21/06/2023

António Costa, o cartaz e os rankings


no Público

21/6/2023

por Santana Castilho*



1. Desde 10 de Junho que o tema de todos os dias é o alegado racismo do cartaz que irritou
António Costa. O cartaz e a reacção de António Costa convergiram num ponto: a vulgaridade
discursiva do contraditório político. A inapropriada invocação de racismo não é nova em
António Costa. Já a tínhamos visto, por exemplo, no Parlamento, numa inusitada resposta a
Assunção Cristas. Tão-pouco foi nova a “elegância” retórica usada para responder aos
manifestantes. Tivemos dela uma nota eloquente quando António Costa se referiu aos
militantes da Iniciativa Liberal, dizendo que “quando tentam guinchar, os queques ficam
ridículos". O resto foi uma manobra mediática, previamente pensada para prejudicar a
imagem pública dos professores e o generalizado apoio às suas reivindicações.
Podemos continuar a discutir a acidez do cartaz, ou se é ou não portador de mensagem
racista. Mas se o fizermos, sobretudo fixando-nos apenas na sua literalidade, tropeçamos na
rasteira que António Costa nos passou. Entendamo-nos: tanto o cartaz de António Costa, como
outro, análogo, de João Costa, foram usados em várias manifestações, há vários meses.
Porquê, então, esta reacção, só agora? Porque António Costa optou por uma estratégia de
vitimização para desviar a discussão política daquilo que é essencial e realmente interessa. E o
que a todos interessa, particularmente ao futuro dos alunos e do país, mas a António Costa
incomoda, é discutir a forma de interromper uma política educativa distópica, pela qual ele é o
principal responsável.
António Costa não gostou do que lhe mostraram na manifestação de professores
descontentes, em Peso da Régua. E irritou-se, visivelmente, quando dialogou com eles. Mas os
professores também não gostam do que António Costa lhes vem fazendo, e às suas famílias,
há anos, e estão, igualmente, visivelmente irritados.
Por exemplo, na conversa envenenada sobre o descongelamento das carreiras, é
simplesmente patusca a ideia dominante de António Costa: os professores devem ficar-lhe
eternamente agradecidos por ter descongelado as carreiras em 2018. Como se a coisa fosse
uma magnânima liberalidade e não um retomar de uma obrigação legal, que nunca deveria ter
sido interrompida. Como se não tivessem sido dois governos do PS, um deles a que o próprio
António Costa pertenceu, que, por duas vezes, decretaram tal atropelo à lei. Como se fosse
natural congelar uma carreira, suspendendo parcial e unilateralmente, a favor do Estado, um
contrato assinado com os professores, titulado por Decreto-Lei não derrogado.
Não há muito tempo, António Costa considerou absurdo que um professor seja colocado a
centenas de quilómetros de casa. Mas não só os quase oito anos que já leva de Governo foram
insuficientes para resolver o problema, como a sua última iniciativa legislativa o ampliou
enormemente.
Os professores estão cansados dos atropelos à sua dignidade, das mentiras e da desonestidade
intelectual do ministro da Educação, que António Costa suporta com a mesma obstinada
arrogância com que suportou Cabrita e agora Galamba.

2. Os rankings voltaram às primeiras páginas dos jornais. Apesar de não me aquecerem a alma,
não são o diabo que o ministro da Educação pinta, sobretudo se tivermos em conta a evolução
da forma como a informação tem vindo a ser tratada e as correlações estabelecidas entre as
diferentes variáveis disponíveis.
Sem perder de vista que as escolas públicas acolhem todos os alunos, com todas as carências e
debilidades sociais e económicas, enquanto as privadas escolhem os seus alunos, mesmo para
além da selecção que a propina de entrada e as mensalidades se encarregam de ditar, não é só
essa circunstância que explica que os lugares cimeiros, em todos os rankings, pertençam a
escolas privadas e que quase tenha duplicado o número das públicas com média negativa nos
exames (30% a Português e 70% a Matemática). O que explica a indesmentível mediocridade
dos resultados das escolas públicas é a degradação que as caracteriza, com milhares de aulas
perdidas por falta de professores, com um currículo nacional retalhado e reduzido a indigentes
“aprendizagens essenciais” e com uma indisciplina sem controlo, que se apossou da sala de
aula. Tudo questões bem mais importantes que os exercícios hermenêuticos sobre cartazes
satíricos.


*Professor do ensino superior

07/06/2023

A escola dos ricos e a escola dos pobres


no Público

7 de Junho de 2023

por Santana Castilho*

 

Dois anos de pandemia e um ano de conflitos permanentes já comprometeram
demasiadamente o futuro de milhares de estudantes, privando-os do direito crucial a uma
educação pública de qualidade. Não podemos continuar assim.

O sistema público de ensino está profundamente doente, vítima do culto de banalidades
destruidoras do conhecimento e do rigor e de práticas gestionárias alimentadas pela
sobranceria da ignorância. Tudo o que pode ser feito para melhorar o nosso sistema de ensino
é conhecido. Mas as decisões dos últimos anos têm ignorado o conhecimento que a
investigação em Epistemologia da Educação tem proporcionado, designadamente a produção
científica de investigadores de orientação cognitivista. Urge, assim, parar a distopia pedagógica
em que vivemos, que nos vai afastando dos resultados médios da OCDE, a que chegámos com
o esforço de tantos e apesar das diferenças políticas de sempre.

“Os professores não param”, gritam os próprios a um ministro enfastiado. Mas sem resultados
para a luta que travam desde há meio ano, de que sobram evidências lapidares: continuam
mergulhados em tarefas aberrantemente burocráticas e improdutivas, têm como nunca a
dignidade profissional e a independência intelectual calcadas por políticas de terror social e
clamam pela contagem do tempo de serviço, correndo sobre uma espécie de passadeira
rolante, que os esgota, sem saírem do mesmo sítio.

Poderá o país aceitar este desperdício de gente formada à custa de muitos milhões?
Poderá a Educação continuar sob a tutela de um ministro que desconhece o que se conhece?
Que não faz? Que desfaz? Que sonega? Que manipula? Que mente? Que dificulta?
Se aceitarmos que uma civilização é um conjunto de valores fundamentais, que resultaram da
partilha de um passado comum e determinam uma forma particular de ver o mundo e regular
uma sociedade, deve-nos preocupar seriamente o tanto que a escola pública perdeu nos
últimos anos.

Os proclamados bons resultados económicos não têm contribuído para obstar à degradação
da Educação e à sangria dos seus profissionais qualificados. Outrossim, o sistema de ensino
tem sido uma das principais vítimas do desinvestimento nos profissionais do Estado e os
alicerces da democracia estão a ser corroídos pelo divórcio existente entre as necessidades
urgentes do sistema de ensino e as medidas erradas tomadas pelo Governo.

Consequentemente, vão-se construindo em Portugal duas vias de ensino: uma privada, para
elites, alicerçada na tessitura dos saberes clássicos com as novas tecnologias e no estudo
estruturado das Humanidades, das Ciências, das Línguas e das Artes; outra, pública, dita
inclusiva, para o povo pobre, edificada sobre os escombros da desconstrução do currículo
nacional e limitada às “aprendizagens essenciais”.

E perante tudo isto, vivemos numa bolha mediática que confere tempo generoso à divulgação
de protestos animados por bombos e gaitas e aos jogos cínicos da disputa entre o Presidente

da República e o primeiro-ministro, mas raramente consigna espaço ao substantivo e dá voz a
quem tem conhecimento fundamentado sobre a causa dos problemas e a forma de os
resolver, confrontando e debatendo alternativas, num exercício de verdadeiro debate político
sobre a vida dos alunos, das famílias e dos professores.

Vai encerrar-se um ano lectivo quase perdido e já pairam nuvens negras sobre o próximo. A
escola pública carece de uma intervenção de emergência, sendo certo que nenhuma
terapêutica gerará resultados se não incluir as reclamações justas dos professores e não anular
os absurdos nefandos que os calcam. Receita mínima para os remover: assumir a educação
como prioridade política; aceitar a decantada recuperação do tempo de serviço dos
professores, ainda que repartida ao longo dos próximos anos; alterar profundamente o
estatuto da carreira docente; institucionalizar e dimensionar realisticamente quadros
docentes, de pessoal auxiliar e de equipas multidisciplinares; eliminar a burocracia estéril;
garantir a disciplina na sala de aula e a autoridade do professor; extinguir os agrupamentos
escolares; alterar o modelo de gestão dos estabelecimentos de ensino, recuperando a sua
democraticidade; proceder à reformulação integral do plano de estudos do ensino obrigatório
e dos respectivos conteúdos disciplinares.


*Professor do ensino superior

05/06/2023

O estado a que a Educação chegou

no Público
24 de Maio de 2023
por Santana Castilho
 
 
No meio da turbulência política que se vive, passa despercebida a gravidade de muito do que vai sucedendo na Educação. Mas, independentemente das sensibilidades partidárias, é impossível que os portugueses atentos à vida pública não sintam uma profunda inquietação com o estado do nosso sistema de ensino e com o futuro dos alunos.
 
Greves, manifestações, cordões humanos, acampamentos, vigílias, idas a Bruxelas, uma greve de fome, petições públicas, abaixo-assinados e demais iniciativas mobilizadoras, ao longo de seis meses, que resultados deram? Estes: 
 
1. A convicção não é só minha, mas genérica: os concursos de colocação de professores, que acabam de ocorrer, vão prejudicar os docentes, vão piorar o já atribulado funcionamento das escolas e gerar uma nova vaga de abandono da profissão. À destruição desumana do equilíbrio familiar mínimo, a um ano de prazo, dos que concorreram, somar-se-á a revolta dos milhares que, apesar de terem os tais 1095 dias de serviço, não satisfizeram os ardilosos critérios de vinculação. Como se o anterior não chegasse, há que contar com as nefastas consequências do funcionamento dos chamados “conselhos de zona pedagógica” e com o diploma sobre o tempo de serviço, que se seguirá. 
 
2. Já se viu o suficiente para dizer que as provas de aferição em formato digital redundarão num grande fiasco, apesar do presidente do Instituto de Avaliação Educativa ter afirmado, irresponsavelmente, que existiam todas as condições para o seu arranque. Ao erro conceptual acresceram sucessivos erros operacionais, que evidenciaram a incompetência do IAVE e contribuíram para o desaire da iniciativa.
Será aceitável submeter a provas de aferição em formato digital alunos do 2º ano da escolaridade básica, sem competências sólidas de leitura e escrita, de caligrafia titubeante porque a sua motricidade fina ainda lhes coloca problemas de manuseamento de um instrumento de escrita? É a todos os títulos censurável a desvalorização da importância da escrita manual que daqui resulta. A capacitação digital é desejável e requerida. Mas precedem-na outras capacitações, que têm sido doentiamente ignoradas. Paralelamente, a 15 de Maio, os responsáveis pelos exames da zona norte, centro e Lisboa demitiram-se, criando assim dificuldades à realização dos exames nacionais.
 
3. A competência leitora dos nossos alunos do 4º ano da escolaridade básica, apurada nos resultados do PIRLS 2021, recentemente conhecidos, vem a piorar desde 2011: 541 pontos em 2011, 528 em 2016 e 520 agora. Mas o ministro da Educação, do alto da sua hilariante narrativa, qual seguidor da escola burlesca de TariK Aziz, ignorou esta factualidade e declarou-se “surpreendido pela positiva”, encontrando progressos onde há um evidente retrocesso. A falta de seriedade intelectual deste mestre da Patafísica (a “ciência” das soluções imaginárias), que deturpou grosseiramente os dados dos testes a que os alunos se submeteram, para enganar a opinião pública, não ficou sem resposta. Com fina elegância, João Marôco” (“O vaso vazio”, Púbico de 20/5/23) explicou bem, em registo documentado, aquilo que o ministro foi: cavaleiro de triste figura. 
 
4. Na senda do que já tinha acontecido em 2018, os juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) consideraram ilegais os serviços mínimos aplicados às greves dos professores, alegando que "o direito à greve só pode ser sacrificado no mínimo indispensável" e que "a imposição de serviços mínimos no setor da educação cinge-se às atividades de avaliações finais, de exames ou provas de caráter nacional, que tenham de se realizar na mesma data em todo o território nacional". Nada que os professores e as suas organizações sindicais não tivessem já dito, desde o início do contencioso.
 
Pois é com este pano de fundo que o ministro da Educação, primeiro responsável pela ilegalidade, porque foi ele que requereu a intervenção dos colégios arbitrais, se pretende desresponsabilizar, afirmando que não cabe ao Governo resolver os casos das faltas injustificadas ou dos processos disciplinares contra professores que aderiram às greves.
 
Tomara eu que estas linhas ajudem os mais ausentes a perceber como age e como reage o ministro da Educação, que se diria refém de uma qualquer peça de Ionesco, tantos são os absurdos em que se enleia.
 
In "Público" de 24.5.23