30/08/2023

Acha isto normal?


1. Repetidas vezes temos ouvido os políticos a atribuir o atraso da nossa economia ao decantado défice de formação dos trabalhadores. Nesta premissa, aliás, têm vindo a assentar os sucessivos programas promotores do acesso ao ensino superior. 
 
Mas aquilo que não se divisa são políticas coerentes, que ultrapassem os baixos salários e a precariedade e garantam que o dinheiro que o país despende com a formação dos seus jovens reverta a favor de melhores condições de vida para todos.
 
Assim, não surpreende uma notícia recente segundo a qual, num só ano, Portugal perdeu 128 mil trabalhadores com ensino superior. Trata-se de uma emigração em massa de quadros a quem oferecemos salários baixíssimos e não divisam aqui expectativas de futuro compatíveis com a formação que adquiriram. 
 
Muitos dos que emigram são médicos, que vão deixando o SNS à míngua de especialistas. Já há alguns anos, o Prof. José Ponte demonstrou no Público que o custo de formação de um especialista ficava entre os 300 e os 500 mil euros. No ano corrente, o orçamento dos dois ministérios que tutelam o ensino ultrapassa largamente os 10 mil milhões de euros.
 
Acha isto normal? Acha normal que o nosso marasmo político financie o desenvolvimento dos outros países à custa do nosso retrocesso?
 
 
2. No quadro da 1ª fase dos últimos exames nacionais, foram apresentados 4080 pedidos de revisão das provas e consequentes classificações atribuídas (3855 relativos ao secundário e 225 ao 9.º ano). Do processo resultaram 3109 subidas de nota (76,2% no total das classificações revistas), e 321 descidas (7,9% no total das classificações revistas). Dito de outro modo, 84,1% das provas reavaliadas foram consideradas mal classificadas pelo Ministério da Educação. Sucede que o descrito não é um epifenómeno de um processo normal. Outrossim, é mais uma de constatações idênticas verificadas ao longo dos últimos anos, em que uma percentagem relevante de pedidos de revisão dos exames do secundário termina com a subida das classificações inicialmente atribuídas. 
 
Acha isto normal? Como se explica a dimensão destes números? Como fica a confiança da sociedade relativamente ao processo? Que confiança se pode inferir sobre a fiabilidade das classificações atribuídas aos milhares de provas que não foram revistas?
 
 
3. Como foi fartamente divulgado, Marcelo vetou o pacote Mais Habitação e o Governo respondeu com uma posição de força, anunciando que vai reconfirmar o diploma no Parlamento, sem qualquer alteração. Toda a oposição, da esquerda à direita, todas as associações profissionais, todos os técnicos e especialistas independentes garantem que a situação piora se o diploma avançar.
 
Acha isto normal? Acha normal que, numa situação tão dramática para milhares de portugueses, o Governo recuse um esforço para encontrar convergências com a oposição e vá impor uma política que colhe a unânime discordância das outras forças políticas e do Presidente da República, fazendo o oposto da garantia que deu de que ia ser uma “maioria dialogante”? 
 
 
4. A mesma arrogância e obstinação estão na origem da recusa em recuperar os seis anos, seis meses e 23 dias cumpridos pelos professores em período de congelamento. Não é possível detalhar, no pouco espaço de que disponho, os fundamentos que permitem afirmar que o decreto-lei agora promulgado pelo Presidente da República gera novas injustiças e desigualdades dentro da classe e deixa sem resposta as vertentes mais contestadas de toda a situação, ao não revogar as quotas que cerceiam os acessos aos níveis mais elevados da avaliação do desempenho e ao não eliminar as vagas instituídas para aceder aos 5º e 7º escalões. Por último, permanece a discriminação dos professores relativamente à restante administração pública e, particularmente, aos que ensinam na Madeira e nos Açores.
 
O Governo tem dito que os obstáculos são de natureza financeira e de equidade relativamente aos restantes funcionários públicos. São muitas e de proveniências insuspeitas as demonstrações de que o argumento financeiro é falso. Quanto à equidade, a verdade é que, na generalidade das outras carreiras, o tempo de serviço, convertido em pontos, já foi reposto.
 
Acha isto normal? Acha normal que seja por isto que vamos ter o próximo ano dominado por conflitos laborais, depois dos últimos três, parcialmente perdidos?
 
In "Público" de 30.8.23

 

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