10/10/2012

Mais Estado e pior Estado


no Público, 10 de Outubro de 2012

por Santana Castilho *

Mais Estado e pior Estado 

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1. A portaria nº292-A/2012 cria “cursos vocacionais” no ensino básico. Formalmente, caiu a intenção arrepiante de obrigar crianças de tenra idade a aprender um ofício. Mas tudo está ordenado para produzir o mesmo efeito. O diploma está abaixo do medíocre: redigido em Português pobre, tecnicamente deplorável quanto à substância, pejado de intenções de parcerias e protocolos indefinidos, não passa de uma nova versão dos Cursos de Educação e Formação, de má memória. O alvo confessado são os que chumbam mais que duas vezes. A razão por que chumbam não interessa. O cinismo não se disfarça quando se fala de crianças de 13 anos a “optarem” por um destino de vida. O acto falhado radica na qualificação de “regular” para o outro ensino, o intelectual, deixando a este, por antinomia óbvia, a condição de “irregular”. Que diria Crato, do “Plano Inclinado”, dos disparates que Crato, ministro, escreveu no artigo 9º da portaria? Que será “avaliação modular”? A que título, quando estatui sobre avaliação, confunde com ela considerações metodológicas e didácticas? Que brincadeira é aquela de quatro relatórios finais, a serem redigidos por crianças do ensino básico, que chumbaram duas ou três vezes, certamente a Português, como instrumento central de uma presumível classificação, a que ministro chama avaliação? Onde fica o seu rigor, com a trapalhada que consagra nos artigos 10º e 11º? Se o aluno se contentar em ficar por ali, o que fez “habilita”. Se quiser ir para o tal ensino “regular”, o que fez já não habilita? 
 Entendamo-nos, em seis linhas. A lei estabelece um ensino básico. Quer isso dizer que é desígnio da sociedade que todos os portugueses obtenham um conhecimento mínimo, básico. O que está fixado e não outro. O ensino profissionalizante deve vir depois. Como ensino tão “regular” como o outro. Com igual dignidade, livremente escolhido, quando a maturidade o permita, com orientação vocacional séria e cooperante, sem marca social de origem nem estigma de chumbos acumulados. 
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2. Mesmo num quadro bem visível e persistente de desorientação e vacuidade de ideias úteis, surpreende a facilidade com que Nuno Crato dá tiros no próprio pé. Mal os tribunais decidem sobre um atropelo à lei, é vê-lo partir para outro, fora de tempo, qual cavaleiro de triste figura. Quem, equilibrado, se lembraria de decidir, agora e contra uma prática estabilizada desde 2007, que os exames do 12º ano passariam a versar as matérias do 10º e 11º, também? Felizmente que, desta feita, a asneira foi engolida numa semana. Mas deixou mais um estilhaço da credibilidade há muito implodida. 
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3. Nuno Crato tutela a Parque Escolar, um símbolo do desvario político que nos trouxe ao abismo. Tem uma dívida próxima dos 2.000 milhões de euros. Em 2011, enquanto Crato despediu professores aos milhares, essa empresa mais que duplicou o seu pessoal, aumentando a respectiva despesa para 13 milhões de euros. Sem que nada tenha acontecido aos responsáveis, ultrapassou em 70 por cento o orçamentado desempenho da sua actividade e pagou 105 milhões de euros a arquitectos e 750 mil a advogados, sem maçadores concursos públicos. E sem que o ministro pestaneje ou Gaspar fale mais rápido que o costume, acaba de lançar um concurso público de 98 mil euros para que, pasme-se, … lhe digam quanto valem as escolas que o casino do Estado lhe colocou no regaço. Isto, mais os 61 mil pagos a Sérvulo Correia e Associados (que se somam aos 32 mil de que não se fala, ajustados por boca logo que o Governo tomou posse) é tão-só uma gota nas desvergonhas do Estado. 
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4. Os detalhes precedentes, graves em si mesmos, são mais graves na medida em que ilustram a incapacidade de um trio patético de governantes para o ensino não superior, incapazes de fazer algo planeado e sério, para além de complicarem inutilmente a vida dos professores e dos alunos e criarem mais Estado, mas pior Estado. E são ainda mais graves na medida em que não constituem excepção. Outrossim marcam um colectivo em decomposição acelerada. 
Como já todos entenderam, o aumento de impostos é a prazo ineficaz. Por exaustão dos contribuintes, a quebra das receitas é a resposta perversa, mas certa. Entrámos num vórtice de que só sairemos com outros governantes, minimamente conhecedores da realidade nacional. A insolência destes vai acabar incumprindo o incensado memorando. Pelo meio ficará um caminho juncado de cadáveres, no dizer do novo bispo vermelho, fruto de uma governação por catálogo, obsessiva e sem sentido, que recusou propostas e avisos de todos os quadrantes, com o único argumento, democrática e socialmente terrorista, de que não há alternativas. Este é o paradoxo de Passos. Queria menos Estado e melhor Estado. Vai partir com mais Estado e pior Estado.
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* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

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comentários (à nota publicada pelo Professor SC no facebook) 
retirados daqui :

Ana Araújo Só com outros governantes! Honestos e sensatos...
 
Rui Domingos Uma questão: quem pagará os custos (equipamentos, salários, despesas de funcionamento, consumíveis, etc) dos tais novos cursos? O nosso apertado OE?
 
Manuel Santos Desolador. Não encontro palavras nas quais caiba a canalhice desta gente.
 
Luís Sérgio Rolão Mendes Crato e Passos para a rua. SEm demora.
 
Maria Mendonça Completamente de acordo, como sempre. Em tudo o que disse, em tudo o que não disse,mas que se adivinha... A degradação do ensino, exercida por quem nada percebe do métier, ano após ano, por tontinhos de gabinete que não têm qualquer noção do que se passa no mundo real,é constante e angustiante... Qualquer dia o estrago é irreversível... Quero novos governantes,mas sobretudo, novos políticos com credibilidade, honestidade e,essencialmente, poucos vícios de poder... Que venham ideólogos de verdade e não políticos de meia tigela agarrados aos tachos e carreiristas por vocação...
 
Madalena Costa Fernandes Governo de salvação poderia ser a solução Professor? Se eu tivesse algum poder votaria em si...
 
Hugo Pires Portugal investiu na Educação do Gaspar, mas ele próprio assume que irá reduzir o investimento na Educação das pessoas. Hipocrisia nojenta!
 
Luís Salvado Convém, para o poder político, criar cidadãos formatados assim: acríticos, sem consciência cívica e despojados de qualquer capacidade reinvindicativa. Estão lançadas as bases para a criação de escolas de elites versus escolas de pobres. Parabéns, professor Santana Castilho, por mais estas sábias palavras.
 
Berta Prata Desta vez, limito-me a acrescentar a minha contínua e já gasta incredulidade para o desnudar deste país. Já não tenho palavras honestas para dirigir a esta cambada de políticos. Levantarei a minha voz sempre, mesmo que o silêncio pareça pairar. Sinto-me exausta, andamos exaustos e quase moribundos com todos aqules que nos vão roubando um pouquinho de nós todos os dias. Obrigada, Professor, pela denúncia e pelas suas palavras, sempre em alta voz, ainda que muitos o não leiam, outros o não entendam ,e outros ainda que não querem entender.
 

1 comentário:

Carla disse...

Lamento dizer, mas cada vez mais vejo a classe dos Professores dividida. Passam-se situações vergonhosas nos Agrupamentos, como muita falta de ética e deontologia. A meu ver, cabe à nossa Classe Docente modificar muitos maus hábitos que se criaram após o estatuto da carreira docente. Deixemo-nos de olhar de modo indiferente por lecionarmos em Ciclos diferentes, de uns serem Professores generalistas e outros com formação específica e concentremo-nos no mais importante: uma Escola pública digna, com qualidade e ética.
Devemos saber qual o nosso papel na sociedade enquanto Educadores, termos ética e deontologia entre os pares, dialogarmos e partilharmos mais sobre as boas práticas pedagógicas e didáticas diárias.Somos humanos, erramos, mas entre pares devemos saber fazer crítica construtiva, que dá mais trabalho, mas temos de agir como Professores/Educadores que somos: construir sempre para melhorar.