in Público, 27/10/2010
Santana Castilho *
No momento em que escrevo, PS e PSD ainda negoceiam para viabilizar o Orçamento de Estado para 2011, o qual, todos sabemos, vai ser aprovado. Independentemente da filiação ideológica, numa coisa os economistas estão de acordo: este orçamento gerará recessão económica. A falta de transparência é evidente: é impossível cotejar a realidade com o passado e o futuro e até o próprio valor do PIB não está explicitado; o investimento público cai aparentemente, mas ninguém sabe o valor da desorçamentação operada com recurso ao cancro das parcerias público-privadas; sobre o incumprimento evidente do acordo feito com o PSD, em Maio transacto, aquando do PEC II, nem uma palavra. Se retirarmos a receita extraordinária originada pelo confisco dos 2,6 mil milhões de euros do Fundo de Pensões da PT, o decantado défice aproximar-se-ia dos 9 por cento. As obras megalómanas persistem e não existe qualquer simples vislumbre de criação de nova riqueza. O desrespeito pelos contribuintes é escandaloso e nem sequer a incoerência técnica é disfarçada quando se fala do aumento significativo das exportações portuguesas, a dado passo, para, noutro, reconhecer que os mercados para os quais exportamos serão objecto de desaceleração económica em 2011. Sendo a dimensão da dívida do Estado português a justificação da brutalidade em que assenta o orçamento, resulta dele um inaceitável aumento dessa dívida em qualquer coisa como 11 mil milhões de euros. E não se diga que tal soma astronómica é justificada com o serviço da própria dívida, porque o acréscimo o ultrapassa largamente.
A saúde, primeiro, e a educação, logo a seguir, são os sectores mais atingidos com os cortes orçamentais. Os 6391,1 milhões de euros previstos para o Ministério da Educação em 2011 significam um corte de 11,2 por cento relativamente a 2010. A redução de docentes ainda no decurso do ano lectivo de 2010-2011 e a redução dos encargos com a gestão das escolas constam das directivas do Governo. Será eliminada a “área projecto” e acabará o “estudo acompanhado”, o que, dizem os sindicatos, equivalerá a menos cinco mil professores contratados. A formação de agrupamentos de escolas veio para ficar, com a inerente redução de postos de trabalho e a desertificação do interior do país. O concurso extraordinário que permitiria o acesso de 15 mil professores a um contrato sem termo, um dos compromissos constantes do acordo que o Governo celebrou com os sindicatos, foi para o lixo, provando à saciedade que a palavra do Estado não passa de papel molhado.
Sem nenhuma contrição sobre os grosseiros erros do passado, sem pudor no assalto aos salários dos funcionários públicos e com desprezo pelos que nada podem, são governantes ou vampiros os que assim sugam o que resta à depauperada nação?
Semana após semana, com uma eficácia que importa reconhecer, os marajás deste reino, que comemorou há pouco um século de república, desdobraram-se a convencer os servos de que seriam fritos na caldeira da desgraça eterna se o orçamento fosse reprovado. Ainda o dito nem sequer era conhecido, já eles defendiam o sim cego, com aumento de impostos, congelamento de pensões de miséria, implosão de benefícios fiscais e apropriação de salários. Tudo universalmente inevitável, para ficarem localmente intocáveis os grandes interesses, as suas várias reformas acumuladas e as suas remunerações privadas, tributos de uma justiça fiscal moderna, que assenta em dar sempre mais a quem mais tem e melhor espolia. Estes servidores públicos, aquinhoados com pecúlios próprios de príncipes feudais da Índia ancestral, não ocuparam os seus neurónios a reduzir as despesas do Estado que os sustenta. Essa alternativa ao aumento drástico da pobreza generalizada ficou para Passos Coelho, implicitamente acusado do crime de ser oposição e de pensar no importante, para além do urgente.
Portugal está cansado do que é urgente e da ganância que tem ditado as nossas urgências. Com a urgência de entrarmos na moeda única, foi-nos dito que isso seria um promotor de igualdade e um protector para todas as desgraças económicas e financeiras. Sendo certo que cada país tinha, então, uma moeda única em todo o seu território e as desigualdades sempre persistiram, ficou por discutir por que razão passaria a ser diferente com a mesma moeda para todos eles, artificialmente reunidos.
Falta-nos reflexão sobre o que é importante. Voltar a considerar a agricultura e o mar, de que a Europa nos afastou, por exemplo. Admitir que o esforço da exportação se deve deslocar dos mercados europeus, que se arrastam na estagnação ou nos primeiros dígitos do crescimento, para os mercados que se aproximam dos dois dígitos, por exemplo. Falta-nos compreensão do mundo, sentido estratégico, intencionalidade e visão. Falta-nos organização e ordenamento. Falta-nos empenhamento colectivo. Mas quando penso em empenhamento colectivo, com Sócrates, a memória leva-me inexoravelmente à pergunta que a campanha de John Kennedy, referindo-se a Richard Nixon, dirigiu aos cidadãos eleitores em 1960:
“Você compraria um carro em segunda mão a este homem?”
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* Professor do ensino superior