28/02/2015

Bater o pé ou abanar a cauda?

no Público,
25/2/2015

por Santana Castilho

1. Foi de subserviência que se tratou quando a ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, foi a Berlim a um beija-mão despropositado e se prestou a ser exibida como troféu de colonização moderna pelo sinistro mandarim Wolfgang Schäuble. Foi de obediência servil o triste papel que o primeiro-ministro português representou na Europa, enquanto Yanis Varoufakis lutava por uma dignidade que ele, Passos Coelho, não tem e muito menos entende. O que vai resultar da estratégia do governo grego bater o pé à Alemanha e à mesquinha empresa de negócios em que a Europa se transformou está por apurar. Mas o que resultou dos três anos que o governo português passou a abanar a cauda à senhora Merkel e aos seus capachos já está apurado e traduzido em números. Bastam algumas linhas e outras tantas colunas do Orçamento de Estado para 2015 para verificar que os 92.424 milhões de euros inscritos sob a epígrafe “operações da dívida pública” são mais que o triplo dos 29.000 milhões resultantes da soma do se prevê gastar com educação, saúde, segurança social e outras prestações sociais. Basta recordar os 300 mil emigrados forçados, o milhão e 200 mil desempregados, o milhão e 700 mil sem médico de família, os 23.089 professores, 2.107 enfermeiros, 10.842 administrativos e 21.834 auxiliares despedidos para perceber que quem com isto se sente orgulhoso jamais entenderá quem contra isto bate o pé.

O democrático bater de pé do governo grego tem um significado bem mais extenso que o querer da Syrisa. Merkel compreendeu isso quando apeou Georges Papandreou, logo que ele decidiu referendar a austeridade na Grécia. Tal como já o havia intuído quando mandou o voto dos italianos às malvas e substituiu, tecnocraticamente, sem eleições, Berlusconi por Monti. Mais que tudo, é este medo continuado que a nomenklatura política europeia nutre pelo voto do cidadão comum, suportado pelo abanar de cauda de tantos pequenos chefes, que pode agora, em boa hora, ser posto em causa.


2. Amiúde, órgãos associativos ou institucionais de directores de escolas criticam de modo contundente as políticas impostas pelo Ministério da Educação e Ciência. Quase sempre as críticas são pertinentes e quase sempre as matérias a que se referem acabam tornando mais árdua a tarefa de gerir uma escola e diminuindo a qualidade do serviço público pelo qual são, também, responsáveis. Não raro, ouvi alguns dizerem que estavam nos limites e à beira da ruptura. Mas prosseguem sempre, quando a demissão em bloco poria, num átimo, cobro ao desrespeito de que se queixam e os livraria de genuflectirem ao próximo golpe.

A 16 de Fevereiro, o Conselho de Escolas, uma espécie de adereço que se exibe quando dá jeito, um órgão que está para o Governo como Maria Luís esteve para Schäuble, tornou público um parecer em que acusa o Ministério da Educação e Ciência de transferir para as câmaras a pouca autonomia que as escolas têm e de transformar o sistema de ensino numa “manta de retalhos de subsistemas educativos”, antevendo o nascimento de uma “rede de centros de decisão cuja heterogeneidade política, económica e de disponibilidade de recursos poderá levar à criação no país de uma multiplicidade de planos de estudo, de modelos de gestão das escolas, de modelos de afectação de recursos humanos, materiais e financeiros”. Disse ainda o conselho, no parecer em apreço, que “a decisão sobre tudo o que é essencial para o funcionamento das escolas é tomada fora das mesmas, com base num aparelho burocrático de normativos e aplicações informáticas” ineficiente. Mas todos os conselheiros continuaram em funções, segundo eles pouco mais que decorativas. Estranha forma de protesto a que vai de mão dada com a perene vassalagem ao chefe. Já aqui escrevi e agora repito: que falta faz à Educação a frescura de um momento Syrisa!


3. A subserviência acaba criando nos pequenos chefes um sentimento de grande impunidade. O Diretor-Geral dos Estabelecimentos Escolares, José Alberto Duarte, com o discernimento e a competência que lhe conhecemos, entendeu não ser eticamente reprovável presidir a um júri de selecção de putativos delegados regionais de educação, apesar de um dos opositores, actual chefe de gabinete do secretário de Estado do Ensino e Administração Escolar, partilhar com ele, há anos, a mesma habitação. Denunciada a caldeirada, apimentada em cúmulo pela não divulgação dos critérios de selecção e outras irregularidades convenientes, o chefe de gabinete, em início de acomodação futura, resolveu sair de fininho. Grosso decidiram falar três dos candidatos preteridos, dois dos quais (Alberto Almeida e Maria do Céu Castelo-Branco), curiosamente, com passados de oposição a José Alberto Duarte.

Apesar da onda prevalecente, sempre sobram alguns que dizem não. 

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

14/02/2015

Municipalização da educação: quietinhos, não respirem, já está!

no Público,
11. 2. 2015

por Santana Castilho

Nuno Crato, Poiares Maduro e os autarcas experimentalistas trataram a Educação como se fosse uma grande rotunda e os professores como pacientes sujeitos a raio X: quietinhos, não respirem, já está!

É o mais generoso que se pode dizer quando se analisa o processo e a proposta de Contrato Interadministrativo de Delegação de Competências, com que pretendem pôr em prática o que é comummente designado por municipalização da Educação. O processo teve a clareza de um pântano. O documento são 28 páginas de verbo magro e matreirice gorda. Deplorável, para qualquer administração pública decente. Adequado a um Governo a que só falta privatizar o Galo de Barcelos. Passemos a alguns factos ilustrativos da mediocridade, que todos não cabem.

Várias cláusulas da proposta de contrato são ilegais, porque desrespeitam o regime de autonomia, administração e gestão das escolas públicas, fixado em três diplomas (DL n.º 75/2008, de 22 de Abril, DL n.º 224/2009, de 11 de Setembro, e DL n.º 137/2012, de 2 de Julho). É o caso concreto da alteração das competências dos conselhos gerais e dos directores, que só um decreto-lei poderia derrogar. O choque entre a lei e o contrato é mais gritante no caso das escolas com contratos de autonomia. Aqui, são duas portarias (a n.º 265/2012 e a n.º 44/2014) implodidas pela autocracia dos contratantes.

Pelo escândalo que gerou, caiu o convite escabroso para que as câmaras cortassem professores, até ao limite máximo de 5% do número considerado necessário, a troco de 12.500 euros por docente abatido. Mas porque os agiotas não dormem em serviço, a Cláusula 40.ª ampliou o cinismo da poupança a todos os recursos educativos e regulamenta a partilha de 50% dos despojos. Chamam-lhe “incentivos à eficiência”.

O pessoal não docente passa a ser gerido pelas autarquias (Cláusula 19.ª), abrindo-se a porta à utilização do mesmo em qualquer serviço camarário. A Cláusula 21.ª torna ainda mais fácil a contratação de privados para o funcionamento das AEC. A Cláusula 25.ª congela todos os gastos por quatro anos. A Cláusula 39.ª favorece a desvirtuação do trabalho pedagógico sério em benefício dos resultados nos exames. A definição dos critérios para a organização e gestão da rede escolar fica pelouro da autarquia, via verde para a privatização que se pretende. E o empreendedorismo voluntarista que as autarquias podem iniciar com a decisão sobre 25% dos curricula já esboçou os primeiros sinais com o presidente da Câmara de Óbidos a anunciar Filosofia para os alunos do 1.º ciclo do básico, yoga para os do jardim-de-infância e golfe e eco design para os do secundário.

Serão poucos os que guardarão memória do Guião para a Reforma do Estado, apresentado pelo vice-primeiro-ministro e objecto de reunião magna do Governo na Sala do Capítulo do vetusto Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça. Redigido em corpo 16 e com espaçamento pródigo para suprir em espaço o que lhe faltava em ideias, o documento teve o mérito de fixar em escrita uma agenda de entrega ao mercado das mais importantes funções sociais do Estado, sendo as propostas para a Educação o paradigma claro da intenção de utilizar fundos públicos para financiar negócios privados: criação de escolas concessionadas, instituição do cheque-ensino e reforço dos contratos de associação. Por ironia do destino, a pompa do acto foi servida por circunstância curiosa, que os monges de Cister não protegeram: a imprensa, nacional e internacional, com a prestigiada The Economist à cabeça, dava-nos na mesma altura conta da falência completa da alma mater das escolas concessionadas. A reforma inspiradora, a sueca, iniciada há 20 anos, falhara em toda a linha: a diferença de qualidade entre escolas tornou-se um problema nacional; a segregação social, que antes não existia, cresceu preocupantemente; os resultados dos alunos suecos, medidos pelo PISA, desceram exponencialmente; os gastos públicos não diminuíram; e o ministro sueco da educação anunciava o fim da festa e o retorno das escolas à tutela directa do Estado, reconhecendo que a reforma não poupou, não melhorou e segregou, em nome de uma liberdade de escolha que não funcionou.

Os pressupostos fixados na proposta de delegação de competências em apreço, cruzados com as intenções que já foram anunciadas quanto ao cheque-ensino, poderão repetir no país o que se verificou na Suécia, com a criatividade activa dos grupos económicos a explorarem o negócio até que, anos volvidos, se reconheça a sua falência. Com esta municipalização, os autarcas acabam promovendo políticas a que se oporiam se a iniciativa partisse do Governo central, e o Governo central subtrai-se, maquiavelicamente, aos protestos que as suas políticas originariam. É caso para citar Steve Jobs: “Porquê alistarmo-nos na marinha, se podemos ser piratas?”