in Público, 10 de Novembro de 2010
Santana Castilho *
1. A Direcção-Geral dos Recursos Humanos da Educação (DGRHE) produziu um longo esclarecimento sobre a forma como dois decretos-lei deveriam ser interpretados. Porquê? Porque haverá incorrecções relativas à progressão na carreira docente nos últimos três anos. Consequências? Directores mobilizados para um longo trabalho administrativo de expurgo; professores ameaçados de retrocederem na carreira e reporem parte dos salários recebidos. Não se trata de legislação de ontem. Trata-se de legislação com anos. Esta circunstância torna pertinentes as considerações seguintes: por que razão só agora a DGRHE se deu conta da situação? Que interpretação estará correcta? A que agora é feita por aquele organismo central ou a que foi feita pelas direcções das escolas? Ou ambas são possíveis? Que fizeram as estruturas de supervisão e controlo? Sabe-se que muitos pedidos de esclarecimento foram feitos à DGRHE. Que respostas obtiveram? Quem responde pela má qualidade da produção de leis que, assim, originam prejuízos para muitos, tempo perdido e desconfiança acrescida? O texto que chegou às escolas continha a ameaça explícita de responsabilizar administrativa e financeiramente os actuais directores, mesmo que não tenham sido os intérpretes do que se questiona. Agora mesmo o problema é candente: em 2011 tudo ficará congelado; mas até lá há decisões que estão na mão de directores que têm dúvidas sobre as leis (na semana passada, o Conselho de Escolas dirigiu 100 perguntas ao secretário de Estado respectivo). Que devem fazer? Se adiam têm os professores em protesto angustiado, sob humana pressão. Se decidem correm o risco de mais tarde lhes dizerem que interpretaram mal e são responsáveis.
Portugal precisa de uma cultura diferente de responsabilidade.
2. O debate sobre o orçamento de Estado foi uma coreografia de mau gosto. A casa da democracia foi substituída pela casa de Eduardo Catroga e os deputados por negociadores que não se sentam na Assembleia da República. Quando o orçamento chegou ao Parlamento, os seus 230 membros já estavam reduzidos a um papel que Eça e Ortigão assim caricaturaram, em versão ortográfica por mim corrigida:
“…Toda a animação parlamentar, toda a vida representativa no mês corrente se resumiu no seguinte: a discussão da resposta ao discurso da Coroa. Esta discussão partindo de um ponto – a aprovação do projecto -, para findar exactamente no mesmo ponto de que partiu – a aprovação do dito projecto -, é verdadeiramente a imagem constitucional da “Kneph” dos egípcios, a velha serpente com o rabo na boca, o símbolo desolador da imobilidade oriental. Tanta palavra dispendida, tanto tempo empregado, tanto dinheiro perdido, tantos suores, tantos gritos, tantos copos de água desbaratados para se assentar nos termos em que o Rei tem de cumprimentar o país e em que o país tem de responder aos cumprimentos do Rei!” (“As Farpas”, Janeiro a Fevereiro de 1873).
Portugal precisa de uma cultura diferente de responsabilidade.
3. O coração de muitos políticos parece reduzir-se a um código legal, que interpretam a seu modo. O meu é feito de matéria diferente e por isso dói e sangra como nunca. Foram muitas as situações ao longo da minha vida em que a minha lei foi ser contra a lei. Contra a lei iníqua. Contra a lei astuta que protege os poderosos e ignora os que nada podem. Contra a lei que despreza a moral e a ética. Contra o direito que não serve a justiça.
Pedro Passos Coelho enfatizou publicamente a necessidade de responsabilizar os políticos civil e criminalmente e logo vieram a terreiro os bonzos de piquete: o que ele disse escapou à compreensão de Vieira da Silva; deixou perplexo Vitalino Canas, que considerou anormal ameaçar assim, nos regimes democráticos; surpreendeu o porta-voz do PS, Fernando Medina, que rotulou a afirmação de Passos Coelho de irreflectida e imponderada e garantiu que num Estado de direito a responsabilização dos políticos cabe aos cidadãos e não aos tribunais. Até Louçã falou do facto como mera fantasia. Mas Pedro Passos Coelho apenas disse o que a consciência cívica da nação pede. E só clamou pela aplicação da lei de que os seus sarcásticos críticos se esquecem ou fogem, em acto falhado. É velha de 1987 (Lei 34) e foi sucessivamente alterada em 2001, 2008 e 2010 (leis 108, 30 e 41, respectivamente). Na versão actualizada submete aos tribunais, entre outros, os seguintes crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos: atentado contra a Constituição da República; atentado contra o Estado de direito (que, recentemente, um procurador admitiu estar indiciado nas conversas telefónicas de Sócrates, cuja escuta viria a ser considerada ilegal); denegação de justiça; desacatamento ou recusa de decisão judicial (de que os sindicatos acusaram, não há muito, a ministra da Educação). Particularmente na questão que Pedro Passos Coelho concretizou, o gasto descontrolado de dinheiros públicos, a lei que cito é clara no seu artigo 14º, que versa a violação de normas de execução orçamental e fixa a pena de prisão para quem contraia encargos não permitidos por lei, autorize pagamentos sem visto do Tribunal de Contas ou autorize operações de tesouraria ou alterações orçamentais proibidas por lei.
Portugal precisa de uma cultura diferente de responsabilidade. Com ela não teríamos chegado a estas trevas.
* Professor do ensino superior
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