no Público
16/9/202
por Santana Castilho*
Quando tudo parece ter sido dito, é difícil voltar ao tema. Mas ficar calado poderia dar a ideia de que sou neutro. E não sou. Já vivi o suficiente para ver que o futuro das gerações jovens é manipulado por visões de grupos influentes, que actuam movidos por interesses minoritários. Por isso, acredito que viver supõe tomar partido e não ficar indiferente, em situações como aquela que agora se analisa. Não me proponho contraditar um ex-presidente da República, um ex-primeiro-ministro, o patriarca de Lisboa, bispos, imãs e políticos de renome. Proponho-me contraditar uma espécie de Inquisição nova, que ressuscita tribalismos antigos.
Olhemos para três dos argumentos mais usados:
- As políticas públicas de educação devem considerar o que os pais entendem que está certo ou errado para educar os seus filhos.
O unanimismo não é marca caracterizadora do currículo nacional. São inúmeras as vertentes em que as opiniões divergem. Assim sendo, segundo os defensores de tal ponto de vista, nenhuma disciplina devia ser obrigatória. Poder-se-ia organizar assim um sistema nacional de ensino?
Embora os pais tenham a tutela dos filhos até à sua emancipação, os filhos não são propriedade do Estado nem dos pais. Pais e filhos têm almas distintas e direito a formas de pensar e sentir diferentes.
Na escola laica da República há um currículo nacional que obriga a todos, meninos ou meninas em idade escolar, diferentes mas iguais. Naturalmente que poderemos discutir que autores são de leitura obrigatória num programa de Literatura ou discutir as narrativas oficiais do programa de História. Coisa diferente é aceitarmos que todos aqueles que não vejam os seus pontos de vista acolhidos tenham o direito a ver os filhos dispensados de frequentar determinadas disciplinas. Uma mãe que negue a existência do Holocausto não pode retirar o filho da frequência das aulas de História. Um pai criacionista não pode subtrair o filho ao estudo da teoria da evolução das espécies.
- Os pais têm direito de objecção de consciência relativamente à Cidadania e Desenvolvimento, porque abarca a educação sexual, competência exclusiva dos pais.
A objeção de consciência é um instituto jurídico de sociedades democráticas, invocável desde que não viole direitos de terceiros; invocável apenas pelo próprio e não por outros, em seu nome; invocável para matérias de complexidade extrema, que não para dirimir opiniões diferentes sobre conteúdos disciplinares.
A questão nuclear do dissenso é a educação sexual. Uns entendem-na como assunto a ser tratado na esfera familiar e outros como tema que deve ser abordado nas escolas. Não é fácil, nesta área, separar conteúdos ideológicos de matérias factuais. Mas importa registar que a objecção a que a educação sexual seja obrigatória é tardia, já que a lei que assim dispôs é de 2009.
- Cidadania e Desenvolvimento é uma disciplina de natureza ideológica.
A educação não pode, nem deve, ser absolutamente neutra. Como não pode, nem deve, ser doutrinária, senão naquilo que sejam as verdades cientificamente demonstradas. Mas não confundam os campos de análise para pedir que a axiologia seja substituída pelo álcool-gel da moda, asséptico e gelatinoso. Admito, até porque conheço casos, que houve abordagens inadequadas à idade e ao desenvolvimento psicológico dos alunos. Mas não os usem para corromper os propósitos formativos da disciplina. Não deve a escola abordar a violência doméstica, a sustentabilidade do planeta, a convivência democrática e o respeito por culturas diferentes da nossa? Ignoram os exorcistas da ideologia que toda a nossa vida em sociedade está obviamente marcada por escolhas ideológicas, a começar pela Constituição que nos rege?
Não deixa de ser curioso que os autores do manifesto com que se iniciou a polémica não se tenham distinguido anteriormente como críticos da evidente influência ideológica exercida pela igreja católica sobre ensino, ao longo dos tempos.
A cidadania é a alma colectiva que uma geração passa para a geração seguinte. Não visa impor o pensamento único mas tão-só conseguir que qualquer cidadão, concordando ou discordando, perceba e respeite o que o outro diz.
Se António Costa e Fernando Medina tivessem tido na escola a disciplina Cidadania e Desenvolvimento, talvez não se enlameassem hoje na comissão de honra de Luís Filipe Vieira.
*Professor do ensino superior
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