais de metade das baixas na Educação foram fraudulentas”. Teve origem em dados divulgados pela comissão Europeia, relativos a cerca de 3.000 doentes, que juntas médicas mandaram regressar ao trabalho. Fraudulentas? Se uma junta delibera em desacordo com o médico que segue o doente, trata-se de uma fraude? Saberão os autores da notícia que a maioria dos médicos que integram as juntas são tarefeiros, cuja contratação arbitrária pela Segurança Social deixa legítimas reservas sobre o seu grau de autonomia? Que se guiam por tabelas de duração média das doenças? Tendo as depressões o peso que têm na classe docente, poderá uma pronúncia de escassos minutos derrogar o parecer de um psiquiatra, fundamentado em horas de consultas, ao longo de meses? À memória veio-me o caso escabroso do funcionamento de uma junta, que testemunhei, onde o mais inocente do processo foi o relatório final ser assinado por alguém que nem sequer esteve presente naquele acto médico. À memória vieram-me mais casos. De Manuela Estanqueiro, doente de leucemia, em estado terminal, mandada regressar às aulas na EB 2/3 de Cacia, por uma junta médica. Morreu um mês depois, em sofrimento atroz, para não ser despedida por faltas injustificadas. De Artur Dias, professor na Escola Secundária Alberto Sampaio, de Braga, vítima de um cancro na garganta, que uma junta médica mandou regressar às aulas, apesar de não ter laringe. Morreu três meses depois. De Manuela Jácome, professora de Faro, doente oncológica que, apesar de não ter um quarto do estômago, vesícula, baço, duodeno e parte do intestino, foi considerada, por uma junta médica, apta para dar aulas. 

A segunda notícia conveniente dizia: “Bruxelas avisa que descongelamento da carreira dos professores pode pressionar OE”. Assim, impressivo, retirado com supimpa proficiência jornalística às entranhas do oitavo relatório de avaliação pós-resgate, produzido pela Comissão Europeia. Escreveu a dita uma linha de preocupação com os 19,5 mil milhões servidos às falências canalhas da banca lusa? Não! Referiu-se ela, temerosa, ao bónus fiscal de 800 milhões servidos ao Montepio? Outra vez não! Aos 450 milhões mais recentes, fora os outros, que foram direitinhos para o Novo Banco? Nem um débil vagido! Aos 1,15 mil milhões dissipados ruinosamente nos contratos swap das empresas públicas? Não, não e não, com dissimulação mais fina que a do Vaticano em matéria de pedofilia. Mas sim, todas as luzes vermelhas a tremular para o custo do descongelamento das carreiras dos malandros dos professores. E qual é esse custo? Lembram-se da comissão técnica mista que o iria calcular, depois de ficar claro que os 600 milhões que Costa usou na AR não passavam de pura mentira? Porque se tratou de mais um expediente para queimar tempo sem nada concluir, perdoar-me-ão que recorde o que já aqui escrevi: a narrativa contabilística do Governo sobre a repercussão da contagem de todo o tempo de serviço nas contas públicas é falsa. Começa por escamotear que boa parte dos salários nominais corrigidos pelo descongelamento volta de imediato aos cofres do Estado, via IRS e contribuições obrigatórias para a CGA e ADSE. Estaremos a falar de uma percentagem variável, mas nunca inferior a 30%. Estivessem certos os propalados 600 milhões e mirrariam para, pelo menos, 420. Mas não estão. Com efeito, quando o Governo compara os dois anos e nove meses que propôs com os nove anos e quatro meses que os sindicatos reclamam, estabelece um raciocínio que multiplica o número a que chegou por um factor tempo, proporcional. Ora tal proporcionalidade não existe. Tão-pouco podem as contas ser feitas partindo do princípio que toda a gente muda imediatamente de escalão. Obviamente que não muda, já porque há ciclos em curso, longe do fim, já porque existem quotas administrativas limitativas, que só o Governo controla, arbitrariamente. E como se o anterior não bastasse, o Governo considera como sendo de hoje números que, se estivessem certos, só se verificariam em 2023. Como se o impacto médio, que a dinâmica do crescimento dita, não fosse muito menor! 

Por fim, a terceira notícia conveniente foi o dilúvio de mentiras que a divulgação do relatório Education at a Glance proporcionou. Dólares, euros e paridades de poder de compra foram alegremente misturados, atirados ao ar e caíram onde calhou, para serem traduzidos em letras de imprensa e sons de rádio e televisão. Por negligência ou pura malícia, mas sem que uma só voz soprasse dos lados do Ministério da Educação para repor a verdade e defender os professores, miseravelmente enxovalhados. 

O relatório coloca os salários dos professores portugueses no topo da carreira acima da média da OCDE. Mas os números apresentados são muito superiores aos reais e não têm em conta os anos em que as carreiras estiveram congeladas. Situação que determina que não há no activo um só professor no último escalão, o 10º. E quanto teria de vencimento líquido esse hipotético professor (não casado, sem dependentes), depois de um mínimo de 36 anos de serviço? Uns milionários 1.989,70 euros. 

O relatório situa um professor com 15 anos de carreira no 4º escalão. Mas porque durante 9 anos, 4 meses e 2 dias as carreiras estiveram congeladas, ele está, de facto, no 1º escalão, com o invejável salário líquido de 1.130,37 euros. O relatório diz que os directores de estabelecimentos de ensino, em Portugal, ganham o dobro dos restantes licenciados. Tenho à minha frente o recibo do vencimento de Agosto de um director, com 30 anos de serviço. Recebeu 1.708.16 euros. Durante os tempos negros da austeridade, relatórios deste tipo lograram pôr escravos pobres, modernos, contra pobres escravos, antigos. António Costa disse-nos que a austeridade acabou. Mas os relatórios e os seus efeitos continuam. 

*Professor do ensino superior

05/09/2018

Anormalidades de um ano “normal”

no Público
05/09/2018

por Santana Castilho*

Tiago Brandão Rodrigues, em registo que já constituiu padrão, disse várias tolices a propósito do início do ano-lectivo, a saber: “estão criadas todas as condições para que o ano escolar possa começar a tempo; pudemos fazer algo que não acontecia até 2016. Em 2016, 2017, e acreditamos que também em 2018, começámos com normalidade e tranquilidade os anos-lectivos e em Setembro; há pouco tempo tivemos anos-lectivos que se iniciaram em Outubro e Novembro”.

Anos-lectivos a começarem em Novembro? Só quando o pequeno ministro era ainda mais pequeno e usava fraldas. Nunca há pouco tempo.

Vejamos, agora, detalhes de um ano-lectivo que para o ministro começa com normalidade e tranquilidade, mas que para o vulgar dos mortais arranca com uma pesada dúvida: os sindicatos ameaçam com uma paralisação de aulas logo em Outubro.

É pouco chamar obscena à colocação de professores a 30 de Agosto, por parte de um Governo que, ao invés de os proteger, os agride desumanamente. Porque é desumano, até ao último dia das férias, muitos professores não saberem se têm trabalho ou se têm que ir para a fila de um qualquer fundo de desemprego; porque é inumano, depois disso, dar-lhes 72 horas para arranjarem alojamento e escola para os filhos, algures a dezenas ou centenas de quilómetros de casa, como se não tivessem família nem vida pessoal. Esta forma com que o Governo tratou os seus professores esteve ao nível da insensibilidade patenteada por quem o representa, quando afirmou que a desgraça de Monchique foi a "excepção que confirmou a regra do sucesso".

A coberto do Decreto-Lei de Execução Orçamental, o Governo cativou recentemente mais 420 milhões de euros de despesa pública, que se somam aos 1.086 inicialmente previstos. E sobre quem recaiu boa parte destas cativações adicionais? Sobre as despesas relativas aos estabelecimentos de ensino básico e secundário, onde a cativação quintuplicou, passando de 4,9 para 25,1 milhões de euros, e sobre os serviços auxiliares de ensino, onde a cativação triplicou, passando de 7,2 para 23,9 milhões de euros.

No início do ano-lectivo passado, o ministro prometeu contratar mais 500 auxiliares, particularmente destinados ao pré-escolar. No início deste, os directores pedem-lhe que cumpra, porque destes funcionários auxiliares nem a sombra se viu. Em resposta aos directores, veio o Ministério da Educação dizer que os auxiliares serão colocados através do Acordo de Cooperação com as Autarquias, tendo sido já comunicado aos municípios com quantos mais cada qual pode contar. Só que subsiste um pequeno problema: há um movimento, que se começa a generalizar, de rejeição da transferência de competências, feita, assim o dizem, à revelia dos autarcas. Das 17 câmaras que constituem a Área Metropolitana do Porto, 11 vão decliná-las (Porto, Vila Nova de Gaia, Vila do Conde, Trofa, Matosinhos, Valongo, Vale de Cambra, Santa Maria da Feira, Paredes, Espinho e Póvoa de Varzim). A estas câmaras, noticiou a comunicação social, juntar-se-ão Braga, Setúbal, Sesimbra, Boticas, Palmela, Évora, Mafra, Barreiro, Moita, Sobral de Monte Agraço, Oeiras, Montijo e Odivelas. Do mesmo passo, o ano inicia-se com a crónica situação de centenas de assistentes operacionais em falta nas escolas, porque estão com baixas médicas prolongadas e não foram substituídos.

Lembram-se da Iniciativa Legislativa de Cidadãos para a contagem de todo o tempo de serviço dos professores? Depois de reunir 20.839 assinaturas, foi admitida a debate como projecto-lei e recebeu o número PJL/944/XIII/3. Após a admissão, estranhamente, os proponentes foram notificados de que 3.555 assinaturas foram consideradas inválidas. Para corrigir a borrada pela qual são responsáveis, os serviços da AR, magnanimamente, concederam mais 90 dias, contados a partir de 8 de Agosto. Quando o prazo terminar a 9 de Novembro, o orçamento de Estado para 2019 estará decidido. Quem acredita no Pai Natal considera normal o estrangulamento da iniciativa na secretaria. Eu não! Parabéns aos parlamentares e aos partidos que foram poupados ao incómodo. Bela chapelada!

*Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)