Os diferentes tratamentos da realidade
por Santana Castilho *
Os diferentes tratamentos da realidade
Vieram a público dois importantes relatórios sobre Educação. Já me referi ao primeiro, Education at a Glance 2016, da OCDE. Importa hoje abordar o segundo, Estado da Educação 2015, do Conselho Nacional de Educação. São 300 páginas, que radiografam a educação nacional, compilando dados de fontes diversas. Eis a síntese que me parece útil, em números, comprimida para o espaço de que disponho: a população portuguesa decresce desde 2010 (somos 10.358.076, mas éramos mais 215.024 em 2010); 14,2% são jovens, 20,5% são idosos, 52,6% são mulheres e 47,4% homens; a população activa diminuiu 5,5% na última década; o saldo natural (os que nascem menos os que morrem) é negativo, desde 2009; o saldo migratório (os que chegam menos os que partem) é, também, negativo, desde 2011; embora 2015 registe um ligeiro aumento de nascimentos, prevê-se que, nos próximos 5 anos, a diminuição das inscrições no 1º ano do ensino básico duplique por referência à verificada nos últimos 10 e só a partir de 2022 se comece a inverter a tendência.
A taxa de abandono precoce da educação (13,7%) está, felizmente, em queda; as taxas de conclusão do ensino básico e dos cursos do ensino secundário aumentaram; verificou-se nos últimos 10 anos um forte crescimento dos níveis de escolaridade da população activa (+ 58,5% relativamente ao ensino secundário e + 66,8% no que toca ao superior); no mesmo período, o ensino público não superior perdeu 73.572 alunos, enquanto o privado ganhou 18.912; nos últimos quatro anos, diminuiu significativamente o número de técnicos de educação especial, embora tenha aumentado o número de alunos dessa área; a relação psicólogos/alunos, no ensino público, é 1/1.270; na última década, o sistema de ensino perdeu 40.159 docentes e a despesa pública em percentagem do PIB reduziu 15% para o 1º ciclo do ensino básico e 8,3% para os outros dois ciclos e para o secundário.
Fora outro o autor desta curta síntese e os números retirados de tantos quadros e gráficos seriam diferentes. Sejam quais forem, mais importante que mostrar é interpretar, relacionar e explicar.
Quando falamos de recursos públicos, a prestação de contas é um conceito que colhe ampla aceitação no seio de qualquer sociedade democrática. Mas a tendência actual para tudo medir e tudo reduzir a números, seja qual for a natureza e a complexidade dos fenómenos em causa, vem-nos mergulhando numa cultura comunicacional de pendor estatístico e econométrico que, amiúde, não serve a verdade de que a democracia carece, porque cada arauto manipula os dados até identificar a realidade com os seus interesses.
Sobre um fenómeno, estatisticamente tratado, não existe, normalmente, uma só leitura. Existem leituras (e sublinho o plural), com pontos fortes e fracos, segundo a perspectiva de análise, as fontes usadas e os processos de construção dos indicadores. Disto mesmo encontramos abundantes exemplos na Introdução ao Estado da Educação 2015. Sobre o bullying, diz-se que “é cada vez maior a percentagem de alunos que afirma nunca terem sido vítimas de bullying” e diz-se, também, que Portugal pertence aos “países da OCDE onde essa prática concita maior número de queixas”. Sobre o grau de satisfação dos alunos com a escola, afirma-se que os alunos portugueses são dos que se sentem mais felizes. Mas, noutro quadro, só 12% dizem gostar muito da escola. E o perfil de felicidade referido contradiz, claramente, a opinião dos directores sobre o mesmo tema.
Se mudarmos de campo e passarmos para a discussão política dos últimos dias, sobre a evolução da economia e das finanças públicas, vemos o Governo a entoar hosanas à execução orçamental apurada no fim de Agosto (o défice fixou-se em menos 81 milhões quando comparado com Agosto de 2015). Mas se olharmos para o processo que nos trouxe a este défice melhorado, que vemos? Que até ao fim de Agosto o Estado cobrou em receitas (impostos, basicamente) 49,2 mil milhões de euros (mais 622 milhões relativamente a Agosto de 2015) e gastou 53,8 mil milhões (mais 541 milhões relativamente a Agosto de 2015). Assim, o défice das contas públicas, que em Agosto de 2016 se fixou em 4,6 mil milhões, melhorou em termos homólogos porque a carga fiscal aumentou, independentemente de qualquer juízo de valor sobre a natureza dos impostos que subiram e sobre a mudança de critérios para distribuir a riqueza.
O problema da nossa política é a incapacidade persistente em tomar como dialogantes as perspectivas diferentes, de modo a gerar entendimentos mínimos sobre o que é essencial. E assim vivemos, seja na Educação, seja na Economia, em ciclos de mudanças políticas que primam pela lógica primária de substituir o que se encontra pelo seu oposto, com a promessa recorrente de amanhãs que cantarão e a estratégia gasta de transformar a realidade no interesse partidário.
* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)
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