Os professores entre a consciência e a lei
Santana Castilho*
1. Como se esperava, terminou sem acordo a reunião suplementar entre o Ministério da
Educação e os sindicatos. O que se segue? A promulgação de um diploma que colocará
milhares de professores, contra a sua vontade, a centenas de quilómetros de casa, dificultará
ainda mais os mecanismos de aproximação à residência e conferirá aos directores o poder de
afastar os professores incómodos, mesmo que sejam do quadro. Numa palavra, passará a
vigorar um normativo que só piora o que já estava em vigor.
E seguem-se novas reuniões negociais para debater a recuperação do tempo de serviço. Mas
sobre a matéria, João Costa já esclareceu que as próximas negociações não se ocuparão da
recuperação do tempo de serviço de todos os professores, mas sim das compensações
(“correcção dos efeitos assimétricos”, no dizer do ministro) a atribuir aos que tenham sido
mais prejudicados durante o congelamento das carreiras.
Aquilo que o ministro agora apoda de “efeitos assimétricos” é uma epígrafe maliciosa para
uma ideia racionalmente sem nexo e eticamente desprezível. Limpando-a dos floreados
palavrosos do ministro, o que ela significa é isto: João Costa vai entrar, mais uma vez de má-fé,
numa negociação viciada, porque já tem o resultado antecipadamente determinado, qual seja
distribuir umas migalhas a uns e discriminar os restantes. Como se não tivessem trabalhado
todos, João Costa propõe-se promover ultrapassagens indecorosas, com um confrangedor
desprezo pela justiça mínima.
2. Duas sondagens recentes e a observação simples dos factos expõem o fracasso da estratégia
de manipulação da opinião pública promovida pelo Governo e, particularmente, por João
Costa, no contencioso com os professores. Mas, no domínio dos resultados, João Costa levou a
dele avante: a sua política ruinosa avançou e um péssimo decreto-lei vai ser aprovado num
Conselho de Ministros inerte ante a destruição do sistema nacional de ensino e da escola
pública.
A união genuína dos professores e a abnegação com que se entregaram a manifestar
publicamente a sua repulsa pelas políticas nefastas de que são vítimas não demoveram um
ministro desumano e incompetente. Daí a pergunta que se impõe: que fazer agora?
Talvez reflectir sobre a forma como Peter Singer aborda, no seu livro “Ética Prática”, a relação
entre a consciência individual e a lei. A dado passo, o autor formula esta pergunta:
“Temos alguma obrigação moral de obedecer à lei, quando a lei protege e sanciona coisas que
achamos totalmente erradas?”.
E Peter Singer responde a si próprio pela escrita de Henry Thoreau, assim:
“Terá o cidadão de entregar a sua consciência ao legislador, nem que seja por um só momento
ou no grau mínimo? Para que terá então todo o homem uma consciência? Penso que devemos
ser em primeiro lugar homens e só depois súbditos. A única razão que tenho o direito de
assumir é a de fazer sempre aquilo que penso ser justo”.
Posto isto, que bela lição dariam os professores a João Costa se o deixassem a falar sozinho
com o diploma que vai levar a Conselho de Ministros e nem um só dos contratados
concorresse à pérfida vinculação dinâmica! A que outra artimanha recorreria o criativo
ministro, para não ser levado ao Tribunal de Justiça da União Europeia, por incumprimento da
correlata Directiva 1999/70/CE?
3. A realização das provas de aferição em suporte digital é um processo que começa a revelar-
se como de princípio era de prever: sem computadores suficientes, sem estruturas de base
(rede eléctrica e de Internet preparadas e adequadas nas escolas) e muitos alunos
insuficientemente familiarizados com as rotinas informáticas, não passa de uma iniciativa de
novos-ricos irresponsáveis. O irrealismo (Projecto de Desmaterialização das Provas de
Avaliação Externa) terminará, antecipo, atribuindo, como é habitual, a culpa do fracasso às
escolas e à falta de formação dos professores.
A esta vertente operacional acresce a mais importante, sobre a qual venho a escrever, de há
muito: sendo a utilização do digital desejável e incontornável, não deve ser impulsionada por
dogmas políticos, antes com a consideração dos avanços científicos no domínio das
neurociências, particularmente da psicologia cognitiva. E esses avanços permitem expor a
pobreza pedagógica e a limitação de exames assentes em escolhas múltiplas.
*Professor do ensino superior
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