08/12/2019

Os espanadores e o senso comum

1. Interpelado por Rui Rio no último debate quinzenal, António Costa meteu os pés pelas mãos no discurso, mas esclareceu as intenções: invocando argumentos não demonstrados, travestiu de progresso mais um retrocesso, qual seja o de acabar com as reprovações no ensino básico. Petulante, acusou Rui Rio de se guiar pelo “senso comum”, em lugar de seguir “decisões informadas”. O problema é que qualquer pavão que use as decisões do PS em matéria de Educação, “assentes nos estudos pedagógicos mais informados”, ficará reduzido a espanador pelo simples “senso comum”.

Na altura, António Costa exibiu a primeira página de um estudo que não leu, sobre uma matéria que nunca lhe importou. O estudo, que não diz o que ele disse que diz, é teoricamente bem construído, mas deve ser confrontado com a realidade. E a realidade mostra que as reprovações estão associadas a alunos carenciados e à falta de recursos das famílias e das escolas. Eliminá-las passa por políticas sociais que combatam as desigualdades, que não por colocar ainda mais pressão sobre professores desmotivados, mal pagos, expostos à indisciplina e à violência que grassam nas escolas e escravizados por trabalho sem sentido e normativos manicomiais.


2. É enviesado o raciocínio de quantos afirmam que o “chumbo” não serve para nada. Como se o “chumbo” fosse um instrumento de ensino. O “chumbo” é apenas uma expressão classificativa, de último recurso, que introduz um limiar de exigência mínima numa escala classificativa (classificar é seriar). A taxa de reprovações em Portugal (13,6% no secundário e 5% no básico, dados de 2017/2018) tem vindo a diminuir ao longo dos anos e os resultados do nosso sistema de ensino têm vindo a melhorar nas avaliações internacionais, não sendo possível, contrariamente ao que afirmam os porta-vozes do regime, falar de consenso na produção científica sobre os malefícios das reprovações. Há matérias que requerem aprendizagens incrementais e acumulativas, sendo garantido o desastre quando se pula para um nível superior sem domínio do anterior.


3. Quando se retomou a actual polémica sobre a validade das reprovações, li e reli que a sua abolição significaria uma poupança de 250 milhões de euros por ano. É fácil perceber como os criadores da cifra a calcularam: multiplicaram o número de reprovados pelo custo médio anual por aluno. Só que as coisas não se passam assim, já que uma eventual passagem automática de todos não iria originar a redução de professores, de assistentes operacionais e técnicos e o encerramento de escolas, variáveis que determinam os custos.

4. Melhor seria que, logo no primeiro ciclo, detectássemos com rigor as dificuldades de acompanhamento do currículo (fragilidades familiares, cognitivas ou de outra natureza), caracterizando o potencial de desenvolvimento de cada aluno. Isto a partir da ideia de que não deve ser o currículo que se flexibiliza, mas os apoios que se reforçam. Isto que suporia, naturalmente, a existência nas escolas de equipas multidisciplinares estáveis. Do mesmo passo, parece-me importante um debate sério e profundo sobre a eventual alteração para os sete anos da idade de entrada no ensino básico e a eventual junção dos segundo e terceiro ciclos num só.

No que toca ao secundário, com o tempo decorrido sobre o prolongamento da escolaridade obrigatória de nove para 12 anos, o país ganharia em discutir, sem preconceitos, a continuidade ou a reversão da medida (na UE só seis países têm 12 anos obrigatórios), bem assim como repensar toda a lógica organizativa e curricular da via profissionalizante.
Ao anterior acresce que as “aprendizagens essenciais” assentam na ideia equívoca de que o aluno é capaz de construir autonomamente o seu próprio conhecimento, através de “projectos” funcionais e imediatamente utilitários, desenvolvidos preferencialmente com metodologias lúdicas. Este conceito, que se foi impondo insidiosamente, vem originando uma organização avulsa e destruturada do currículo nacional. A ênfase dada às competências vem negligenciando o conhecimento, quando o conhecimento é nuclear para qualquer tipo de desempenho. Por outro lado, a interpretação que alguns fazem da autonomia curricular põe em perigo a garantia de que um conhecimento principal e nacional seja proporcionado a todos os estudantes, de modo equitativo e universal.
In “Público” de 27.11.19

1 comentário:

Figueiredo disse...

«...No que toca ao secundário, com o tempo decorrido sobre o prolongamento da escolaridade obrigatória de nove para 12 anos, o país ganharia em discutir, sem preconceitos, a continuidade ou a reversão da medida (na UE só seis países têm 12 anos obrigatórios), bem assim como repensar toda a lógica organizativa e curricular da via profissionalizante...»

Não imagina a quantidade de cidadãos(ãs) a quem lhes é imposto o desemprego simplesmente por não possuírem um papel onde esteja escrito que obtiveram o 12º ano; muitos desses homens e mulheres pertencem às gerações mais bem preparadas de sempre, as que se encontram nas faixas etárias dos 30, 40, 50, anos.

Doze anos de escolaridade obrigatória é completamente ridículo, contra-producente, e condiciona gravemente o desenvolvimento intelectual e social do indivíduo numa fase fulcral da sua existência.

Quanto ao Ensino Profissional, é feito para não funcionar, é medíocre e não possui critérios de selecção e classificação adequados para fazer ingressar aqueles que têm o perfil certo para o frequentar.

P.S.: Sr. Castilho, uma das imensas lacunas em Portugal está também na dificuldade que são colocadas propositadamente aos cidadãos adultos, no que toca à progressão dos estudos após ingressarem no mercado de trabalho e de começarem a tentar iniciar a sua vida de forma livre e independente. O fim (ou praticamente a sua inexistência) do Ensino Nocturno é prova disso mesmo, se achar por bem escreva um artigo sobre esta questão que tem sido bastante ocultada.