18/08/2021

Isto e pouco mais traria paz e sucesso às escolas

 


no Público

18/8/2021

por Santana Castilho*

O acordo sobre a formação profissional e qualificação dos portugueses, assinado em sede da Comissão Permanente de Concertação Social, é uma pérola do clássico “eduquês” das Novas Oportunidades, agora ressuscitadas. São mais de cinco mil milhões de euros para “formação contínua de formadores” (pág. 4), “educação e formação à distância” (pág. 6), “maior centramento (sic) nas competências … promovendo maior flexibilidade” (pág. 7) “processos de upskilling e reskilling (o itálico é meu) de curta e média duração” (pág. 14) e toda uma cascata de delírios palavrosos, que fazem antever a festa que aí vem. Ler aquelas inenarráveis 19 páginas mostra bem como António Costa aprendeu com o seu mestre José Sócrates e ajuda a entender a doutrina bolçada sobre o sistema de ensino. Imagino que, no fim do acto, patrões e UGT (CGTP excluiu-se) se terão precipitado a dirigir a António Costa a pergunta que ele próprio fez a Ursula von der Leyen, em lapso freudiano definidor de um carácter: já posso ir ao banco?

Tudo o que pode ser feito para melhorar o nosso sistema de ensino é conhecido. Mas as decisões deste Governo têm ignorado o conhecimento que a investigação em Epistemologia e Educação tem proporcionado, designadamente a produção científica de investigadores de orientação cognitivista. E com a mansidão política da oposição e a apatia dos professores, não é fácil opor iniciativas sérias à amálgama de teorias desactualizadas, que os responsáveis impõem como de vanguarda.

Há seis anos que venho mostrando nesta coluna os sinais do sistema dominante, uma espécie de distopia pedagógica paranóica, que nos vai afastando dos resultados médios da OCDE, a que chegámos com o esforço de tantos e apesar das diferenças políticas de sempre. A cada passo desse triste caminho, apontei sinais. Dois deles foram particularmente perniciosos, a saber:

- A ideia de que transmitir conhecimento é redundante, porque os alunos têm-no armazenado nos seus smartphones. Donde, o importante são as “competências” e “aprender a aprender”. Como se a psicologia cognitiva não tivesse concluído, há muito, que só conhecimento gera conhecimento e que para entender e assimilar conhecimento novo é necessário possuir-se conhecimento anterior, que vincule a aquisição do novo. Com efeito, John Sweller [Sweller, J. (1988). Cognitive load during problem solving: effects on learning. Cognitive Science 12 (2): 257–285], conhecido pela formulação da teoria da carga cognitiva, tornou isso evidente. Na peugada, aliás, dos anteriores estudos de Bruner e Ross, que demonstraram a importância do conhecimento acumulado pela memória de longo prazo na resolução de novos problemas.

- A ideia de que são os alunos que devem orientar a sua educação, mediante metodologias de descoberta, e não os professores, segundo o tradicional ensino directo. Ora não é procurando que os alunos actuem como cientistas nas aulas que os preparamos para serem cientistas no futuro. Uma coisa são previsões não fundamentadas de resultados, outra coisa é a medição dos resultados. Com efeito, a produção científica disponível mostra que é aprendendo por ensino directo, feito pelos professores, que não por metodologias de descoberta, que se obtêm os melhores resultados. Ver, a este propósito, David Klahr, Department of Psychology, Carnegie Mellon University: The equivalence of learning paths in early science instruction: effects of direct instruction and discovery learning.

Aqui chegados, perto do início de mais um ano lectivo, deixo um sumário mínimo para sairmos do trilho do retrocesso:

1. Elevar a Educação a prioridade política, do pré-escolar ao superior, passando pelo básico e secundário. Rever a Lei de Bases do Sistema Educativo. Universalizar todo o pré-escolar até à entrada no básico. Proceder à reformulação integral do plano de estudos do ensino obrigatório e dos respectivos conteúdos disciplinares, assente no estabelecimento de um exaustivo diálogo social sobre Educação, que envolva os diferentes protagonistas educativos (Ministério da Educação, sindicatos de professores, associações profissionais de professores, associações de pais, partidos políticos, associações científicas, associações empresariais e associações de estudantes). Sendo certo que o acompanhamento das crianças enquanto os pais trabalham é um problema para o qual a sociedade deve encontrar resposta, é inaceitável que muitas crianças cheguem a permanecer na escola dez horas por dia. Importa por isso avaliar o impacto que essa permanência significa no desenvolvimento das crianças, sobretudo quando as actividades que lhes são proporcionadas (utilização excessiva de tarefas de natureza escolar, por exemplo) ignoram ditames básicos da psicologia do desenvolvimento. Eliminar a burocracia estéril. Pôr cobro à hiperprodução de normativos.

2. Valorizar a autoridade do professor. Operar a revisão do estatuto da carreira docente, particularmente para remover os constrangimentos injustos de progressão e desenhar um novo modelo de avaliação do desempenho. Abolir a classificação do desempenho, entre pares, dentro da escola. Pôr fim à instabilidade e à precaridade da profissão docente, designadamente pela estabilização dos quadros, alteração dos mecanismos de concursos e vinculação de contratados. Reduzir o número de alunos por turma e definir o máximo de alunos por professor.

3. Proceder à revisão do modelo de gestão dos estabelecimentos de ensino, recuperando a sua democraticidade. Pôr fim aos agrupamentos. Nunca, em cada escola, se deveria ter perdido a sua identidade de cultura e de actuação pedagógica. A agregação de escolas foi uma das medidas de maior impacto negativo no funcionamento do sistema. Se há situações geográficas onde a iniciativa poderia ser considerada, a generalização a todo o país foi um verdadeiro desastre e dilacerou o ambiente relacional na generalidade das escolas. Resolver definitivamente a carência de funcionários auxiliares nas escolas. Institucionalizar as equipas multidisciplinares (professores, psicólogos e técnicos de serviço social) que assegurem o acompanhamento dos alunos sinalizados pelos conselhos de turma como estando em situações de risco, tendo presente que as estratégias de apoio ao primeiro sinal de dificuldade são decisivas. Reconhecer que as escolas carecem de apoios diferentes, em função dos contextos diferentes em que operam. Criar nas escolas estruturas de apoio técnico especializado, designadamente face às alterações operadas pela digitalização.

4. Promover, de modo sério e exigente, a relação entre o ensino profissional e as necessidades das empresas, sem transformar as escolas de ensino humanístico em institutos de formação profissional. Melhorar a eficiência do sistema de qualificação por via de uma eficaz articulação entre as políticas de Educação e Formação, as primeiras tuteladas pelo Ministério da Educação e as segundas pelo Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social.

Isto e pouco mais traria paz e sucesso às escolas.

*Professor do ensino superior

04/08/2021

Agir é a questão

 

A história do pensamento humano e dos acontecimentos que provoca está cheia de exemplos de multidões vítimas de políticas desumanas e de políticos sem alma. Quase sempre, os algozes odeiam as vítimas. Quase sempre, as vítimas não agem com vigor suficiente para fazer retroceder a injustiça. E soçobram por medo e por acomodação.
 
A avaliação do desempenho dos professores, tal como hoje é promovida, é um cancro pernicioso na vida das escolas. É uma saga segregacionista, que beneficia uns e esmaga outros. Tudo sob o olhar colaboracionista de chefes, cuja consciência não passa de um balde de despejo do pior que a sociedade tem. São eles que decidem os que progridem e os que apodrecem, vazios, esgotados, no corredor da morte em que se transformou a carreira docente. Tudo sob o anonimato e a opacidade que os normativos administrativos promovem. 
 
Não há a mínima evidência de que este modelo de avaliação tenha contribuído para a melhoria da qualidade do ensino. Depois de vários anos de aplicação, afirmou-se como gerador de arbitrariedades e repressão, ao gosto da gestão educacional prevalecente. Não é por acaso que é individual, quando poderia fazer mais sentido avaliar equipas. O seu propósito é que cada professor acabe por ficar sozinho no seio de uma classe donde a solidariedade foi varrida.
 
Cerca de 4400 professores estão há anos (alguns há mais de uma década) impedidos de progredir para os 5º e 7º escalões da carreira, apesar de para tal reunirem todos os requisitos legais (tempo de serviço, formação complementar exigida, classificação de desempenho de Bom, Muito Bom ou Excelente e, no caso dos que se encontram no 4º escalão, sujeição a uma avaliação externa, por via de observação de aulas). A vilania e a arbitrariedade de um sistema de quotas, idealizado por insanos, determina que um docente classificado com a menção de Excelente possa ver essa classificação administrativamente diminuída, ficando retido no escalão em que está, porque a quota disponível no seu agrupamento assim o determina, enquanto outro, de outro agrupamento, ainda que com classificação inferior, lhe passa à frente e muda de escalão, no ambiente de roleta russa em que a coisa se transformou. Não fora esta discriminação suficiente, acresce que, na Madeira e nos Açores, e bem, todos os que reúnem as condições mínimas exigidas mudam automaticamente de escalão, como se de outro país se tratasse.
Quando torna públicas as listas ordenadas dos candidatos à mudança de escalões, o Ministério da Educação subtrai, convenientemente, parte da informação que permitiria detectar injustiças e favorecimentos. Naturalmente que o faz a coberto da cínica invocação da protecção de dados individuais.
 
Recorde-se que a ordenação dos candidatos deve submeter-se ao tempo de serviço no escalão, contabilizado em dias; havendo empate, prevalece a classificação do desempenho imediatamente anterior; persistindo ainda o empate, é preferido o candidato mais velho. Ora sendo ocultados os dados que permitem escrutinar o respeito destes indicadores, subsiste a dúvida, legitimada, em cúmulo, pela circunstância da Comissão de Acesso a Documentos Administrativos e a Provedoria de Justiça terem expressado parecer fundamentado no sentido de que tais elementos devem ser públicos.
 
Os parâmetros e os descritores vigentes, sistema fora, quando existem, são uma manta de retalhos, recorrentemente sem coerência, com que as respectivas SADD coexistem, sem sobressalto ético ou deontológico.
 
Se este modelo de avaliação do desempenho é perverso, aberto ao favoritismo casuístico, se contribui para piorar o sistema de ensino, que não para o fortalecer, se desmotiva e revolta, porque não agem os professores, de modo vigoroso e eficaz? Porque estão cada vez mais apáticos e politicamente passivos. Porque, cada vez mais, ganham subserviência e perdem dignidade.
 
Infelizmente, esta situação soma-se a um ambiente geral de desrespeito pela Constituição e pelos direitos fundamentais, no quadro das liberdades e garantias dos cidadãos, promovido por aqueles que institucionalmente maior dever têm de os proteger. Nunca como agora, em 47 anos de democracia, vi tamanha ligeireza governativa para favorecer formas de discriminação, confundindo coacção com protecção, ao arrepio do que consigna o art.º 26º da Constituição da República Portuguesa. 
 
In "Público" de 4.8.21